José Ferreira Carrato. Mapa da capitania de Minas Gerais, s/d. |
Mesmo tendo vivido pouco em Dores do Indaiá, a cidade
continuou fazendo parte de minha vida de forma indelével. Nasci em São Paulo
(SP), em 1944, já que meus pais residiam em Barretos, no mesmo estado. Quando
de meu nascimento, os médicos aconselharam meus pais a procurar a capital dado
que era uma gravidez de alto risco. O parto anterior de minha mãe, ainda em Dores, em 1942, que fora o
primeiro, havia sido extremamente difícil e ela quase perdera a vida. Nós
moramos em Barretos até 1947, quando meus pais, eu e mais dois empregados, voltamos
para Minas e fomos residir em Campos Altos. Meu irmão, Dilermando Corrêa
Filho, nasceu pouco após nossa vinda para Minas, em Luz. Posteriormente,
nos mudamos para esta cidade.
Henrique Gerber, 1867. Carta da província de Minas Geraes, com indicação das actuaes estradas e das despesas com ellas feitas durante o decennio de 1855 e 1865. |
A primeira vez que tive contato com Dores foi por volta
de 1947. Ali nos hospedávamos na casa de meus avós paternos Sebastião Corrêa de
Souza e Virgínia Angélica Fiúza, que moravam com sua filha solteira Maria da
Conceição Corrêa. Na foto abaixo, por volta de 1948, eles podem ser vistos na
pequena varanda da casa.
Lembro-me bem da penosa viagem naqueles
tempos, em jardineira sacolejante pelas estradas esburacadas e empoeiradas.
Ainda não havia a BR 262, construída mais de duas décadas depois. Deixamos Barretos,
passamos por Uberaba, Araxá, Ibiá, São Gotardo e, para pavor de boa parte dos
passageiros, cruzávamos a Serra da Saudade de onde, lá do alto, se descortina
uma vista simplesmente deslumbrante.
Uma jardineira que ligava Dores do Indaiá às cidades próximas na década de 1940. Foto do acervo de Antônio Fernando de Melo Fiúza. Autoria desconhecida. |
Jamais desaparecerão de minha memória as
imagens que via e as emoções que sentia naquele fim-de-mundo. Um dos trechos
mais apavorantes era passar pela Curva
da Morte, isto mesmo, a curva tinha este nome e nela já
havia morrido muita gente, quando ônibus, automóveis ou caminhões mergulhavam no despenhadeiro sem fim. As cruzes fincadas no chão, ora junto ao talude do
corte da montanha, ora na descida do despenhadeiro, estavam lá para testemunhar
a desgraça de muitas famílias. Meu rosto estava colado ao vidro da janela e eu
via aquele espetáculo emudecido de pavor.
Mappa da viação do Estado de Minas Geraes, 1928. Ferrovias. |
Abaixo de nós, rente ao piso da estrada, o
chão desaparecia e se perdia numa descida estarrecedora. Ao longe, bem longe,
sinais de fumaça, revelando a presença do homem, sempre nociva à natureza e,
vez ou outra, pequenos pontos brancos representando cidades ou vilarejos. Havia
quem saísse do lado em que a jardineira dava para o penhasco, para ver se fazia
mais peso no lado contrário, a fim de estabilizar o veículo e não deixa-lo
tombar na ribanceira mortífera. Sobressaltados, passávamos por todas aquelas
curvas traiçoeiras e começávamos a lenta descida da serra. Ao fim de penosos
tormentos, cobertos de poeira (meu pai usava um guarda-pó, hábito muito comum
nos viajantes daqueles tempos, para proteger sua roupa), cansaço e medo, após passar pelo vilarejo que mais tarde se tornaria a cidade de Serra da Saudade, chegamos ao planalto do pé da serra. Enfim! Dentro de mais algum tempo passamos
por Estrela do Indaiá, onde uma breve pausa foi feita para um pequeno repouso,
a tradicional ida ao toilete, um cafezinho, um biscoito e um pão de
queijo. Tudo bem mineiro!
Serra da Saudade. Vista nordeste.
S/d. Foto Altoabaeté.
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Mas, a jornada para Dores do Indaiá ainda
não terminara. Passávamos pelo morro do Palhano, um cocoruto a oriente da Serra
da Saudade, acidente geográfico este que nunca mais sairia de minhas lembranças
infantis, dado que meu pai contara, por diversas vezes, que, quando criança e brincava
com amigos por aquelas bandas, se perdera lá no alto do morro. Em minhas
fantasias ficava a imaginar-me perdido naquelas grimpas, isolado do mundo,
ameaçado por animais selvagens (a onça pintada era sempre a maior vilã de
todas!) e uma profunda aflição me acudia. O sono daquelas noites era sempre
tumultuado por sonhos ameaçadores, em que a onça pintada, a Curva da Morte, o
alto da Serra, a poeira e o cascalho da estrada, e o abismo infinito me
açoitavam como a Heathcliff em sua saga no Morro dos Ventos Uivantes, do
romance da britânica Emily Bronté. Nada era capaz de amenizar esse sofrimento,
nem a visão do verde da Mata da Eufrásia, já no planalto ao sopé da serra, que
atravessávamos, pois se encontrava bem no nosso longo trajeto. Somente
muito recentemente soube que essa mata recebera seu nome, ainda em princípios
do século XIX, em homenagem a uma ancestral de nossa família, proveniente da
fazenda Cachoeira, situada naqueles ermos.
Serra da Saudade. Vista para Estrela do Indaiá e Morro do Palhano.
S/d. Foto Altoabaeté.
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Serra da Saudade. Curva da morte. Vendo hoje não parece
assim tão íngreme e escarpada como ficara gravada na mente
de uma criança de 3 anos. S/d. Foto Luiz C. Alves Sg.
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Mapa de Dores do Indaiá, antes de 1923. Fonte: Carlos Cunha
Corrêa, Serra da Saudade, p. 224-A.
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Para aumentar a angústia, passávamos ainda
pelo Vale do Caixão, onde havia uma venda e uma pequena oficina de borracheiro,
para o caso de reparos em pneus furados ou rasgados pelas pedras da estrada.
Havia outras casas e moradores na região, o que tornava o local um pequeno
povoado. Esse nome não me era muito animador e, confesso, ficava louco para
sair logo dali, um ambiente para mim um tanto macabro. Muito depois, eu soube
que o nome do local celebrava a vida e não a morte, quando um dos moradores da
região, que se acreditava morto e, quando tinha seu corpo levado na carroceria de um caminhão para
Dores, erguera-se do caixão e, desfeito o apavoramento inicial dos seus
acompanhantes, tudo foi celebrado com alegria e júbilo. O caixão foi,
propositalmente, atirado numa das grotas daquele vale, para ser esquecido. Mas
não o foi, tanto que deu nome à infeliz paragem. Mas não havíamos ainda
chegado. Era necessário percorrer um bom pedaço de chão para que a meta fosse
atingida. Ultrapassamos o córrego do Leitão, os ribeirões das Antas, dos
Porcos, dos Patos, era uma bicharada sem fim, quando avistávamos ao longe a
colina que nos separava de Dores do Indaiá. No topo desta última colina
avistamos as primeiras casas e a torre da Matriz de Nossa Senhora das Dores.
Meus pais estavam emocionados. Emoção que me acompanha desde então quando vou a
Dores e tenho esta vista inesquecível do alto da colina. Enfim, chegamos sãos e
salvos depois desta verdadeira aventura! Que em minha memória permanece como se
tivesse sido cumprida há uns poucos anos!
Uma das jardineiras daqueles tempos, mais moderna,
entretanto, que aquela na qual empreendi essa
verdadeira epopeia que era vir de São Paulo
para Minas Gerais.
Fotografia s/d. Autor desconhecido.
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A cidade de Dores do Indaiá que conheci era bem
diferente da atual. Para um menino, era uma cidade grande, cheia de atrativos,
repleta de parentes e amigos. Aliás, o que mais via eram os parentes. De todas
as famílias, de todos os tipos, de todos os gostos. A tradição dorense era a
dos casamentos entre primos, mesmo os de primeiro grau. As autoridades
eclesiásticas faziam vistas grossas para tal comportamento, bem diferente dos
tempos coloniais ou do Império, quando, para que tais matrimônios fossem
celebrados, era necessária uma autorização eclesiástica especial. Apesar de ser
uma pacata cidade do interior, havia uma vida cultural e social muito
interessantes. Nas fotos seguintes pode-se ver um pouco da Dores do Indaiá
daqueles tempos.
A Matriz e o seminário. S/d. Autor desconhecido. |
Vista da cidade do alto da Matriz. S/d. Foto Philadelfo.
Esta foto foi reproduzida no livro “Serra da Saudade”,
de Carlos Cunha Corrêa. Foi tomada na década de 1940.
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Fui morar com meus avós em agosto de 1950,
logo após o falecimento de minha mãe, em Luz. Aqui começam minhas recordações
mais precisas de Dores do Indaiá. Temos poucas fotos desta casa. Uma delas, em
um barracão ao lado da casa, vista logo abaixo, retrata as bodas de ouro de
meus avós paternos, Sebastião Corrêa de Souza e Virgínia Angélica Fiúza, em 6
de junho de 1951, evento que reuniu toda a família em torno dos avós tão
queridos.
Bodas de ouro de Sebastião Corrêa de Souza
e Virgínia Angélica Fiúza. Seis de junho de 1951. |
Em 2003, após o
falecimento de minha tia Maria da Conceição Corrêa, meu filho Marcelo
Albuquerque Corrêa, artista plástico, pintou quatro aquarelas retratando esta
casa. Elas revelam perfeitamente o que ficou em meu imaginário.
Aqui as reproduzo:
Esta é a visão lateral da casa, onde se vê o jardim,
que também servia de garagem, e a pequena varanda
da qual guardo lembranças vívidas.
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Cine teatro Indaiá. S/d. Autor desconhecido.
Vivi grandes emoções neste cinema, hoje transformado
em depósito de material de construções.
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Morei com meus avós paternos até dezembro
de 1951. Neste ano, fiz o meu primeiro ano do curso primário no Grupo Escolar
Dr. Zacarias. Minha primeira professora foi D. Carminha Soares, prima em
primeiro grau de meu pai. Era enérgica e exigente, mas muito respeitada e
admirada por todos. Nossa diretora era D. Anita Faria, amiga da nossa família e
que morava bem próximo de nós.
Grupo Escolar Dr. Zacarias. S/d. Autor desconhecido. |
Em 2001, celebramos o cinquentenário de
conclusão do 1o. ano do curso primário. Na ocasião, conseguimos reunir nove
colegas de uma turma de trinta alunos. Festa inesquecível, com direito a
saudações, discursos e apresentações de coral, dança, declamação de poesias. Um
de nossos colegas agradeceu pelo grupo, o jornalista Ruben-Hur Rocha. Belas
palavras, que expressaram nossa grande emoção. Descerramos a placa de bronze
onde se encontra inscrita a relação da diretoria da escola em 1951, da diretora
de 2001, da professora, e de todos os colegas, ao lado da sala de aula que
frequentamos. Foi uma emoção indescritível que nos marcou a todos.
Placa comemorativa dos 50 anos da turma de 1951 no Grupo Escolar Dr. Zacarias, em dezembro de 2001. |
Em dezembro de 1951, deixei Dores, em função do
casamento de meu pai, em segundas núpcias, em Luz, onde com ele residi e
estudei no período 1952/55. Em 1956 estudei em regime de internato no Ginásio São Geraldo, de Divinópolis, dirigido pelo lendário professor Martin Cyprien, de origem francesa. Somente retornei a Dores em 1957, para iniciar o
primeiro ano de Ginásio, inicialmente no antigo prédio da Escola Técnica de
Comércio São Luiz, em 1957, próximo à Matriz de N.S. das Dores, e nos dois anos seguintes no Colégio Dorense, na
Praça do Rosário.
Tivemos alguns
professores extraordinários, dentre os quais posso ressaltar: João Neves
(matemática), Mario de Oliveira Carvalho (francês), José de Oliveira Carvalho
(inglês), Ozanam Botinha (português), Adélia de Oliveira (geografia), Pedro de
Oliveira (Pedico – biologia), Leonardo Vasconcelos (latim), Amélia Soares de
Vasconcelos (história) e muitos outros cujos nomes minha memória teima em não
recuperar.
Seu diretor era o Prof. Ozanam Botinha.
Durante os três anos em que estudei em Dores, fui o aluno aprovado em primeira
colocação nas turmas, em função de disposição nova para estudar. Minha avó
Virgínia era uma pessoa encantadora, proporcionando-me total liberdade para
estudar, ao meu jeito. Minha tia Conceição Corrêa era vice-diretora do Grupo
Escolar Benjamim Guimarães e, trabalhando à tarde, não tinha tempo de cobrar-me
as lições. Assim, adquiri o censo de responsabilidade e aplicação nos estudos,
qualidades que me acompanham até hoje. Sempre considerei o ano de 1957 o Ano de Ouro de minha vida, pela grande motivação para os estudos despertada em
mim quando vivi essa temporada na cidade.
A pacata Dores do Indaiá de início da década de 1950, nos tempos em que ali vivi. S/d. Foto de autor desconhecido. |
A tranquilidade era a tônica desta bela cidade
do Campo Grande.
Foto de 1951. Autoria desconhecida. |
Bucólica, singela, poética. Assim era Dores do Indaiá nas
décadas de 1950/60.
S/d. Foto de autor desconhecido. |
Concluí a 3a. série do ginásio em 1959,
quando me mudei definitivamente de Dores do Indaiá, vindo para Belo Horizonte
em 8 de dezembro, onde meu pai já residia com a família. Na
Capital enfrentei o difícil concurso para o Colégio Estadual de Minas
Gerais (Estadual Central) e fui aprovado, com boa colocação, em função de meus
aplicados estudos em Dores. Saí de Dores, mas Dores não saiu de mim.
A estação do trem da RMV. S/d. Autor desconhecido.
Minha última passagem por Dores do Indaiá, no período
em que ali residi.
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Tomei
do trem da Rede Mineira de Viação em direção a Belo Horizonte, junto com muitos
colegas, parentes e amigos que vieram para as férias de fim de ano. Trem
lotado, partiu de Dores às 6 horas da manhã. Quando passava pelo Velho da
Taipa, distrito de Pitangui, descarrilou, tendo levado mais
de três horas até que fosse recolocado nos trilhos. Quando cheguei a Belo
Horizonte, à uma hora da madrugada, do dia seguinte, estava exausto, preto
de fuligem de carvão, com partes queimadas da roupa em decorrência das brasas
soltas pela locomotiva, mas feliz e, ao mesmo tempo, apreensivo pelo futuro que
me aguardava na Capital. Tudo na nova cidade era uma incógnita. Tudo
estava para ser construído. E assim foi.
Ficou
de Dores, em mim, os versos do grande poeta dorense, Tonico Caetano:
Nossa
cidade encantada,
De
horizontes luminosos,
Quanta
saudade desperta,
Com
seus aspectos formosos.
Fica
entre verdes colinas
E
passarinhos e flores
A
freguesia das Dores
Nos
fins dos sertões de Minas.
Antônio
da Silva Caetano Guimarães Júnior.
Paisagens
de Nossa Terra.
Belo Horizonte. Editora do Autor, 1970.
A estação ferroviária. S/d. Autor desconhecido.
Minha última visão da cidade.
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