quarta-feira, 24 de abril de 2013

A história revisitada

Paredão da Serra de Carrancas, obstáculo na marcha dos bandeirantes.


      Empreender um roteiro histórico é sempre uma tarefa fascinante. Principalmente quando se trata de visitar locais onde viveram e morreram ancestrais que, não fossem os livros de História, seriam totalmente desconhecidos para nós. Visitar Paris, Roma, Florença, Veneza e tantos outros locais de grande importância histórica, além de sua beleza arquitetônica, artística e cultural, já é um feito memorável. Mas quando se trata de um local, por mais simples que seja, onde viveram seus antepassados, além dos aspectos referidos acima, desencadeia uma emoção que não pode ser aquilatada em palavras. Tal foi a experiência que vivi nos últimos dias, quando empreendi uma viagem sentimental a localidades históricas onde viveram meus tetravós Manoel Corrêa de Souza e sua esposa Maria Andreza de Jesus.



A primeira visão da Serra de Carrancas.



O itinerário até Carrancas.



Já tive oportunidade, em outras postagens, de falar sobre Manoel Corrêa de Souza, o descendente de Cornélio de Arzão e que, num gesto de coragem, aventura e cálculo, tomou da Picada de Goiás, deixou para trás Carrancas (MG), sua cidade natal, e Lavras do Funil, onde se casara poucos anos antes, separando-se definitivamente de sua família, parentes e amigos, para enfrentar o desconhecido sertão bravio do Campo Grande, margem esquerda do Alto São Francisco. Em 1798, Manoel Corrêa de Souza e mais 38 outros sesmeiros e fazendeiros, fundaram o Arraial da Boa Vista, onde antes se localizava o Rancho da Boa Vista, em plena margem da Picada de Goiás, futura vila e cidade de Dores do Indaiá (MG). Tal gesto, merecedor de toda nossa admiração pela bravura, não importa se premido pelas necessidades financeiras de cuidar de uma família, quando a mineração do ouro já se encontrava em plena decadência na região aurífera mineira, e as fazendas de gado e a agricultura já se encontravam nas mãos de aventureiros paulistas e portugueses que os antecederam, deve ser considerado como uma verdadeira epopeia particular. Assim é que, movido por uma forte emoção e guiado pelo faro histórico, visitei estes dois locais já tão citados anteriormente em meus escritos.



A belíssima e lendária Serra de Carrancas. Início da subida 
para atravessar este monumento da natureza.



Baseado em Lavras, antiga Lavras do Funil, viajei por maravilhosos 80 quilômetros de pura magia geográfica, cercado por uma flora de beleza estonteante, de um céu esplendoroso de abril, em pleno planalto circundado pela Serra da Mantiqueira, e fui aportar na pequenina Carrancas, cidade de menos de quatro mil habitantes, no sul de Minas Gerais. Ali cheguei exatamente 225 anos depois que Manoel Corrêa de Souza deixou o lugar.



Outro ângulo do monumento.



Meu coração batia acelerado quando, ao atravessar uma elevada garganta que corta bem no alto a Serra das Carrancas, a mais de mil e duzentos metros de altitude, avistei a cidadezinha que parecia adormecida no meio do nada. Nada é meio de expressão, pois a vida ali pulula por todos os cantos. O som do vento, dos pássaros, dos sinos da Matriz, o mugir das vacas ao longe, torna tudo como que um sonho. Parece que estamos em outro mundo. E que belo mundo!



O Caminho Velho se  encontra com o Caminho Novo,
vindo do Rio de Janeiro. Compõem a Estrada Real.



Voltemos um pouco na história. Carrancas fica no trajeto do Caminho Velho, a passagem dos bandeirantes para as Minas Gerais. Construído sobre milenar trilha indígena, o Caminho Velho por mais de cem anos era a única comunicação do território mineiro com a Capitania de São Vicente, partindo de São Paulo de Piratininga, ou com sua variante que partia de Parati, base de quem saia do Rio de Janeiro para Minas, chegando a Guaratinguetá, no Vale do Paraíba, quando se encontrava com o Caminho Velho. Daí para a frente se enfrentava os paredões da Serra da Mantiqueira. Os índios já usavam, há séculos, a garganta do Embaú, atual cidade de Passa Quatro, o que facilitava, e muito, a transposição dessa imensa e bela Serra. Em seguida, se atingia o registro de Capivari e Boa Vista, a região que compreende a atual Pouso Alto e, logo após, Baependi.



A bandeira de Fernão Dias Pais.
Fonte: Resende, Maria Efigênia Lage de; Moraes, Ana Maria. Atlas Histórico do Brasil.
Georeferenciamento: Maria Márcia Magela Machado (ICG/UFMG). 
In: Resende, Maria Efigênia Lage de; Villalta, Luiz Carlos. História de Minas Gerais. As Minas Setecentistas. Belo Horizonte. Editora Autêntica/Companhia do Tempo, 2007, pg. 30. 



Ao transpor a ramificação da Mantiqueira, hoje conhecida como Serra de Carrancas, verdadeiro paredão a impedir a marcha das bandeiras paulistas, estes intrépidos e fortes aventureiros, desciam a vasta montanha e se depararam com um vale extremamente fértil, coberto de uma mata em tudo atlântica, cortada por inúmeros riachos, repleta de cachoeiras maravilhosas (são em torno de 70), com uma fauna e flora riquíssimas, habitada pelos ferozes caiapós (os cataguás) entrincheirados nas inúmeras grutas da região, e, extenuados, se arrancharam. Logo a riqueza do solo, incluindo o ouro de aluvião, os fez montar aí um acampamento para plantio de milho e mandioca para servir às futuras bandeiras. Por este acampamento passaram todas as grandes bandeiras da segunda metade do século XVII, incluindo a de Fernão Dias Pais, que aí permaneceu por algumas semanas, se recompondo do grande desgaste da travessia da Mantiqueira, e dos perigos e ameaças do Caminho Velho.

















Espetacular sequência de fotos revelando a visão
que temosdo alto da Serra de Carrancas.



Novos bandeirantes paulistas, notadamente de São Paulo e Taubaté, e aventureiros portugueses, foram se adentrando pelo território mineiro passando pelo local. Em 1701, o bandeirante Manoel Garcia Velho aí se arranchou. Mas o primeiro povoado somente foi construído no final da segunda década do século XVIII. Segundo o geógrafo Saint Adolph, em 1718, o Capitão-mor João de Toledo Piza e Castelhanos requereu e obteve da Coroa portuguesa uma sesmaria logo após ultrapassar o Rio Grande, exatamente onde hoje é Carrancas. Ele, e outros parentes, eram descendentes do Conde de Oreja, como seu irmão o padre Lourenço de Toledo Taques, acompanhados por três dos seus genros, Salvador Corrêa Bocarro, Miguel Pires Barreto e José da Costa Morais, homens experientes e destemidos.



Chegada a Carrancas.



Em função da riqueza da terra, sua fertilidade e ouro, este não muito abundante, entretanto, este corajoso grupo iniciou a construção do povoado. Incentivaram a vinda de seus parentes de São Paulo, seus escravos e amigos. Mais e mais paulistas e portugueses foram ai se arranchando. Em 1721 já estava edificada a capela dedicada a Nossa Senhora da Conceição, cuja data de celebração é em 8 de dezembro. Inicialmente o lugar ficou conhecido como Nossa Senhora do rio Grande. A agricultura foi se desenvolvendo rapidamente, bem como a pecuária, enquanto a mineração do ouro foi decaindo até desaparecer. Os mineradores foram se mudando para locais como Lavras do Funil, que, pouco antes, havia se demonstrado rica em ouro de aluvião. O nome Carrancas é derivado de dois fatores: a conformação de determinadas rochas locais e a modificação das mesmas em decorrência do desgaste provocado pela mineração.



A praça da Matriz.



A igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Carrancas foi construída com pedras de quartzito, algumas com até uma tonelada de peso. Um dos discípulos do Aleijadinho, Joaquim José da Natividade, pintou seu altar-mor. Os interessados, mais detalhistas, perceberão uma sutil diferença entre as duas torres principais.



Carrancas. Matriz de Nossa Senhora da Conceição.



Carrancas foi recebendo uma grande quantidade de bandeirantes paulistas e também de imigrantes, em particular do arquipélago dos Açores. Conhecida é a história de três irmãs açoreanas, naturais da Ilha do Fayal, que entraram para o nosso registro como as “Três Ilhoas”. Vieram para Minas, para Carrancas, e para a região de São João del-Rei. Delas se originaram grandes e tradicionais famílias do sul de Minas, como os Rezende, Carvalho, Ribeiro, Andrade, Junqueira, Ferreira, Guimarães etc. Uma delas, Júlia Maria da Caridade, foi a responsável pelas obras da Capela de Nossa Senhora da Conceição do Porto do Saco, atual distrito de Carrancas. Esta capela é um dos mais antigos prédios da cidade. Reza a lenda que sua construção foi idealizada pela aparição de uma imagem, supostamente de Nossa Senhora da Conceição, na margem do rio Grande.



Carrancas. Matriz de Nossa Senhora da Conceição.



O grande cientista, geógrafo e botânico francês Auguste de Saint Hilaire, em sua segunda viagem ao Brasil, entre 1819 e 1822, passou por Carrancas e assim se referiu ao lugar:

"... uma pequena aldeia situada numa encosta de colina, com umas vinte casas construídas em volta de uma praça coberta de grama."

Fazendas foram sendo construídas na região e mais paulistas foram chegando. Entre eles, provavelmente na década de 1730 ou 1740, meus antepassados Guilherme Corrêa de Arzão e Escolástica Borges de Aguiar, filha de Antônio Borges e Páscoa Ramos Martins, ambos naturais de Santana de Parnaíba, São Paulo. Guilherme Corrêa de Arzão era filho de Manoel Corrêa de Arzão e Maria de Lima, ele descendente do flamengo Cornélio de Arzão, motivo de outras postagens anteriores deste blog. Esses dados podem ser obtidos na Genealogia Paulistana, de Silva Leme, conforme os aportes realizados por Bartyra Sette. Seu casamento ocorreu nesta cidade paulista em 1726. Guilherme e Escolástica tiveram dois filhos: Cornélio Corrêa de Arzão e Estêvão Corrêa de Arzão, ambos naturais de Santana de Parnaíba. Guilherme Corrêa de Arzão faleceu, provavelmente, em 1741, em Carrancas. Escolástica Borges de Aguiar casou-se, pela segunda vez, com o açoreano (Santa Bárbara da Ilha do Fayal) Francisco Xavier da Silveira, também viúvo. Escolástica seria sua terceira esposa. Ela veio a falecer em 1769, em Carrancas.



Carrancas. Matriz de Nossa Senhora da Conceição.


Como também já vimos em outra postagem, Cornélio Corrêa de Arzão casou-se, em Carrancas, com Francisca de Souza, natural de Santana de Parnaíba, filha de Carlos Martins de Souza e Tomásia Borges de Aguiar, sua prima em segundo grau. Para que tal casamento pudesse ocorrer houve a necessária dispensa de impedimento em decorrência da consanguinidade, uma exigência eclesiástica. Após o casamento, em 23 de julho de 1756, por razões desconhecidas (ver a postagem O Legado de Cornélio de Arzão), Cornélio Corrêa de Arzão mudou seu nome para José Corrêa de Arzão, passando, daí por diante, a ser conhecido por este nome. José/Cornélio e Francisca tiveram nove filhos.



Carrancas. Matriz de Nossa Senhora da Conceição.
Os belos jardins.


Carrancas. Matriz de Nossa Senhora da Conceição.
Os belos jardins.


Carrancas. Matriz de Nossa Senhora da Conceição.
Os belos jardins.


Carrancas. Matriz de Nossa Senhora da Conceição.
Os belos jardins.



O segundo filho do casal José Corrêa de Arzão e Francisca de Souza foi Manoel Corrêa de Souza, patriarca dos Corrêa de Dores do Indaiá. Ele foi batizado em 20 de dezembro de 1758, na Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Carrancas. Não consta sua data de nascimento. Foram seus padrinhos o Sargento-Mor Francisco Moreira de Carvalho e Tomásia Maria, solteira, filha de D. Francisca de Moraes, viúva.



Carrancas - interior da Matriz de N.S. Conceição - Foto Amor Eterno Amor - TV Globo



Carrancas. O altar de N.S. da Conceição.


Carrancas. Imagem de N.S. da Conceição.


Carrancas. Matriz de N.S. da Conceição. Interior.



Em 7 de abril de 1780, aos 22 anos, Manoel Corrêa de Souza casou-se com Maria Andreza de Jesus, filha de Francisco Gomes da Cunha e Ana Gomes da Rocha, na Matriz de Santa Ana das Lavras do Funil. Oito anos depois, Manoel Corrêa de Souza requer e obtém uma sesmaria na região do Campo Grande, zona oeste do Alto Rio São Francisco, região pouco povoada, inóspita e sertão ainda bravio das Minas Gerais. Dois anos depois, funda, neste local, sua Fazenda dos Patos. Manoel Corrêa de Souza, agora conhecido em sua nova região de moradia como Correinha, se associou a vários sesmeiros e fazendeiros e fundou o Arraial da Boa Vista, na Picada de Goiás, como já foi relatado em postagens anteriores.



A Serra de Carrancas em fim de tarde.



O crepúsculo na Serra de Carrancas.



O crepúsculo na Serra de Carrancas.



O crepúsculo na Serra de Carrancas.



O motivo de toda esta descrição, que pode parecer repetitiva, se destina a reavivar no leitor a memória dos acontecimentos que agora retrato em imagens. Uma viagem de reconhecimento pelos lugares em que Manoel Corrêa de Souza, meu tetravô, viveu durante quase trinta anos de sua venturosa e prolífica existência. Um ser iluminado, em pleno Século das Luzes, no obscuro e desconhecido Campo Grande, do sertão das Minas Gerais, na longínqua colônia portuguesa chamada Brasil.



Matriz de Santana de Lavras. Local onde se casou
Manoel Corrêa de Souza, em 1780.



Entrada da Matriz de Santana em Lavras.



Interior da Matriz de Santana, em Lavras.



Interior da Matriz de Santana, em Lavras.



Interior da Matriz de Santana, em Lavras.


Teto da Matriz de Santana, em Lavras.


Altar da Matriz de Santana, em Lavras.



Altar da Matriz de Santana, em Lavras.



Detalhe do interior da Matriz de Santana, em Lavras.



Imagem de Santana, em Lavras.


Lateral da Matriz de Santana, em Lavras.



Detalhe do interior da Matriz de Santana, em Lavras.



Detalhe do interior da Matriz de Santana, em Lavras.


Sino da Matriz de Santana, em Lavras.


Matriz de Santana, em Lavras.


Detalhe do interior da Matriz de Santana, em Lavras.



Detalhe do interior da Matriz de Santana, em Lavras.



Detalhe do interior da Matriz de Santana, em Lavras.



Detalhe do interior da Matriz de Santana, em Lavras.



Defronte a entrada lateral da Matriz de Santana, em Lavras.



No pórtico da Matriz de Santana, em Lavras.



Provável trajeto percorrido por Manoel Corrêa de Souza, ao sair de
Lavras do Funil, em direção a Ribeirão Vermelho, antes da
chegada à Picada de Goiás.

Provável trajeto percorrido por Manoel Corrêa de Souza, ao sair de
Lavras do Funil, em direção a Ribeirão Vermelho, antes da
chegada à Picada de Goiás.


Ribeirão Vermelho, provável trajeto de
Manoel Corrêa de Souza antes da

chegada à Picada de Goiás.


Trecho da antiga estrada que ligava Lavras do Funil a
Ribeirão Vermelho. Trajeto provável de Manoel Corrêa de Souza
em direção ao Campo Grande.


Trecho da antiga estrada que ligava Lavras do Funil a 
Ribeirão Vermelho. Trajeto provável de Manoel Corrêa de Souza
em direção ao Campo Grande.