quarta-feira, 2 de novembro de 2016

A Inquisição e os Judeus




A Europa passava por um turbulento período no início do século XIII. Em 1208, a quarta Cruzada continuava sua incursão de horror e violência inauditos à Terra Santa e o Reino Franco de Jerusalém se encontrava ameaçado, já quase encurralado, pelos muçulmanos. Nesse ano terrível, o papa Inocêncio III desencadeia outra Cruzada, desta vez, contra povos cristãos, os cátaros, que viviam no sul da França, em área mediterrânea. Esta Cruzada ficou conhecida como “albigense”, já que um dos primeiros centros de difusão dessa religião, então considerada uma heresia pelos católicos, era a cidade francesa de Albi, não muito distante do Mediterrâneo. A palavra cátaros significava “purificados” ou “aperfeiçoados” e, entre outros princípios por eles praticados, estavam a não obediência à hierarquia de Roma, a crítica ao fausto e à corrupção que grassavam entre o clero e a cúpula da Igreja, a volta aos princípios do cristianismo primitivo, a crença em um único Deus e a não aceitação da divindade de Jesus, do Espírito Santo e o questionamento da santidade da Virgem Maria e dos demais santos. Além disso, os seus sacerdotes podiam se casar, ou mesmo ter várias mulheres e famílias, desde que as pudessem manter. O ambiente estava extremamente pesado, a hierarquia católica rancorosa e desejosa de obter compensações financeiras pelos seus fiascos nas Cruzadas, que haviam levado a consideráveis perdas humanas e monetárias. Somando-se a isso, havia a já quase milenar rixa com os judeus, que, por terem sido bem sucedidos em suas atividades mercantis e se destacado em todas as áreas culturais, intelectuais e financeiras do Mundo Ocidental, despertaram a inveja e a cobiça por parte da Cristandade, mergulhada na pobreza, ignorância e analfabetismo. Estava preparado o caldeirão para os inúmeros pogroms e holocaustos que se seguiriam no decorrer dos próximos três séculos.




Regiões da Europa ocidental onde os cátaros tiveram grande presença.



Região cátara do sul da França, palco da sangrenta Cruzada fratricida.



A ordem de Inocêncio III foi clara e incisiva: “Damos a estrita ordem que, por todos os meios, destruam todas essas heresias... Se necessário, instruam os príncipes e o povo a suprimi-los pela espada” (Borger, 2002; pág. 95). A ordem foi seguida ao pé da letra. Em 1209, na cidade de Béziers, em um único dia, foram exterminados 20 mil homens, mulheres, crianças e idosos, e, junto a eles, 200 judeus.



Carcassonne, próxima a Béziers, foi a última fortaleza cátara a cair.



Cátaros sendo caçados e tirados da fortaleza de Carcassonne.



As diferenças na interpretação da Bíblia também contribuíram para o sacrifício dos judeus. Desde 1199, Inocêncio III estava preocupado com a laicização e declarou que as Escrituras eram profundas demais para serem compreendidas sem um guia clerical. Isso terminou por envolver a interpretação do Talmud (livro que contém a Lei e as tradições judaicas, compilados pelos doutores hebreus) pelos rabinos, o que não levou muito para ser considerado também uma heresia. Por séculos, o judaísmo foi respeitado como uma religião co-irmã do cristianismo e seus fiéis não eram molestados por professar essa religião. Mas, o clima havia mudado e nuvens negras assomavam no horizonte. O Talmud passou a ser considerado um conjunto de “superstições” e “blasfêmias”. Dissenções internas entre os judeus contribuíram para agravar a situação. Alguns rabinos consideravam a obra de Maimônides como um desvio para as novas gerações judaicas e seus escritos terminaram por ser excomungados de muitas dessas comunidades. Alguns rabinos chegaram mesmo a denunciar às autoridades católicas a obra de Maimônides, intitulada “O Guia Para os Perplexos”, como sendo uma ameaça também ao cristianismo. O Talmud foi condenado pelo Vaticano e os dominicanos, que haviam incitado o início das perseguições aos hereges, foram encarregados pelo papa de destruir o Talmud, pela fogueira. Isso deu origem a uma das mais nefandas campanhas na história, que deixaria seguidores até os nossos dias: a queima de livros e textos dos quais certos líderes e seguidores discordam. Em função disso, o grande poeta romântico alemão, Heinrich Heine, em 1824, disse: “Aqueles que queimam livros, acabam cedo ou tarde por queimar homens”.

Emblema da Inquisição.





Esse fenômeno ocorria em toda a Europa Ocidental. Em Paris, em 1236, Nicolau Donin, que havia sido discípulo do rabi Jehiel ben José, em discordância com a doutrina talmúdica, foi excomungado do judaísmo pelos seus mestres (também entre eles havia essa prática). Como vingança, Donin se converteu ao cristianimo e ingressou na ordem dos franciscanos. Logo em seguida, apresentou ao papa Gregório IX uma lista com 35 acusações contra o Talmud, tais como: supostos antropomorfismos (heresia surgida na Síria, no século IV a.D., que atribuia a Deus corpo humano, baseando-se em que o homem havia sido feito materialmente à sua imagem e semelhança), obscenidades, blasfêmias contra Jesus e Maria, incitação ao ódio contra o cristianismo, suposta alegação, pelos judeus, da prioridade da lei talmúdica sobre a bíblica e, não menos grave que as demais, a suposta barreira que o Talmud erguia contra os esforços de conversão de judeus ao cristianismo (Borger, 2002; pág. 98). Em 1242, em Paris, o Talmud foi declarado “culpado” e seu destino seria a fogueira. Vinte e quatro carroças, carregando algo em torno de doze mil livros, foram queimados em praça pública. Pode-se avaliar o prejuízo cultural imposto aos judeus baseando-e em tal volume de livros destruidos, dois séculos antes da invenção da imprensa. Em Montpellier, poucos anos depois, outra grande quantidade de exemplares do Talmud foi queimada. Bulas papais dos anos de 1244, 1260, 1320, 1409 continuaram a condenar a “heresia” do Talmud (Borger, 2002; pág. 90). Essa prática atingiu o êxtase da loucura em pleno século XX quando, em 10 de março de 1933 os nazistas queimaram toneladas de livros de autores judeus. Tal prática continua a afligir a humanidade até os dias atuais.





Queima do Talmud, coordenada pelos padres dominicanos.



Estas queimas foram o prenúncio do pior, que estava por vir. Entre 1208 e 1290 milhares de judeus foram massacrados na Alemanha. Em 1321 foi a vez da França adotar essas práticas odiosas. Entre 1336 e 1339 um número enorme (e ainda desconhecido) de judeus foram massacrados na Alsácia e Francônia, sob o pretexto de vingar a morte de Jesus Cristo e após acusações de que judeus profanavam hóstias consagradas. Na Inglaterra, o anti-semitismo estava em pleno andamento, nesse período. Os judeus, como em todos os demais países, exerciam as tradicionais atividades mercantis, comércio exterior, importação-exportação, além das atividades liberais propiciadas por sua formação educacional rigorosa e contínua. Além do mais, emprestavam dinheiro à coroa, à corte e ao povo em geral. Essa atividade era proibida aos cristãos na Idade Média e isso era sempre um fator gerador de inveja e rancor. Os judeus haviam sempre tido excelentes relações com a monarquia e a nobresa inglesas. As primeiras explosões de ira popular contra os judeus se deram nos dias das cerimônias de posse do rei Ricardo I, em 1180. No dia 16 de março deste ano, após o massacre dos representantes judeus da comunidade judaica inglesa, que haviam se deslocado até Londres para as cerimônias da posse real, outros 150 cidadãos, homens e mulheres judeus, se refugiaram na Clifford Tower, da cidade de York, onde foram sitiados e, depois, massacrados, para não renunciar à sua fé, condição imposta pela turba ensandecida.



As bruxas. Xilogravura. Hans Baldung (1484-1545), circa 1510. 
Os judeus logo foram associados à bruxaria, no século XIII.


A loucura homicida anti-judaica recrudesceu com a chegada da Peste Negra. Os judeus, entre outras razões, foram acusados de espalhar a Peste, para destruir o Ocidente cristão. Levantou suspeita, entre os cristãos, o fato dessa moléstia atingir muito menos judeus que os cristãos, em função dos melhores hábitos de higiene daqueles, que se banhavam com grande regularidade, usavam latrinas privadas (que só foram introduzidas no Ocidente quando os Cruzados voltaram da Terra Santa e trouxeram os hábitos dos habitantes dessa região), cuidavam muito bem da limpeza de suas roupas e não se sentavam à mesa para as refeições sem lavar as mãos. Mas, na realidade, a Peste atingiu, e muito, a população judaica na Europa e foram milhares os hebreus mortos, a ponto dos cemitérios judaicos não terem mais espaço para os sepultamentos. A cegueira criminosa persistiu e, depois que várias das suspeitas causais para a doença terem sido eliminadas (conjunturas astrológicas, castigo divino, obra do diabo, os mendigos, os monges e os leprosos), chegou-se à negra conclusão de que eram os judeus os responsáveis pela tragédia.  Uma encenação, desenrolada na cidade de Chillon, próxima ao Lago de Genebra, levou ao interrogatório de inúmeros judeus. Muitos “confessaram”, sob tortura, um plano de destruir o mundo cristão e que havia sete anos eles conheciam uma conspiração judaica internacional, iniciada em Toledo, Espanha, para sua concretização. Arrancaram, também sob tortura, do médico judeu Balavigny a confirmação de que o ar havia sido infectado com veneno extraído do basilisco (uma lenda que remonta à Antiquidade que representa um animal em forma de lagarto ou serpente com cabeça de homem, galo ou dragão). Baseados nessas “provas” e “confissões”, centenas de judeus foram queimados (Borger, 2002; pág. 101). 


As  três bruxas. Desenho. Hans Baldung, 1513.



O beijo da vergonha. Desenho. Ulrich Molitor (1442-1507), circa 1500. 
A adoração ao diabo foi uma das acusações imputadas aos judeus,
a partir do século XIII até o século XVI.


Os judeus foram demonizados, com inúmeras representações pictóricas satânicas (que duraram até o século XVIII), foram associados à bruxaria (as mulheres cristãs mais velhas também foram alvo dessa ira tresloucada, já que, pela sua sabedoria e experiência, concorriam com as atividades “médicas” e de parteiras exercidas por inúmeros sacerdotes e, porisso mesmo, vistas como rivais) e estigmatizados como compactuados com o diabo. Incontáveis cerimônias de cremação de seres vivos inocentes foram testemunhadas pela população crédula do Ocidente europeu durante quase quatro séculos. Sem dúvida alguma, uma das mais negras páginas da História Universal.


Warlock cavalgando para o Sabbath. Desenho. Ulrich Molitor, s/d.



O absurdo foi tamanho, que o próprio papa, na época Clemente VI, teve que fazer um pronunciamento, em forma de bula, na qual dizia que, tendo em vista o fato de a peste ter atingido diversas partes do mundo, e incluído entre suas vítimas os próprios judeus, e atingido povos onde não havia judeus, como a Inglaterra (os judeus haviam sido expulsos de lá em 1290), essa doença era um desígnio de Deus. Seria, então, absolutamente impensável que os judeus tivessem tido a capacidade de tamanho desastre (Borger, 2002; pág. 101). Entretanto, essa bula papal não teve qualquer resultado. Nem as intervenções de reis e imperadores a favor dos judeus, teve qualquer efeito positivo em seu benefício. Diga-se de passagem, estes reis e imperadores na Europa ocidental conviviam bem com os judeus, já que deles dependiam para financiar suas campanhas de guerras (nas Cruzadas e nas campanhas contra seus próprios vizinhos cristãos, para conquista e anexação de territórios), construção de palácios e outras edificações de importância para seus países.



Queima de judeus, identificados pelo círculo amarelo colocados em suas vestes.

Borger (2002; pág. 102), em seu dramático relato da verdadeira história que ocorreu em pleno mundo “civilizado” e cristão (o que é confirmado por inúmeras outras fontes insuspeitas, como o maior historiador português, Alexandre Herculano (1876), e o maior historiador não-judeu da história do povo hebreu na Península Ibérica, Amador de Los Rios (1876), nos diz textualmente:

Não faltaram cidades em que os judeus foram mortos antes da peste chegar; não faltaram regiões em que nem um único judeu sequer vivesse, porém todos sabiam que eles eram os culpados. Das covas da peste negra surge o estereótipo de sua perversa caricatura. Artistas representam sua maldita cegueira em esculturas adornando as mais belas catedrais e em pinturas que iluminam preciosos manuscritos; poetas o denunciam em trovas e baladas. Párocos semanalmente o arrasam dos púlpitos; literatos o arrastam aos palcos nos Mistérios da Paixão: ele é baixo, gordo, narigudo, tem garras, cornos, rabo e cheira a enxofre; ele é um usurário, mata crianças, profana hóstias, envenena poços e exala uma mágica sexualidade, fatal para as donzelas cristãs: é o Diabo encarnado no judeu deicida. E para que todos se cuidem, ele está marcado com o distintivo amarelo.


    


 Técnicas de interrogatórios utilizadas pela Inquisição.   


Estava armado o palco para os inúmeros pogroms e os diversos holocaustos desencadeados em toda a Europa, incluindo, posteriormente, a Rússia dos séculos XIX e XX. Os mais terríveis de todos, porém inspirados nesses episódios aqui relatados, da Idade Média, foram os da Alemanha nazista, em pleno século XX, crimes sucessivos contra a Humanidade, de proporções jamais vistas na história. Pogrom é uma palavra russa que significa ataque violento e maciço a pessoas, com a destruição simultânea do seu ambiente (casas, negócios, centros religiosos). Pode ser utilizado para outras minorias étnicas e/ou religiosas, como os protestantes (em países católicos), eslavos (em países germânicos), mas se aplica preponderantemente aos judeus europeus. Episódios para nunca mais serem esquecidos por qualquer ser humano! Estava armado também o palco para a expulsões!

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