quarta-feira, 2 de novembro de 2016

As Conversões Forçadas


Lasar Segall (1891-1957). Pogrom (1937).
Óleo sobre tela (1,84z1,50 cm). Museu Lasar Segall, São Paulo, Brasil.


A situação dos judeus na Europa ocidental e, em particular, na Península Ibérica chegou a tal ponto que, ou haveria um genocídio de proporções gigantescas (o que faria do cristianismo o maior carrasco e assassino em massa da história), ou os judeus deveriam se converter ao cristianismo e, assim, teriam suas vidas poupadas, mas seus bens confiscados. Realmente, houve milhares de conversões de judeus para o cristianismo, bem como houve milhares deles que fugiram para países em que a liberdade religiosa estava presente, como a Turquia, o norte da África, o Egito e até mesmo a Palestina, onde a ordem de exclusão estrita, estabelecida pelo Império Romano, já havia sido esquecida há muitos séculos.

Contribuiu muito para esse clima persecutório uma série de ardorosos sermões proferidos por arcebispos, bispos, monges e sacerdotes nos mais diversos lugares. Atendo-nos somente à Península Ibérica, podemos citar, de início, os sermões do arcebispo Fernán Martinez, em Sevilha, em 4 de junho de 1391. Incitada pelas palavras virulentas e venenosas anti-judaicas, o populacho atacou os judeus com exacerbada violência. A revolta se alastrou por todo o reino de Castela, acarretando motins e matanças. Cidades e aldeias, uma após outra, foram sendo dominadas pela fúria ensandecida. Judeus, desesperados, buscavam socorro nas igrejas cristãs pedindo o batismo. Outros fugiam para países desconhecidos, a pé, pelas estradas atulhadas, dia e noite, por carroças que carregavam os poucos pertences que podiam levar. Uma imagem digna da descrição do Inferno de Dante!



Maestro del Grifo. São Vicente Ferrer pregando aos judeus. Óleo sobre tela. 
Museu de Bellas Artes, Valência. (Extraído de Faiguenboin e cols., 2002).


Muitos judeus tentaram compreender o que estava acontecendo nas páginas da Bíblia, sem encontrar a razão de tal sofrimento de todo um povo. Muitos preferiram, então, culpar-se, avaliando que sua desgraça era decorrente de um “castigo divino”, uma punição de Deus aos pecados do povo de Israel, nos moldes do episódio de Sodoma e Gomorra, em que pese não haver nenhuma semelhança causal entre os dois acontecimentos (Faiguenboin e cols, 2002). 

Por outro lado, os governos também levavam um grande prejuízo com essa 
loucura coletiva. Eles deixavam de receber os empréstimos e ajudas financeiras de todo o tipo, para financiar suas guerras externas, seus castelos, seu fausto e elevadas despesas da corte. O que ocorria era deletério para as finanças do reino, para os comerciantes e cobradores de impostos. Mas, a palavra final estava com a Igreja e a questão era religiosa e não laica. 



Ilustração representando um debate sobre fé entre católicos e judeus.
 (Extraído de Faiguenboin e cols., 2002).


Dada a grande religiosidade cristã na Península Ibérica, a hostilidade da Igreja para com outras minorias religiosas, entre os séculos XIII e XVI, onde as controvérsias sobre dogmas não eram toleradas, onde o contraditório não era admitido em hipótese alguma, pode se entender a situação dos governantes. Muitos reis foram contra essas atrocidades, mas, em contrapartida, muitos outros eram favoráveis e até incentivadores das mesmas. Nem todas as comunidades judaicas organizadas foram levadas ao desespero. Muitos líderes judaicos queriam a plena reconstrução de sua vida religiosa. Entretanto, os tempos eram obscuros demais e a perspectiva de solução para o impasse desaparecia no horizonte.


Gravura representando os judeus como usurários, atividades proibida aos cristãos.

Durante o reinado de Jaime I de Aragão, os ataques antijudaicos aumentaram consideravelmente. Em 1263, ele autorizou o célebre debate, em Barcelona, entre o judeu convertido Pablo Christiani e o rabino e sábio Nachmánides. Segundo todos os relatos de quem presenciou o debate, o segundo, com seus sólidos conhecimentos e fundamentos religiosos, venceu a pugna. Como recompensa, o rei ordenou que fosse preso, mas, antes que o inimigo pudesse agarrá-lo, ele já tinha fugido do país, com destino à Palestina. Isso recrudesceu a ação de monges, inconformados, que exigiam a imediata conversão ao cristianismo de todos os judeus. Tal demanda associou-se às calúnias, cada vez mais presentes, como acusações de crimes rituais (sacrificar crianças cristãs a fim de utilizar o sangue em rituais religiosos), profanação de hóstias, completo desrespeito aos sacramentos da Igreja, envenenamento das águas de poços, além de serem os culpados pela Peste Negra. Entre 1412 e 1414, as comunidades judaicas da Espanha passaram por novos sofrimentos. Nesse período, um grupo de rabinos foi convidado a debater, na cidade de Tortosa, com autoridades da Igreja, questões religiosas, entre as quais as diferenças entre o judaísmo e o cristianismo, quem era o Verus Israel (discussão sobre a relação entre os judeus e os cristãos durante o período final do Império Romano, 135-425 a.D., na qual os cristãos, induzidos por Paulo de Tarso, passavam a considerar Abraão o verdadeiro profeta do cristianismo e não do judaísmo), a vinda do Messias, sua essência e suas ações, os milagres, a salvação, o Reino dos Céus e muito mais (Faiguenboin e cols., 2002). Lá chegando, os rabinos descobriram que iriam debater com judeus apóstatas (que haviam abandonado o judaísmo pelo cristianismo). A hostilidade antijudaica chegou a um ponto que, logo, ocorreu o pogrom contra os judeus convertidos (cristãos-novos) de Toledo, em 1467. Agravou a situação a questão dos falsos conversos: judeus que se convertiam ao cristianismo apenas como fachada, para sua própria sobrevivência, mas mantinham secretamente sua crença e rituais judaicos.


Auto de Fé na Espanha. Ca. 1495.


O século XV foi marcado por intensas hostilidades contra os falsos conversos ibéricos, acusados de judaizar (professar secretamente o judaísmo), profanar sacramentos e desobedecer aos cânones dos ensinamentos da Igreja. Instigados pelo clero e as ordens monásticas dos franciscanos e dominicanos, levados por um fanatismo extremado, aconselharam aos reis católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, o estabelecimento da Inquisição na Espanha.
Para complicar a situação, surge uma enxurrada de obras literárias contra todo tipo de heresia e contra as bruxas e que foram publicadas na Europa Central, Alemanha e França. O primeiro desses textos mais significativos foi a obra Formicarius, de Joahannes Nider, em 1435/37. Nele são ensinados métodos (ainda primitivos) de se identificar as bruxas no seio da população e leva-las a julgamento. Mas, a obra final, a mais odiosa publicação já feita pelo ser humano para identificação das bruxas, foi o Malleus Maleficarum (O Martelo das Feiticeiras), de autoria dos monges dominicanos e inquisidores austríacos Heinrich Kramer e Jakob Sprenger, este último deão da Universidade de Colônia, por solicitação do papa Inocêncio VIII. Esta obra, considerada como o mais terrível livro já escrito por um ser humano, ataca principalmente as mulheres (alguns poucos homens foram incluídos), suspeitas de bruxaria. É um tratado de horrores sobre a misoginia. Ensina como fazer para se obter a confissão da suposta bruxa (principalmente através da tortura), ensinando os métodos de torturas conhecidos até então, como levá-las à confissão de seus “crimes”, como julgá-las e condená-las e, finalmente, entregá-las ao poder laico para a execução da sentença, geralmente a fogueira. A associação com os judeus foi imediata, já que eles também eram acusados de heresia, bruxaria e pacto com o diabo. Acredita-se que essa obra hedionda tenha contribuído para levar algo em torno de cem mil mulheres para a tortura e a morte, sob a acusação de “copularem com o demônio” (prefácio de Rose Marie Muraro à obra Malleus Maleficarum, Kramer e Sprenger, Rio de Janeiro, 2007). Apesar de ter sido incluída no Index Proibitorum da Igreja Católica, durante quase quatro séculos foi o manual extra-oficial da Inquisição.


Edição do Malleus Maleficarum, de 1657. 


A questão dos cristãos-novos também foi muito debatida na Península Ibérica durante os séculos XV e XVI. Pero Sarmento, Marquillos de Mazarambroz, D. Alonso de Cartagena, Dr. Francisco de Toledo, Graciano, o bispo Lopes Barrientos, Garcia de Resende, Gil Vicente, João de Barros, Francisco Machado, Amador Arrais e o anônimo Libro de Alboraique, foram alguns desses autores e obras a alertar para o perigo de que os cristãos-novos representavam para a sociedade cristã (Faiguenboin e cols, 2002). A teoria vigente era que o povo cristão recebia dos judeus e dos conversos um tipo de castigo divino. Caberia, então, à sociedade encontrar soluções práticas para resolver a “questão judaica”, como a expulsão do país, o isolamento a perseguição e a morte. Verdadeiro prenúncio da “solução final”, executada pelos nazistas no século XX.


O Martelo das Feiticeiras (Malleus Maleficarum),
com excelente introdução histórica de Rose Marie Muraro.
Rio de Janeiro. Editora Rosa dos Ventos, 2007.



Para esses autores, a sociedade ibérica estava enferma e os cristãos-novos eram um elemento de desagregação social. Também descreviam, em textos antijudaicos, essa enfermidade em termos religiosos e teológicos aqui enumerados: não existência da crença cristã, inexistência de qualquer culpa, envolvimento em seus erros, crença na sua verdade sagrada, obediência à doutrina judaica e o afrontamento do sagrado cristão. Ofereciam soluções pouco viáveis e nenhuma que realmente resolvesse a questão do convívio entre duas religiões, tão próximas entre si, como a do relacionamento entre cristãos-velhos (população cristã cuja conversão ao cristianismo remontava a uma época presuntivamente anterior à presença dos judeus) e cristãos-novos (termo usado para designar os judeus da Península Ibérica convertidos ao catolicismo antes de 1492, na Espanha, e antes de 1496, em Portugal). Isso revela o quanto foram incapazes os povos ibéricos de conciliar o problema. Ficou muito evidente, entretanto, que esses intelectuais queriam apenas polemizar e piorar a situação de convivência, gerando um debate público acerca dos cristãos-novos, gerando um enigma, até hoje pouco decifrado (Faiguenboin e cols., 2002). Estava preparado o caminho para a expulsão.

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