sábado, 13 de abril de 2013

Um difícil caminho




João Teixeira Albernaz. Mapa da Capitania de São Vicente, 1631.


Quem leu o capítulo sobre a epopeia de Manoel Corrêa de Souza, quando saiu de Lavras do Funil e tomou da Picada de Goiás, em direção a Pitangui, e depois pegou o trajeto que transpunha o rio São Francisco na Passagem do Piraquara, aportando nas fraldas da Serra da Saudade, não faz idéia de quão difícil era esta tarefa. Sem dúvida, era uma verdadeira epopéia, mesmo em fins do século XVIII, quando muitas picadas já tinham sido abertas e por elas circulava uma grande quantidade de tropas, caixeiros-viajantes, aventureiros, faiscadores, vaqueiros conduzindo a boiada São Francisco acima e São Francisco abaixo, contrabandistas, etc. Muitas pousadas já existiam em suas margens há muito tempo. 

     A uma distância de 3 a 4 léguas sempre se encontrava um rancho primitivo, de sapé e pau-a-pique, para o pernoite e o merecido descanso. Geralmente, bem próximo havia uma moradia precária, transformada em venda, onde morava uma família bem simples, que vivia do comércio local, onde se podia comer uma refeição básica, tomar um banho em algum riacho nas redondezas, esticar as pernas e, para os mais corajosos ou descansados, até se aventurar por uma pequena caçada na região, sempre rica de exemplares da fauna tropical. Esta era uma rotina que existia por todos os caminhos do Brasil colônia, à exceção das vastidões do Centro-Oeste e da Amazônia.


Carta corográfica da capitania de São Paulo, 1766.


Vamos tomar o tempo do leitor com a descrição muito sumária, apesar de extremamente interessante, de quão penosas eram as comunicações no Brasil colonial. O País não tinha estradas e os transportes e as comunicações se faziam basicamente por três meios distintos: 

a- a navegação costeira, muito arriscada em função da topografia de toda a costa, muito recortada, repleta de acidentes geográficos os mais diversos, cheia de armadilhas, os mais temidos eram os arrecifes, verdadeiras máquinas trituradoras de naus, caravelas, corvetas, barcos de todo calado e até canoas, quando uma quantidade incalculável de colonos e aventureiros perderam suas vidas; 

b- a navegação fluvial, muito utilizada nas primeiras cinco décadas, em função da pujante bacia hidrográfica brasileira, em que pesem dois fatores que muito dificultavam as viagens por ela: as inúmeras quedas d’água e cachoeiras que impediam o curso normal do deslocamento das tropas e expedições para o interior, e a hostilidade enorme do gentio que habitava suas margens, quando muitos dos aventureiros e expedicionários por aí pereceram; 

c- as picadas no mato, atravessando selvas quase impenetráveis, florestas menos densas, cerrado, matos ralos, campinas, montanhas, serras, rios, riachos, córregos, regiões pantanosas e alagados em geral, enfim, tudo quanto era obstáculo para um bom desenvolvimento da marcha de qualquer expedição. 

     No período chuvoso o deslocamento das pessoas era melhor realizado pela via fluvial, em função do maior volume d’água nos rios, o que reduzia o perigo de obstáculos como pedras no fundo dos leitos dos rios, bancos de areia, e também a possibilidade de se utilizar barcos de maior calado com maior capacidade de desenvolver velocidade de deslocamento. Mas sempre havia o grande perigo da embarcação se chocar contra troncos e galhos de árvores semi-submersos. No período da estiagem, as picadas passavam a ser mais interessantes, dado que os obstáculos do terreno se reduziam muito, quase não havia alagados, e o mato podia ser cortado com facões numa faixa estreita. 

     Esta faixa era realmente muito estreita, completamente diferente do nosso conceito atual de estradas, onde há espaço para ir e vir, sem que uns atrapalhem os outros. Eram picadas que davam passagem para apenas uma pessoa, com o grupo todo caminhando em fila indiana. Havia a necessidade de manter a atenção constante para se precaver dos ataques traiçoeiros das tribos de índios hostis e do ataque de animais os mais diversos, desde os grandes felinos, como a onça pintada, verdadeiro terror de algumas expedições, animais peçonhentos, como cobras e aranhas, cujas picadas eram, geralmente, fatais. 

     Para completar o inferno de Dante vivido pelos exploradores, havia a verdadeira praga dos mosquitos, com a transmissão das mais diversas moléstias, a mais preocupante e mais mortal de todas, a malária, que arrebatou incontáveis vidas, inclusive do grande bandeirante Fernão Dias Pais. 

     Quando um grupo de aventureiros, que ia numa direção, se encontrava com outro grupo que voltava em direção contrária, os dois grupos tinham de parar e passar, um por um, com o maior cuidado, se espremendo entre barrancos, árvores, folhas de palmeiras e samambaias, mulas carregadas das mais diversas utilidades, e gente suada, suja, mal-cheirosa (muitos passavam dias sem se lavar), vestida em andrajos dado o estrago que a natureza fazia em suas roupas. 

        Caio Prado Júnior, o grande estudioso do Brasil em seus aspectos histórico e sociológico, em sua clássica obra Formação do Brasil Contemporâneo, São Paulo, Editora Brasiliense-Publifolha, 2000 (pp. 245-274), nos relata, em deliciosa descrição, a epopeia que era se deslocar em grandes viagens Brasil afora.




Capitania de São Vicente, em 1597;





Capitania de São Vicente, em 1597. O mesmo mapa anterior redesenhado.



    Segundo Caio Prado Júnior (p. 262), as estradas coloniais brasileiras eram, sem sombra de dúvida e sem exceção, de péssima qualidade, mesmo em tempo seco. Durante as chuvas transformavam-se em atoleiros, impedindo a passagem. Quanto às vias fluviais, se dava o contrário: durante o período da estiagem, o leito dos rios se descobria, afloravam rochas o que aumentava o perigo dos obstáculos, as águas não davam volume para o deslocamento das embarcações, transformando estas vias em uma impossibilidade de viagem. Havia, no máximo, cinco estradas calçadas de pedra em todo o Brasil colônia e “podemos contar os trechos calçados nos dedos de uma só mão, e medi-los a palmo” (p. 262). O máximo que se fazia para enfrentar os atoleiros e alagamentos em trechos das estradas mais movimentadas, e onde se sofria mais o dano das chuvas, era revestir estes trechos com pedaços de paus atravessados. Mas, se isso firmava mais o leito, tornava a marcha por ele extremamente penosa, mormente para os animais. O único recurso era contar com o sol e desbastar a vegetação que ficava às margens para que a luz solar pudesse secar um pouco a área, atividade esta menos utilizada.



Organização das bandeiras.


Na construção das estradas, o critério de escolha do traçado era a economia, no “limite extremo do justo navegável” (p. 262). Era uma mesquinharia sem fim que se mostrava contraproducente. A ignorância, o amadorismo, o empirismo, levava os construtores desses caminhos a estendê-los por enormes distâncias, muitas vezes por simples erros de cálculo e direção. Os menores obstáculos eram contornados, a fim de se economizar trabalho em removê-los. Nas subidas, só se utilizavam linhas retas e diretas, exceto quando o aclive não as permitia. A subida das serras era um verdadeiro exercício de alpinismo. O incrível é observar como os animais de carga, suportando enormes pesos, se equilibravam na borda dos precipícios. Praticamente tudo era transportado no lombo de mulas, adquiridas de criadores do território onde hoje se localiza o Rio Grande do Sul. Caio Prado Júnior (p. 262) cita o Barão d’Eschwege: “Não é de se admirar que eles circulassem por muitos dias, sem se afastarem muito do ponto de partida”.










Transcrevemos aqui um trecho por demais elucidativo da longa digressão de Caio Prado Júnior (pp. 262-263):

A largura do leito, quando ela não é naturalmente proporcionada pela Natureza em condições aceitáveis como em terrenos unidos e livres de vegetação obstrutiva, limita-se ao estrito necessário: tropas e pedestres têm de marchar em fila indiana, e não raro as cargas das bestas ou as pernas dos cavaleiros roçam pelo arvoredo ou taludes marginais. O encontro nestes pontos de tropas viajando em sentido contrário dava lugar a não pequenas dificuldades, incidentes frequentes que serviam a Saint-Hilaire para considerações sobre a cortesia e delicadeza dos brasileiros que compara vantajosamente a grosseria e violência dos europeus. Pontes eram tão raras, que o mesmo naturalista chega a perguntar-se se tal gênero de construção era conhecido no Brasil... A travessia dos rios se fazia em regra a vau, obrigando muitas vezes a desvios consideráveis; ou quando isto era de todo impossível, em canoas onde iam pessoas e cargas, seguindo os animais a nado. Empregam-se em raros casos, nos rios de grande volume d’água e trânsito de vulto, balsas, como em Juazeiro, no São Francisco, e na travessia do Paraíba, na estrada do Rio para Minas.




Rancho. Mulas para o transporte das mercadorias.


Se já era difícil o deslocar-se pelo grande território brasileiro em fins dos setecentos, imagine como era cem ou duzentos anos antes. Alguns cronistas descreveram muito bem como eram essas peripécias. Um deles foi o padre jesuíta italiano Giovanni Antonio Andreoni, ou João Antônio Andreoni, que entrou para a historiografia brasileira com o codinome de André João Antonil (este detalhe foi descoberto, após minuciosa pesquisa, por Capistrano de Abreu em fins do século XIX, o que revela o gênio deste que foi o maior historiador brasileiro). 

      Nascera Antonil em Lucca, na Toscana, em 8 de fevereiro de 1649. Formou-se em Direito Civil pela Universidade de Perugia. Em 1667, ingressou na Companhia de Jesus, em Roma, onde passou a lecionar no seminário jesuíta. Foi descoberto pelo Padre Antônio Vieira, que passou a admira-lo pelo seu trabalho e o convenceu a vir para o Brasil. Em 1681, chegou a Salvador, na capitania da Bahia, onde ficou até seu falecimento, em 1716. Foi reitor do Colégio dos Jesuítas por duas vezes, e de 1705 a 1709 foi o Provincial. Realizou algumas breves visitas às capitanias de Pernambuco e Rio de Janeiro. Foi um atento observador das coisas do Brasil, em especial da economia, tendo escrito com profundidade e erudição sobre a economia da Colônia, em particular a produção de açúcar e de tabaco, a criação de gado e a mineração (esta baseada apenas em informações de outros). 

     Antonil descreveu importantes dados sobre a produção, as técnicas produtivas na época utilizadas, fazendo digressões sobre as condições de trabalho, sociais e políticas. Em 1711, foi publicada em Lisboa sua obra Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas, escrita um ano antes. Tornou-se um clássico e uma referência para toda a historiografia brasileira posterior. Até hoje seu nome é muito citado em dissertações de mestrado e teses de doutorado em História pelo Brasil afora. É considerada a melhor obra já escrita sobre as condições sociais e econômicas do Brasil, no início dos setecentos. 

      Antonil tinha divergências com o Padre Antônio Vieira, apesar de sua grande amizade. Uma delas é que Vieira era contra a escravização do gentio, ao passo que Antonil não o era muito. Vieira nunca atacou os judeus e até mesmo defendia os cristãos-novos. Já Antonil traduziu uma obra italiana antissemita. Outra divergência é que, apesar de criticar muito os métodos de colonização dos portugueses, Vieira os favorecia nas nomeações para os principais postos da Companhia de Jesus na Colônia. Antonil, por sua vez, favorecia os italianos e alemães, mesmo os nascidos no Brasil, para esses mesmos cargos. Após ter sido repreendido por Tirso González, Provincial Geral da Companhia de Jesus, por esses favorecimentos a italianos e alemães, Antonil se queixou que os jesuítas italianos eram considerados estrangeiros pelos portugueses e proibidos de visitar as Minas Gerais, que ainda não eram uma capitania.




Paulistas à procura do ouro.



Cultura e Opulência do Brasil foi censurada pela Coroa portuguesa, receosa de que sua divulgação sobre os achados de ouro e das drogas na região das Minas Gerais contribuísse para o contrabando internacional, favorecendo os inimigos da Coroa, o que acabou ocorrendo independentemente de Antonil. Os livros já publicados foram confiscados, restando poucos exemplares, hoje raridades bibliográficas históricas, disputadas por universidades e bibliotecas de todo o mundo. Sua obra somente foi reeditada no Brasil em 1837, já no Império. Alguns exemplares, de edições do século XX, podem ser encontrados no setor Mineiriana, da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa, em Belo Horizonte. 

     Dentre as inúmeras observações de Antonil sobre a mineração do ouro, podemos ressaltar as denúncias de que a descoberta do ouro fez com que o preço das mercadorias se elevasse a níveis insuportáveis, o que levou à escassez de alimentos e sua consequência mais direta: a fome, que afligiu a região das Minas Gerais por mais de meio século. Além disso, a descoberta do ouro elevou os preços do açúcar e de outras mercadorias. Essas tornaram-se escassas no litoral na medida em que eram enviadas às Minas Gerais. Ocorreu aumento considerável no preço dos escravos, houve ruína de muitos engenhos de açúcar pela falta de mão de obra escrava, e ocorreu a dissolução dos costumes e da moral já que todos queriam enriquecer da noite para o dia, a qualquer custo, nem que fosse preciso matar outro ser humano. De Antonil são conhecidas algumas frases que se tornaram lendárias: “os escravos são os pés e as mãos do senhor de engenho" e “O Brasil é o inferno dos negros, purgatório dos brancos e paraíso dos mulatos e das mulatas".









O trabalho de Antonil foi extremamente importante para o conhecimento do Brasil Colônia. Os interessados podem encontrar esta obra, que é de domínio público, no link abaixo:


Quando Antonil viajou ao Rio de Janeiro, tomou conhecimento da grande epopeia que era chegar até as Minas Gerais pelo único roteiro economicamente viável: partindo da cidade de São Paulo de Piratininga. Naquele tempo, era praticamente impossível para alguém, no Rio de Janeiro, deslocar-se diretamente de lá para a região da mineração do ouro. A pessoa teria que descer pelo litoral, utilizando-se da via marítima, ou pela picada existente entre o litoral e a Serra do Mar, até atingir São Vicente. Daí, seguindo pelo Caminho do Mar, subir a Serra e chegar a São Paulo, no altiplano de Piratininga. Somente de lá partia a trilha por terra em direção ao novo Eldorado. Era chamada de Caminho Velho, que foi também o antigo caminho dos bandeirantes que demandavam o território mineiro. Estes, por sua vez, haviam aumentado a picada já utilizada pelos índios em eras ancestrais. Era jornada absurda de dois meses.



O Caminho Velho.
Fonte: Resende, Maria Efigênia Lage de; Moraes, Ana Maria. Atlas Histórico do Brasil.
Georeferenciamento: Maria Márcia Magela Machado (IGC;UFMG).
Resende, Maria Efigênia Lage de. Itinerários e interditos na territorialização das Geraes.
In:  Resende, Maria Efigênia Lage de; Villalta, Luiz Carlos (Org.). História de Minas Gerais.
As Minas Setecentistas 1
.  Belo Horizonte. Autêntica; Companhia do Tempo, 2007.  Pg. 35;




Havia também um segundo trajeto do Caminho Velho partindo de Paraty até o Vale do Paraíba, em Guaratinguetá, na capitania de São Paulo, atravessando a Serra do Mar por uma garganta que facilitava e encurtava o trajeto para quem saia do Rio de Janeiro. Este local se chamava Vila do Falcão (atual Cunha) e, com ele, os viajantes não precisavam descer até São Paulo. Ele foi construído sobre uma antiga trilha indígena, chamada peabiru, que era utilizada pelos Guaianás. A jornada do Rio de Janeiro até a zona da mineração durava mais de três meses.



Roteiro do Caminho Velho, 1707.


Tal é a importância do relato para a nossa história, e para entender o que era a aventura de penetrar o sertão do Brasil colonial, que agora transcrevemos um trecho de Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas, publicado na Revista do Arquivo Público Mineiro, Ano IV, pp. 531-538:

"Roteiro do caminho da vila de S. Paulo para as Minas Gerais e para o Rio das Velhas.
Gastam comumente os paulistas, desde a vila de S. Paulo até as Minas Gerais dos Cataguás pelo menos, dois meses; porque não marcham de sol a sol, mas até o meio dia e quando muito até uma ou duas horas da tarde: assim para se arrancharem, como para terem tempo de se descansar, e de buscar alguma caça, ou peixe aonde o há, mel de pau e outro qualquer mantimento. E desta sorte aturam com jtão grande trabalho.
O roteiro do seu caminho, desde a vila de S. Paulo até a Serra de Itatiaia, onde se divide em dois, um para as minas do Caité, ou ribeirão de Nossa Senhora do Carmo, e do Ouro Preto, e outro para as minas do Rio das Velhas, é o segunte, em que se apontam os pousos e paragens do dito caminho, com as distâncias que tem e os dias que pouco mais ou menos se gastam de uma estalagem para outra, em que os ministros pousam, e, se é necessário, descansam, e se refazem do que hão mister e hoje se acha em tais paragens.
No primeiro dia saindo da vila de S. Paulo vão ordinariamente pousar em Nossa Senhora da Penha, por ser (como eles dizem) o primeiro arranco de casa: e não são mais que duas léguas.
Daí vâo à aldeia de Tacuaquisetuba, caminho de um dia.
De Mogi vão às Laranjeiras, caminhando, quatro ou cinco dias até o jantar.
Das Laranjeiras até a vila de Jacareí, um dia até três horas.
De Jacareí até a vila de Taubaté dois dias até jantar.
De Taubaté a Pindamonhangaba, freguesia de Nossa Senhora da Conceição, dia e meio.
De Pindamonhangaba até a Vila de Guiratinguetá, cinco ou seis dias até o jantar.
De Guiratinguetá até o porto de Guaipacaré, onde ficam as roças de Bento Rodrigues, dois dias até o jantar.
Destas roças até o pé da serra  afamada de Amantiqueira, pelas cinco serras muito altas, que parecem os primeiros morros, que o ouro tem no caminho, para que não cheguem lá os mineiros, gastam-se três dias até o jantar.
Daqui começam a passar o ribeiro, que chamam passa vinte, porque vinte vezes se passa e se sobem as serras sobreditas para passar as quais, se descarregam as cavalgaduras, pelos grandes riscos dos despinhadeiros, que se encontram e assim gastam dois dias em passar com grande dificuldade estas serras; e daí se descobrem muitas e aprasíveis árvores de pinhões, que a seu tempo dão abundância deles para o sustento dos mineiros, como também porcos monteses, araras e papagaios.
Logo passando outro ribeiro, que chamam passa trinta, porque trinta e mais vezes se passa, se vai aos pinheiros: lugar assim chamado, por ser o princípio deles e aqui há roças de milho, abóboras e feijãi, que são as lavouras feitas pelos descobridores das minas e por outros que por aí querem voltar. E só disto constam aquelas e outras roças nos caminhos e paragens das minas e quando muito, hoje, acham-se criação de porcos domésticos, galinhas e frangões, que vendem por alto preço aos passageiros, levantando-o tanto mais, quanto é maior a necessidade dos que passam. E daí vem o dizererm que todo o que passou a serra de Amantiqueira, aí deixou dependurada, ou sepultada a consciência.
Dos Pinheiros se vai à estalagem do Rio Verde, em oito dias, pouco mais ou menos, até o jantar e esta estalagem tem muitas roças e vendas de cousas comestíveis, sem lhe faltar o regalo de doces.
Daí caminhando três ou quatro dias pouco mais ou menos, até ao jantar, se dá na afamada Boa Vista a quem bem se deu este nome, pelo que se descobre daquele monte, que parece um mundo novo, muito alegre: todo campo bem estendido e todo regato de ribeirões, uns maiores que outros e todos com seu mato, que vai fazendo sombra, com muito palmito, que se come e mel de pau medicinal, e gostoso. Tem este campo seus altos e baixos; porém moderados; e por ele se caminha com alegria; porque têm os olhos que ver e contemplar na pespectiva do Monte Caxambu, que se levanta as nuvens com admirável altura.
Da Boa Vista se vai à estalagem chamada Ubay, onde também há roças e serão oito dias de caminho moderado até o jantar.
Do Ubay, em três ou quatro dias vão ao Ingay.
Do Ingay, em quatro ou cinco dias se vai ao Rio Grande o qual quando está cheio, causa medo pela violência com que corre, mas tem muito peixe e porto com canoas e quem quer passar paga três vinténs, tem perto suas roças.
Do Rio Grande se vai em cinco dias, ao Rio das Mortes, assim chamado pelas que nele se fizeram e esta é a principal estalagem onde os passageiros se refazem por chegarem já muito faltos de mantimentos. E neste rio e nos ribeiros e córregos, que nele dão, há muito ouro e muito se tem tirado e tira: o lugar é muito alegre, e capaz de se fazer nele morada estável, se não fosse tão longe do mar.
Desta estalagem vão em seis ou oito dias às plantações de Garcia Rodrigues.
E daqui, em dois dias chegam à Serra de Itatiaia.
Desta serra seguem-se dois caminhos: um que vai a dar nas Minas Gerais, do Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo e do Ouro Preto e outro, que vai a dar nas minas do Rio das Velhas cada um deles de seis dias de viagem. E desta serra também começam as roçarias de milho e feijão a perder-se de vista, onde se provêm os que assistem e lavram nas minas”.



Rugendas, 1835. Lavagem do Ouro. .


Como dissemos no início, a jornada de Manoel Corrêa de Souza não foi tão arriscada, trabalhosa e temerária. As vias de comunicação por terra na capitania de Minas Gerais já tinham melhorado sensivelmente. Além do mais, o território transposto por Manoel Corrêa de Souza não era tão acidentado quanto este descrito por Antonil. Mas esta descrição nos serve como referência de como eram feitas as viagens até o início do século XIX em nosso território. Algo inimaginável nos dias de hoje. Coisa para gente intimorata e forte. 

      A obra Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas foi traduzida, em 2012 para o inglês, pela Tagus Press da Universidade de Massachusetts Dartmouth, com o apoio da Fundação Biblioteca Nacional, do Rio de Janeiro.

Ver em: http://bookcenterbrazil.wordpress.com/tag/antonil/

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