Representação da floresta próxima ao Rio São Francisco no norte de Minas Gerais. Litografia colorida de C.Heinzmann. Ca. 1818. |
O
período compreendido entre o final do século XVII até meados do século XVIII,
algo em torno de sessenta ou setenta anos, foi o do apogeu da mineração do
ouro, pedras e outros metais nas Minas Gerais. Foi extraída uma quantidade incalculável
desse nosso patrimônio, inicialmente sem grandes dificuldades, já que
era ouro de aluvião, isto é, encontrava-se na superfície da terra, forrando os
leitos de regatos e ribeirões, nos vales entre morros e serras, ou em suas encostas
próximas e levado do Brasil para a Europa. Faria a riqueza e o poder de
qualquer nação, tornando-a indiscutivelmente a mais poderosa do planeta, se
todo ele tivesse ficado na posse de apenas um reino, mas não foi essa a
realidade dos fatos. O contrabando grassava sem controle por nossas bandas.
Calcula-se que de cada dez gramas de ouro, das quais era cobrado o imposto
real, chamado quinto, que correspondia a 20% da produção de cada garimpeiro, de
cada proprietário de lavras ou datas (demarcação retangular geográfica no solo,
onde cada proprietário que recebia a terra do governo tinha o direito de
explorá-la), eram extraviadas nove gramas. Isso se dava através dos recursos e
meios os mais variados e o ouro desaparecia, levado através das mais diversas
trilhas e picadas abertas no mato pelos garimpeiros e contrabandistas, para
destinos incertos. Na verdade, o destino desse ouro, diamantes e demais pedras
era uma praia, mais ou menos deserta, na costa brasileira, onde navios, também
clandestinos, os levavam para a Europa. Naturalmente, como era de se esperar,
sua rota final eram os portos de Londres e Amsterdã, capitais mundiais do
comércio de ouro e pedras, nas mãos de algumas companhias e de alguns
comerciantes, na maioria de origem judaica, que monopolizavam o mercado mundial
dessas preciosidades.
Representação segundo Von Martius das matas da Província de Minas Gerais e dos arvoredos de Minas Novas. |
Transportar
esse ouro, diamantes ou demais pedras pelas estradas oficiais, mais
confortáveis e bem construídas, e mesmo que fiscalizadas pelas tropas da Coroa
portuguesa, era uma aventura por demais arriscada. Quem se aventurasse na
travessia por essas vias, usando tropas de mulas e levando produtos
contrabandeados, era quase certamente parado nos vários postos militares,
colocados estrategicamente em todo o percurso da via e, além de ter seu produto
confiscado, era preso, trancafiado nas insalubres cadeias da capitania, enviado
para o Rio de Janeiro, processado, condenado, e, muitas vezes, enviado para o
degredo em Angola, na África. Ninguém queria assumir tal risco.
Primeira representação do território de Minas (1714), no Mapa das Minas do Ouro e São Paulo e costa do mar que lhe pertence |
Por
outro lado, o governo também precisava abrir estradas em direção ao sertão
inóspito, muito hostil pela presença de tribos de índios caiapós bravios que muitas vezes atacavam as caravanas matando a todos os que não conseguissem
fugir a tempo. Acrescente-se a isso a presença de inúmeros quilombos no
território das Minas, particularmente na região do sul da capitania e no sertão
do oeste do Rio São Francisco. Muitas vezes associados aos índios caiapós,
esses quilombos trucidavam todos que se aventurassem por essas trilhas e
veredas, pilhando os despojos. Os casos de tocaia e destruição de caravanas de
comerciantes, com suas mulas de carga e cavalos, são inúmeros na história da
Capitania de Minas Gerais. O objetivo do governo era construir estradas mais
seguras, evitando passar por território indígena ou próximo aos quilombos,
contornando serras e atravessando rios em locais mais propícios, para fazer
chegar até os pontos novos de mineração, como Paracatu. Nesta cidade o ouro foi
descoberto em 1725, mas sua extração oficial somente foi iniciada em 1744, em Mato
Grosso. Neste último o ouro havia sido descoberto em 1718, e em Goiás em 1722. A descoberta do ouro nessas longínquas plagas se deu após a
derrota dos paulistas na Guerra dos Emboabas. Expulsos da região aurífera das Minas
Gerais pelos reinóis, os bravos bandeirantes se embrenharam mais pelos sertões
sem fim e foram sucessivamente descobrindo novas fontes de riquezas, das quais
logo a Coroa portuguesa se apossou. O escoamento dessas riquezas somente
poderia ser feito por rotas seguras e vigiadas em trechos predeterminados por
tropas do governo, nos sítios conhecidos como Quartéis Gerais, onde um pequeno
contingente de soldados e um alferes se incumbia de toda essa fiscalização.
Muito
antes da descoberta do ouro em Paracatu, considerada a última grande descoberta
aurífera das Minas Gerais, o interior do Brasil e, em especial, o interior de
Minas Gerais, foi cruzado em diversas direções por entradistas, bandeirantes, aventureiros,
pecuaristas e comerciantes em todo o período colonial. Várias bandeiras
percorreram os sertões do norte mineiro, margens direita e esquerda do Rio São
Francisco, entrando para o território de Goiás, Mato Grosso e Bahia. Podemos
citar as bandeiras de Domingos Luis Grau (1586-1587), Antônio Macedo (1590), Domingos
Rodrigues (1596), Domingos Fernandes (1599) e Nicolau Barreto (1602-1604).
Existem referências de que a bandeira de Martim Rodrigues (ou Fernandes)
Tenório de Aguilar (Carlos Cunha Corrêa, Serra
da Saudade, pág. 127), um dos antepassados dos sertanistas e bandeirantes
da família Arzão (Arzam) e dos sertanistas e colonizadores Corrêa, espalhados
por Carrancas, Lavras, Serro Frio e Dores do Indaiá, em Minas Gerais, passou
pela região, em 1606. Esta região ficou posteriormente conhecida como sertão do Campo
Grande.
Aqui
transcrevo o texto de Francisco de Assis Carvalho Franco, em seu clássico Dicionário de Sertanistas e Bandeiristas do
Brasil (Belo Horizonte, Editora Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1989, p. 21)
em seu relato sobre Martim Rodrigues Tenório de Aguilar:
“Natural
da Espanha, residiu em São Paulo, no lugar então denominado Ibirapoera. Foi
casado com Susana Rodrigues, viúva de Damião Simões e exerceu vários cargos do
governo de São Paulo. Fez parte da bandeira de Nicolau Barreto ao Guairá, em
1602, tendo feito testamento no sertão do Paracatu, na incerteza do seu
destino, em 1603. Após o seu regresso, formou uma grande leva e em agosto de
1608 saiu de São Paulo em demanda da região dos bilreiros ou caiapós e quatro
anos depois chegou ao povoado a notícia de que havia perecido, com a totalidade
da sua gente, nos fundos sertões onde se internara e que o cônego Roque Leme da
Câmara, afirma ter sido na paragem do rio Pará, que ao certo seria na célebre
região do Paraúpava. Foi ele pessoa de trato, muito rica para o seu tempo,
possuidora de várias dadas de terra. Sogro dos mineiros e fundidores Clemente
Álvares e Cornélio de Arzão (ver na postagem sobre Cornélio de Arzão), foi interessado num engenho
de ferro, construído em Ibirapuera e inaugurado a 16 de agosto de 1607 e que por
isso tomou o nome de Nossa Senhora de Agosto. Vem esse bandeirante registado
por Silva Leme como Martim Fernandes Tenório de Aguilar (Inventários e Testamentos – II, 5 e segs. – Atas, cit., II, 217. – A.
Taunay – História das Bandeiras – I, 185-190. – Roque Leme da Câmara –
Nobiliarquia Brasiliense – Rev. Inst. Hist. São Paulo – XXII, 210)”.
Carlos
Cunha Corrêa (p. 127), citando Diogo de Vasconcelos, na História Antiga de Minas Gerais (p. 60), relata que a bandeira de
Lourenço Castanho Taques, em 1668, e, possivelmente as bandeiras de Antônio
Pedroso de Alvarenga e Pascoal Pais de Araújo, também passaram pela região e
podem ser considerados como os desbravadores pioneiros da imensa região à
esquerda do rio São Francisco, que viria a ser conhecida como Campo Grande. São eles considerados os precursores da fundação de Paracatu.
Paracatu
ficava muito distante da região aurífera de Villa Rica, Villa do Carmo
(Mariana), São João do Rio das Mortes (Del-Rei), Sabarabuçu, e mesmo Serro Frio
e Pitangui, esta última considerada uma das povoações mais longínquas onde os
desbravamentos portugueses conseguiram se firmar. O povoado da futura Paracatu, em realidade, surgira antes de forma bem lenta, porém teve um impulso de desenvolvimento e ficou conhecido com
a chegada das bandeiras de Felisberto Caldeira Brant e de José Rodrigues Frois, após a descoberta de abundantes jazidas de ouro e prata. Foi-lhe dado o nome de
Sant’Anna das Minas do Paracatu. Em 1722, Tomás do Lago Medeiros recebeu a
patente de Coronel de Paracatu e Guarda-mor, além do privilégio de distribuição das
datas de terras na região onde o ouro, apesar de não ter sido ainda descoberto,
despertava grande expectativa de que o fosse em breve. A partir de 1744, quando o ouro em Paracatu foi oficialmente descoberto, o povoado tornou-se um dos pontos mais visados pelos
aventureiros, em busca das riquezas. Na ocasião, esses metais
começavam a escassear no território aurífero antes conhecido. Foi quando a pobreza
começou a aumentar assustadoramente e trouxe sua consequência direta, a fome.
O
ouro havia sido descoberto em Goiás poucos anos antes e Paracatu ficava bem
em um dos trajetos já conhecidos para se atingir o território goiano. Mas, para
que esse território fosse alcançado, seria necessária a passagem por outro
longo território de sertão bravio e inóspito, conhecido como sertão do Campo
Grande. Toda a margem esquerda do rio São Francisco, que hoje engloba as
regiões do Alto São Francisco, Alto Paranaíba, parte do Triângulo Mineiro e a parte
norte da antiga Comarca do Rio das Mortes (São João Del-Rei), era uma vasta
região de planalto ondulado, matas de cerrado, repleto de ravinas e capoeiras, com boa
forragem para o gado, entrecortado aqui e acolá por serras de
respeitável porte, cuja dificuldade para serem transpostas era conhecida
desde o final do século XVI (Serra da Canastra e suas variantes). Para
complicar, era região onde viviam inúmeras tribos dos índios caiapós, pertencentes
à grande nação tapuia. Eles mostraram desde o início grande ferocidade, inimizade aos portugueses e eram extremamente hostis para com quem se aventurasse em seu
território. Basta ver as histórias de confrontos violentos nos quais os bandeirantes se
saíram mal, como a bandeira de Martim Rodrigues Tenório de Aguilar. Isso tornou a região perigosa de se percorrer, fazendo com que muitos
aventureiros contornassem seu perímetro, pelo sul ou pelo norte, para evitar o
confronto que poderia ser fatal para os brancos. Mas a região continuou a
despertar a cobiça dos homens, em particular porque, se conseguissem
atravessá-la com destino a Goiás, seria um grande atalho, com enorme economia
de tempo, provisões e dinheiro.
Ao
mesmo tempo, temos que levar em consideração três fatores cruciais. Em primeiro
lugar, a região, exatamente por ser inóspita e bravia, foi bem escolhida por
negros escravos que aí se abrigaram, fugidos do território das capitanias de
Minas Gerais, São Paulo e até do Rio de Janeiro. Todo o território era
muito conveniente para se esconderem e se defenderem. Por isso a região
ficou repleta, desde o início do século XVIII, de quilombos localizados em
diversas áreas do Centro-Oeste, Sul,
Sudoeste, Alto São Francisco, Alto Paranaíba e Triângulo Mineiro. Eram
interligados por uma intrincada rede de vias de comunicações. Estas se faziam através de
velozes mensageiros. O Quilombo do Campo Grande na verdade englobava diversos quilombos, distribuídos em pontos estratégicos. O
maior e mais famoso deles era o Quilombo do Ambrósio, localizado a noroeste da
Serra da Saudade, entre os municípios atuais de São Gotardo e Ibiá. Há uma
polêmica hoje, levantada pelo pesquisador Tarcísio José Martins, em seu livro Quilombo do Campo Grande – História de Minas
que se Devolve ao Povo (2008), que situa o Quilombo do Ambrósio no
município de Cristais, na Comarca do Rio das Mortes, a noroeste de São João
Del-Rei. Este quilombo ficava em local privilegiado, bem elevado, de onde se
tinha uma visão excepcional de tudo que ocorria num espaço de algumas dezenas de
quilômetros, onde os olheiros, também distribuídos em locais estratégicos, a
distâncias ainda maiores, podiam avisar a comunidade da presença de intrusos,
invasores, colonos e, principalmente, tropas designadas para destruí-los ou
prendê-los. Este quilombo construiu uma verdadeira fortaleza, cujas ruínas
ainda existem e já fazem parte do patrimônio cultural do país e vêm sendo
estudadas por arqueólogos de diversas instituições. Sua arquitetura é muito assemelhada aos fortes
construídos por europeus, mas com um toque bem peculiar em que aliava a
arquitetura indígena às cidadelas dos negros na África. Este quilombo tinha uma rígida
estrutura hierárquica, social e militar, onde a disciplina imperava e todos
obedeciam cegamente ao chefe, o antigo escravo Ambrósio, descendente de reis
africanos. Esta foi uma das razões pelas quais, durante cinco décadas, os
quilombolas tiveram sucesso na preservação de suas diversas comunidades, com
seus hábitos e costumes, sua moral, sua religião, suas leis, e impediram o
acesso à região de viajantes, colonos, tropas, aventureiros, mineradores e
sesmeiros.
Segundo
o já citado pesquisador mineiro Tarcísio José Martins, em sua grande obra (1034
páginas), publicada pela Editora Santa Clara, em 2008, e disponível
gratuitamente na internet em: http://www.mgquilombo.com.br/site/Livros-Quilombolas/livros/quilombo-do-campo-grande-a-historia-de-minas-que-se-devolve-ao-povo.html),
os quilombos em Minas Gerais eram 27, assim relacionados:
1 - Quilombo do Gondum; 2
- Quilombo dos Trombucas; 2.1 - Quilombo do Calunga; 2.2 - Quilombo do Cascalho
I; 3 - Quilombo do Quebra-pé; 4 - Quilombo da Boa Vista I; 5 - Paiol do
Cascalho; 6 - Quilombo do Cascalho II; 7 - Palanque da Povoação do Ambrósio;
7.1 - Primeira Povoação do Ambrósio; 8 - Quilombo da Marcela; 9 - Quilombo da
Pernaíba ou Paranaíba; 10 - Quilombo da Indaá ou Indaiá; 11 - Quilombo do
Ajudá; 12 - Quilombo do Mammoí ou Bambuí; 13 - Quilombo de São Gonçalo I; 14 -
Quilombo do Ambrósio; 15 - Quilombo do Fala ou Aguapé; 16 - Quilombo das
Pedras; 17 - Quilombo das Goiabeiras ou Quilombo do Desemboque; 18 - Quilombo
da Boa Vista II; 19 - Quilombo Nova Angola; 20 - Quilombo do Cala Boca; 21 -
Quilombo do Zondum ou Zundum; 22 - Quilombo do Pinhão; 23 - Quilombo do Caetê;
24 - Quilombo do Chapéu; 25 - Quilombo do Careca; 26 - Quilombo do Marimbondo;
27 - Quilombo do Muzambo.
Por
duas vezes tiveram suas comunidades destruídas por expedições militares
designadas pelo governador da capitania de Minas Gerais, Gomes Freire
de Andrade, pela ameaça que representavam para o processo civilizatório e de
colonização da Coroa portuguesa. As primeiras expedições, de acordo com
Tarcísio José Martins, duraram de 1741 a 1746, obtiveram resultado parcial, com
grande mortandade de negros, diga-se de passagem. Com o retorno da expedição a
Vila Rica e sua região, os quilombolas foram se reorganizando com os
sobreviventes da chacina, a adesão de novos escravos fugidos e até com o
concurso de escravos forros tomados como prisioneiros. Anteriormente, estes escravos-soldados pertenciam à tropa dos invasores brancos.
A segunda expedição militar, comandada por Bartolomeu Bueno do Prado, convocado que foi pelo governador da capitania em 1759/60, destruiu completamente o Quilombo do Campo Grande, matando a grande maioria de seus guerreiros e aprisionando os que sobreviveram. Estes foram levados novamente como escravos para Vila Rica e, depois, definitivamente, para o Rio de Janeiro.
Ignácio Correia Pamplona, português, natural de Angra, Ilha Terceira, do Arquipélago dos Açores, tornou-se um dos maiores vilões da história de Minas Gerais, ao propagar que participou das expedições para destruir os quilombos. Na verdade, segundo vários historiadores (citados por Martins), ele foi um terceirizador de expedições, pois contratava capitães-do-mato para perseguir e matar negros e, depois, ficava com a fama de ter realizado as tarefas. Ao "destruir" quilombos obtinha como prêmio sesmarias em toda a região do sertão do Campo Grande e sul de Minas (foram inúmeras as sesmarias amealhadas, as quais passava para o nome de seus parentes e auxiliares, porém mantendo-as como suas propriedades). Esteve envolvido em polêmicas e intrigas com a administração da capitania de Goiás e foi um dos articuladores da tomada do atual Triângulo Mineiro (que pertencia à primeira) para a capitania de Minas Gerais. Entrou definitivamente para a história da infâmia no Brasil, ao se tornar um dos delatores da Inconfidência Mineira, ao lado de Joaquim Silvério dos Reis.
A segunda expedição militar, comandada por Bartolomeu Bueno do Prado, convocado que foi pelo governador da capitania em 1759/60, destruiu completamente o Quilombo do Campo Grande, matando a grande maioria de seus guerreiros e aprisionando os que sobreviveram. Estes foram levados novamente como escravos para Vila Rica e, depois, definitivamente, para o Rio de Janeiro.
Ignácio Correia Pamplona, português, natural de Angra, Ilha Terceira, do Arquipélago dos Açores, tornou-se um dos maiores vilões da história de Minas Gerais, ao propagar que participou das expedições para destruir os quilombos. Na verdade, segundo vários historiadores (citados por Martins), ele foi um terceirizador de expedições, pois contratava capitães-do-mato para perseguir e matar negros e, depois, ficava com a fama de ter realizado as tarefas. Ao "destruir" quilombos obtinha como prêmio sesmarias em toda a região do sertão do Campo Grande e sul de Minas (foram inúmeras as sesmarias amealhadas, as quais passava para o nome de seus parentes e auxiliares, porém mantendo-as como suas propriedades). Esteve envolvido em polêmicas e intrigas com a administração da capitania de Goiás e foi um dos articuladores da tomada do atual Triângulo Mineiro (que pertencia à primeira) para a capitania de Minas Gerais. Entrou definitivamente para a história da infâmia no Brasil, ao se tornar um dos delatores da Inconfidência Mineira, ao lado de Joaquim Silvério dos Reis.
Outro
fator a ser considerado, é o projeto de colonização da Coroa portuguesa, que, a
pretexto de ampliar seu processo civilizatório e de aculturação dos povos da
região, tornando-os cristãos católicos, fiéis à Coroa, subservientes, vassalos
ou escravos, pudesse assim levar o desenvolvimento à região e, com isso,
ampliar os impostos arrecadados, agora sob a forma da capitação. Esse objetivo
tornou-se uma verdadeira obsessão para o rei D. João V, que não abria mão de
seu vasto território e queria, além de arrecadar mais impostos para a coroa,
espantar o fantasma da colonização espanhola de regiões da hinterlândia brasileira. Assim começou uma aventura de
desbravamento e colonização que, em muito, se assemelha ao desbravamento do
velho Oeste norte-americano.
Como
bem assinalou Diogo de Vasconcelos em sua História
Média das Minas Gerais (p. 137), uma multidão de sertanistas,
aventureiros e comerciantes, levando e trazendo mercadorias de Goiás, foi
abrindo trilhas e veredas, muito utilizadas pelos extraviadores do precioso
metal. Coibir essa prática era impossível num país de dimensões que ainda não
eram continentais, mas não demoraria muito a sê-lo, já que nenhum exército
conseguiria essa façanha. Obrigar essa gente a passar por um só caminho era
igualmente impossível. Há que se levar em conta também que os fiscais que
exerciam essa vigilância adotaram o velho hábito ibérico da corrupção, na medida em que eram adeptos do ouro em seus bolsos e alforjes e não nas oficinas reais.
O representante de El-Rei de Portugal D. João V, sabiamente indicado como governador da capitania de Minas Gerais, era o nobre militar e eficiente administrador capitão-general Gomes Freire de Andrade, o Conde de Bobadela, cuja visão e tirocínio geopolítico foi um dos responsáveis pela expansão do território português na América sobre o território castelhano. Ele contribuiu muito para que o papel e as assinaturas contidas no Tratado de Tordesilhas se tornassem inúteis. Sob sua orientação firme, eficiente e decidida, nossos sertões foram sendo desbravados, com a substancial contribuição da abertura das famosas picadas.
O domínio português foi consumado inquestionavelmente sobre o sertão da capitania de Minas Gerais, em seguida o sertão de Goiás, o sertão de Mato Grosso e também de toda a região sul do Brasil atual. Tudo obra do sertanismo e dos bandeirantes paulistas, responsáveis pelos acordos diplomáticos que culminaram na assinatura do Tratado de Madri, em 1750. Na ocasião, a Espanha reconheceu todo este território como pertencente à Coroa portuguesa, desistindo de lutar ou reivindicar para si essas imensas e desoladas plagas.
Gomes Freire de Andrade foi por três vezes governador da Capitania de Minas Gerais, a primeira de 1735 a 1736, a segunda de 1737 a 1752 e a terceira de 1759 a 1763. Pelos serviços prestados à Coroa, o rei D. José I concedeu-lhe o título de Conde de Bobadela, título esse que transferiu, como herança, para seu irmão, depois também governador, José Antônio Freire de Andrade e seus descendentes, até 1828. Com o Tratado de Madri, a colônia portuguesa na América passou a ter contornos muito próximos do atual território brasileiro.
O representante de El-Rei de Portugal D. João V, sabiamente indicado como governador da capitania de Minas Gerais, era o nobre militar e eficiente administrador capitão-general Gomes Freire de Andrade, o Conde de Bobadela, cuja visão e tirocínio geopolítico foi um dos responsáveis pela expansão do território português na América sobre o território castelhano. Ele contribuiu muito para que o papel e as assinaturas contidas no Tratado de Tordesilhas se tornassem inúteis. Sob sua orientação firme, eficiente e decidida, nossos sertões foram sendo desbravados, com a substancial contribuição da abertura das famosas picadas.
O domínio português foi consumado inquestionavelmente sobre o sertão da capitania de Minas Gerais, em seguida o sertão de Goiás, o sertão de Mato Grosso e também de toda a região sul do Brasil atual. Tudo obra do sertanismo e dos bandeirantes paulistas, responsáveis pelos acordos diplomáticos que culminaram na assinatura do Tratado de Madri, em 1750. Na ocasião, a Espanha reconheceu todo este território como pertencente à Coroa portuguesa, desistindo de lutar ou reivindicar para si essas imensas e desoladas plagas.
Gomes Freire de Andrade foi por três vezes governador da Capitania de Minas Gerais, a primeira de 1735 a 1736, a segunda de 1737 a 1752 e a terceira de 1759 a 1763. Pelos serviços prestados à Coroa, o rei D. José I concedeu-lhe o título de Conde de Bobadela, título esse que transferiu, como herança, para seu irmão, depois também governador, José Antônio Freire de Andrade e seus descendentes, até 1828. Com o Tratado de Madri, a colônia portuguesa na América passou a ter contornos muito próximos do atual território brasileiro.
Gomes Freire de Andrade (1675-1763). Conde de Bobadela. |
Alguns historiadores consideram que a
importância de Gomes Freire nesse período é decorrente mais pela implantação da
Capitação do que do próprio Tratado de Madri. Na década de 1730 houve uma
considerável redução na produção de ouro da capitania o que refletiu na arrecadação do
quinto real. O governador da época, D. Lourenço de Almeida, decidiu reduzir o
imposto de 20% para 12%, em 1730, o que desagradou o rei. Em 1732, este fez retornar a
cobrança do quinto, ao patamar dos anos anteriores. Mas, como a queda na extração do ouro se evidenciava cada vez mais, por exaustão das jazidas, D.
João V cedeu às sugestões de Alexandre de Gusmão, brasileiro, natural de Santos,
e conselheiro do rei. Assim, aumentou a carga tributária sobre os colonos, passando
a cobrar, a partir de 1732 não mais o quinto, mas instituindo a Capitação, isto
é, a cobrança de 4,5 oitavas de ouro por cada escravo empregado na mineração. Capitação vem da palavra latina caput
– cabeça. Foi um dos maiores desastres econômicos de que se tem notícia na
história do Brasil. De 1735 a 1751, a Coroa portuguesa arrecadou 2.066 arrobas
de ouro, mais do que as 1.600 arrecadadas anteriormente. Em contrapartida, gerou uma crise econômica de vastas proporções dado o excesso de tributos que a população não conseguia pagar. Este sistema foi
implantado nas capitanias de Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás e São Paulo. Esta
última possuía um imenso território que abrangia toda a região sul do Brasil.
Por
outro lado, essa decisão levou à perseguição e a diversos massacres de negros fugidos, entre
eles a destruição dos quilombos do Campo Grande, com a morte de centenas de escravos
negros. Seu objetivo, além de coibir o banditismo na região, era dar o exemplo
para os negros não fugidos, numa medida presuntivamente preventiva, já que o imposto era
recolhido de acordo com o número deles em cada lavra. Além do mais, a
Capitação contribuiu para aumentar a pobreza e a fome que grassavam na região e
para o desaparecimento de uma boa parte da população que habitava as minas e os
sertões, por morte ou migração para outros territórios. A partir de 1751 o vulto tomado pelos
descaminhos e contrabando do ouro tornou esta decisão insustentável. Assim, houve
o retorno ao sistema do quinto, numa decisão férrea e acertada do Marquês de
Pombal, já sob o reinado de D. José I.
Gomes Freire compreendeu que, para evitar o
desvio de ouro proveniente de Mato Grosso, Goiás e Paracatu, utilizando picadas
precárias que cortavam o sertão como uma rede complexa, o melhor seria, no
dizer de Diogo de Vasconcelos (p. 139-140), “abrir uma estrada normal para o
novo distrito com todas as comodidades possíveis e segurança, além de que fosse
mais breve, pela qual os viajantes honestos, preferissem transitar, acertou de
tomar esta medida econômica sobre as vexatórias, que nada ou pouco valiam”. E
continua Diogo de Vasconcelos: “Fez-se então, por concorrentes empresários, a
picada de Goiás. Como, pois, só os contrabandistas procuravam caminhos piores,
mais facilmente se conseguia apanhá-los”.
Aqui
encontramos divergências entre os historiadores. Começamos por descrever a
posição de Diogo de Vasconcelos, um dos primeiros historiadores das Minas
Gerais, herdeiro de uma geração de historiadores românticos e pioneiros, que
ainda não dispunham dos métodos de pesquisas historiográficos modernos e utilizavam-se de documentos em arquivos públicos e particulares. Baseavam-se muito na oitiva, isto é, nos relatos verbais de pessoas que passavam
as informações oralmente, de geração para geração. Assim, chegaram até o
século XIX muitas informações importantes. Entretanto, muitos trabalhos,
dissertações, teses, textos e livros surgiram nas últimas décadas, abordando a
questão da colonização dos sertões de Minas Gerais, a oeste do rio São
Francisco, utilizando-se de instrumentos mais modernos de pesquisa
historiográfica, além de contar com inúmeros outros trabalhos anteriores
que puderam ser confrontados e comparados. Esse volume enorme de publicações nos
dá hoje uma visão mais aproximada da realidade do que há algumas décadas, já
que são baseadas em fontes primárias, pesquisas em arquivos ultramarinos portugueses,
arquivos públicos e bibliotecas diversas no Brasil, bem como em arquivos de
instituições como a Biblioteca Nacional, Biblioteca do Exército Brasileiro, Instituto Histórico e
Geográfico em diversos estados, etc .
Vamos
inicialmente às primeiras descrições históricas. Assim Diogo de Vasconcelos discorre
em sua História Média das Minas Gerais (pp.
140-141) sobre o planejamento e execução da Picada de Goiás:
“Neste
propósito, o General (Gomes Freire, nota do autor) em maio de 39 (1739, nota do autor), e seu substituto Martinho
de Mendonça, em junho seguinte, contrataram, o primeiro, com o Capitão-mor
Manuel da Costa Gouveia, morador no Rio das Mortes (São João Del Rei, nota do
autor), e o segundo, com o Coronel Caetano Rodrigues Álvares de Orta, morador
na Vila do Carmo (Mariana, nota do autor), com aquele um atalho do caminho
velho de S. Paulo partindo da encruzilhada de Manuel de Sá até Pitangui, e com este,
o prolongamento de Pitangui até à Vila Boa (atual cidade de Goiás, nota do
autor). A encruzilhada de Manuel de Sá era no ponto em que pegava o ramal da
Aiuruoca, na estrada velha de São Paulo de Ibituruna.
O
Capitão-mor Manuel da Costa deveria, partindo daquele ponto, vir, e passar pelo
Rio Verde e pelo Angaí atravessar seguindo o sertão de Tamanduá (atual Itapecerica,
nota do autor) e chegar a Pitangui, povoação esta que se tornaria centro das
estradas para São Paulo, Rio e Vila Rica, ótimo para ser viajado pelo fisco,
auxiliado pelo comércio lícito que por aí transitasse. Quanto à picada de
Goiás, encarregada ao Coronel Caetano Rodrigues, essa veremos como se alinhou
admiravelmente por sertões bravios e ainda totalmente encobertos em vastas
distâncias. Por agora vejamos as ocorrências ligadas ao nosso fim, que é
reviver a ordem daqueles tempos e a memória dos primeiros povoadores de nosso
território.
A
começar pelo Tamanduá (atual Itapecerica,
nota do autor), que é o mais antigo núcleo de povoamento do sertão por esse
lado, sabe-se que em 1736, achando-se em Goiás, perseguido de credores, aos
quais não podia pagar com o que tinha ou dera por conta, o Capitão Estanislau
de Toledo Pisa, veio estabelecer-se com seu primo, o Guarda-mor Feliciano
Cardoso de Camargos, na paragem denominada Casa do Casca do Tamanduá. Foram
estes, portanto, os primeiros moradores. É provável que aventureiros hoje
esquecidos tenham devassado em tempos idos este sertão em busca de índios e que
deles proviessem os nomes do rio e da paragem, como os novos invasores
encontraram. Pelo menos vem daqueles antigos sertanistas o costume de
fabricarem cafuas de cascas de pau que perduravam e ficavam designando os
sítios.
Outra
coisa menos duvidosa é que índios e negros fugidos penetraram nos mais
recônditos sertões, e muitos nomes que não têm origem conhecidas vêm deles,
assim como por notícias verdadeiras ou falsas, que traziam, muitas tentativas
se aventuraram em procura de ouro.
Como
quer que fosse, os dois primos, tanto que se fixaram no Tamanduá, atraídos de
certo por tais notícias abriram uma picada para o Pium-i e para outros lugares
por onde andaram na esperança de riquezas fazendo explorações.
Por
seu lado, Pium-i não era também de todo um sertão intato. Para fugir às
perseguições da Justiça, por ordem do Conde de Assumar, o célebre genro do
Anhanguera, Domingos Rodrigues do Prado, ou pelo assassinato que lhe atribuíam,
perpetrado bárbara e traiçoeiramente em Taubaté, na pessoa do Mestre-de-campo
Carlos Pedroso da Silveira, ou pela sanguinolenta sedição de Pitangui, o certo
é que se refugiou no Pium-i, sertão fechado, onde permaneceu por dois anos, à
espera de que o viesse encontrar a família assistente em Pitangui, para com ela
seguir a juntar-se com o sogro na conquista de Goiás. Vários outros nomes
anteciparam-se nos primeiros tempos dessas regiões, e também se nomearam muitos
sítios em que tiveram sesmarias por pagamento de serviços os empresários da
picada.
Quer
o Capitão-mor Manuel da Costa, quer o Coronel Caetano e seus consócios
contrataram desbravar as suas concessões em pontos determinados para darem
ranchos e pousos ao longo do caminho, obrigando-se a construir por aí casas e
postos para cômodo de tropeiros, e também roças para o farto abastecimento dos
itinerantes.
Era,
ao demais, a melhor maneira de se fiscalizar o interesse da Fazenda Real. Pelo
exame das cartas de sesmaria podemos traçar o perfil dessa estrada, e ver por
este como os antigos nada ou pouco deixavam a desejar no reconhecimento e
alinhamento da diretriz que visavam.
O
coronel Caetano associou-se com seu filho, o Coronel José Caetano Rodrigues de
Orta, e com seu cunhado, o Coronel Maximiliano de Oliveira Leite, irmãos de sua
mulher D. Francisco Pais. O Coronel Maximiliano, por sua vez, associou-se com
seu filho o dr. Francisco Pais de Oliveira. Estes vultos, que pertenceram, como
filhos e netos, à família do Governador Fernão Dias, tomando a empreitada,
revelaram estar com as suas lavras de ouro extintas, ou de pouco rendimento, no
Ribeirão do Carmo, pois trouxeram para o serviço da picada os trabalhadores de
que dispunham".
Este
texto foi reproduzido na íntegra, pois se trata da primeira descrição histórica
da picada de Goiás. Como vemos, na visão de Diogo de Vasconcelos, esta estrada
toma a direção de Pitangui para oeste, passando por Itapecerica e Piumhi, sem
descrever com precisão o seu trajeto. Se esta descrição correspondeu ou não à
verdade dos fatos é outra questão que outros historiadores posteriores se
encarregaram de esclarecer. Contudo, é inegável que o trabalho de Diogo de
Vasconcelos, baseado em alguns documentos oficiais e mais em relatos verbais de
antigos moradores da capitania é um trabalho hercúleo de reconstrução dos
acontecimentos daquele período. Não há como negar que Diogo de Vasconcelos deu
uma contribuição de imensurável valor para o resgate da história do sertão
agreste a oeste do rio São Francisco.
Num
dos mapas mais antigos da Capitania de Minas Gerais, elaborado pelo competente
cartógrafo e geógrafo José Joaquim da Rocha, em 1778, encontrado no Arquivo
Público Mineiro, podemos ver algumas das rotas das picadas existentes no
período. Por ele vemos que uma picada, partindo de Pitangui, desce para o sul,
passa por um povoado denominado Moraes, desce mais até o Tamanduá (Itapecerica),
inflexiona para o sudoeste, passa pelo povoado de Formiga, quando toma a
direção do oeste, atravessa o Rio São Francisco e passa por Piumhi, daí toma a
direção noroeste, passa por um povoado denominado Magues (?), contorna a Serra
da Marcela (uma passagem entre esta e a Serra da Saudade), quando toma, mais
uma vez a direção oeste, atravessa a Serra da Parida (Canastra?) e segue rumo a
Goiás. Vemos também, que outro trajeto era conhecido: saindo de Pitangui, antes
de se chegar ao povoado de Moraes, a picada tomava a direção oeste, atravessava
o Rio São Francisco, mais ao norte que a trilha anterior, e chegava ao povoado
de Sant’Anna do Bambuí, encontrando-se com a trilha anterior, após transpor a
Serra da Canastra.
Continuando
sua descrição sobre a Picada de Goiás (p. 142), Diogo de Vasconcelos enumera
todas as sesmarias que foram doadas aos diversos sócios que participaram do
empreendimento da construção da mesma. Ele chama a atenção para a dificuldade
em se confirmar todos esses dados em função das contínuas mudanças de
proprietários, já que nesta relação nem todos se encontram nomeados, e também
pelo fato de haver, na época, uma tendência em mudar nomes históricos dos
locais antes conhecidos.
Diogo
de Vasconcelos nos relata que foram dadas ao Coronel Caetano Rodrigues e a seus
sócios, assim como ao Capitão-mor Manuel da Costa e aos seus familiares, as
sesmarias constantes do contrato que firmaram com o governador. Outros nomes de
donos de sesmarias nos revelam quem foram seus auxiliares e ajudantes neste
grande empreendimento. Por outro lado, algumas sesmarias foram apenas
legalizadas, pois seus proprietários já as tinham há algum tempo,
principalmente “na parte em que a picada cobriu as veredas dos primeiros
invasores, desde o tempo do Anhanguera” (p. 142). Ele enumera as sesmarias
doadas, cuja relação apresentamos a seguir, transcrevendo o autor (p. 142):
1- Coronel
Caetano Álvares, a do Capão do Mel, abrangendo o sítio das Três Passagens, além
do Rio de São Francisco, em direção à Serra de Nazaré, que depois se chamou da
Marcela, e hoje da Saudade.
2- Domingos
de Brito, a sesmaria da Chapada, tendo ao norte o Rio dos Veados, ao poente, a
Serra do Indaiá, ao sul, a chapada vertente do rio Jorge, e a leste, o riacho
das Antas. Essa área corresponde ao território que, quase um século depois, se tornaria o município de Dores do Indaiá.
3- Coronel
José Caetano, a da Serra de Nazaré.
4- Guarda-mor
Maximiniano Leite, da Vargem Grande que ia da Serra de Nazaré ao Grão Cairo.
5- Dr.
Francisco Pais, a de Gessurana, que ia do Grão Cairo à Lagoa Seca.
6- José
Peres Monteiro, da Lagoa Seca ao Ribeirão Feio.
7- Coronel
Matias Barbosa da Silva, do Ribeirão Feio aos Olhos-d’Água.
8- Luís
Manuel, dos Olhos-d’Água à Lagoinha.
9- João
Pereira de Carvalho, da Lagoinha ao Rio dos Patos.
10- Pedro
Vanzeler, do Rio dos Patos ao riacho Mulungu.
11- Manuel
Ferreira Serra, do Mulungu ao Ribeirão do Cedro.
12- Manuel
da Silva Vilar Fria, na paragem das Canelas de Ema.
13- Manuel
da Costa Gouveia, da Serra dos Cristais ao Rio Membeca.
14- Domingos
Ribeiro Guimarães, do Membeca ao sítio da Noruega.
15- Francisco
Rodrigues de Miranda, da Noruega ao Rio São João.
16- Baltasar
Correia Bandeira, da Noruega à Campina.
17- Lourenço
de Amorim Costa, no rio Jacaré, e outra no ribeirão de S. Lourenço, até ao
ribeirão dos Patos, correndo Parnaíba abaixo.
18- João
Jorge Rangel, do Rio dos Enforcados ao Prepetinga.
19- Paulo
de Araújo Costa, do Prepetinga aos Buritis.
20- José
da Fonseca Barata, da Campina do São Marcos ao Capão do Guará.
21- Urbano
da Costa Meneses, na Borda do Campo, partindo do ribeiro do Cedro ao Buriti.
22- João
do Couto, no sítio da Batalha, principiando da ponte do Buriti e acabando perto
de chegar ao Rio S. Marcos.
23- Vicente
Pereira da Costa, no Rio Jacaré, dividindo com a de Lourenço Amorim.
24- Padre
Leonardo Francisco Palhano, ao do sítio de S. Leonardo, nas cabeceiras do Rio
Paracatu, tendo ao nascente a de João Jorge Rangel, e ao poente, a estrada que
vai de Pitangui a Goiás, e ao sul os Olhos-d’Água. Essa sesmaria foi passada em
20 de setembro de 37 e só teve por fim legalizar a posse anterior do Padre,
como veremos.
Carlos
Cunha Corrêa, em seu livro Serra da
Saudade, de 1948, em que descreve a colonização do oeste de Minas Gerais,
com ênfase na fundação do município de Dores do Indaiá, comete um engano
histórico: parte da premissa de que a Picada de Goiás foi construída, em 1736,
começando em Pitangui, atravessa o rio São Francisco pelo Piraquara (daí também
ter recebido o nome de Picada do Piraquara) passa pelo território do atual
município de Dores do Indaiá, sobe a Serra da Saudade, volta-se para leste em
direção ao Quartel São João e daí sobe para o norte, acompanha o rio São
Francisco, para, finalmente, na barra do rio Abaeté, tomar a direção noroeste e
chegar a Paracatu. Para tal, utiliza-se da Carta Geográfica da Capitania de
Minas Gerais, de 1804, de Luis Caetano de Miranda, reproduzido, em parte, em
seu livro (p. 128), no qual Carlos Cunha Corrêa atribui erroneamente ao mapa
autoria desconhecida. Aí estão assinaladas as duas passagens da Picada de Goiás,
uma que sai de São João Del-Rei, e a outra pela passagem do Piraquara (Figura abaixo).
Diz
Carlos Cunha Corrêa, em sua obra:
“Quem
quer que tenha oportunidade e paciência de examinar a citada velha “Carta
Geográfica de M.G.”, organizada bem antes de 1804 e editada nesse ano, há de
verificar a sequência das já antigas fazendas da Piraquara (13), do Capitão
Amaro (no ribeirão Santa Fé), de Cocais, Dávila, (ao pé da Serra da Saudade),
de São João (hoje Quartel de São João), do Andaiazinho, do Assunção (à margem
do ribeirão dos Tiros), do Telis, da viúva do Borrachudo, das Três Barras, do
Capam, de Domingos André, do Rio do Sono, das Almas, da Passagem do Rio Preto,
até Paracatu. (13) Conservo a grafia Piraquara,
mas devera ser Piraquera ou Pirakera, que é o termo indígena,
significando “pesca feita à luz de fachos pelas margens dos rios, à noite, quando
os peixes aí estão dormindo“ (vide Anais
da Biblioteca Nacional, vol. 16). Também Estêvão Pinto, na obra “Os indígenas do Nordeste” escreve: “Nos
primórdios da fase colonizadora, o indígena como que se adaptou à nova
existência de servo do colono, a qual não era mais do que uma espécie de
prosseguimento do seu próprio sistema econômico ou social (armar covadas e piraqueras, pescar nos iguaçus...
etc.)”. O vocábulo corrompeu-se indevidamente para Piraquara, como também se
alterou Piracatu. Piraquara é antes
apelido depreciativo de gente, significando tabaréu. Acredito que fazenda da
Piraquara não pode ser fazenda dos caipiras. Mas vá como hoje se escreve”.
Esta
versão do trajeto da picada de Goiás foi contestada por diversos autores. Entre
eles há que se destacar o prof. Waldemar de Almeida Barbosa, conterrâneo de Carlos
Cunha Corrêa, que parte do princípio de que foram construídas, quase
simultaneamente, em 1736/7, duas picadas de Goiás. A primeira parte de São João
Del-Rei, passa ao sul de Oliveira, percorre territórios de Formiga, Tamanduá,
Bambuí e daí toma duas direções: uma para oeste, atravessando a Serra da
Canastra e entra na Capitania de Goiás (na época todo o atual Triângulo Mineiro
pertencia a esta capitania); a outra toma a direção norte, contorna rente a
Serra da Saudade, do lado do Triângulo Mineiro, e se dirige a Paracatu.
Sobre
esta Carta Geográfica, Waldemar de Almeida Barbosa, em sua História de Minas, Vol. I, Belo Horizonte, 1979 (p. 188) nos diz
que:
“...estão
registrados, além de outros, os dois caminhos e as duas passagens do Alto São
Francisco: um passando por São João del-Rei, Santiago, São João Batista
(deixando Bom Sucesso e Oliveira à esquerda), dirige-se para Tamanduá
(Itapecerica), Morais, e vai atravessar o São Francisco, pouco acima da barra
do Bambuí; este caminho não atravessa o rio Bambuí, mas corta o Perdição,
seguindo rumo ao Quartel dos Ferreiros, em direção a Goiás. A outra estrada
passa por Sabará, Curral del-Rei, Betim, Mateus Leme, Patufufo (Pará de Minas),
Guardas, Pitangui, Leandro, Amaro da Costa Guimarães, Cocais (município de
Dores do Indaiá), Quartel de São João e, depois de atravessar os rios Indaiá e
Borrachudo, segue margeando o Abaeté e, perto da barra deste último, junta-se à
outra estrada que, saindo também de Sabará, passando por Lagoa Santa, Fidalgo,
Jequitibá, Maquiné, Bicudo, Pindaíbas, Andrequicé, vai transpor o São Francisco
na passagem do Espírito Santo, antes da barra do Abaeté; aí se verifica a
reunião das duas últimas estradas numa só, que toma a direção oeste-noroeste,
rumo a Paracatu. Vê-se que o mapa é falho, deficiente e não muito preciso; serve
apenas como prova da existência das duas estradas e duas passagens, em Bambuí e
Piraquara”.
Portanto,
segundo Barbosa, a primeira tem início em São João Del-Rei e a segunda picada,
a da passagem do Piraquara, tem início em Sabará. Em alguns textos encontramos
referências à estrada antiga e à nova, mas na verdade, ambas foram construídas
no mesmo período, isto é, em 1736/7. Ele
aponta 15 razões, fundamentadas em documentos da época, para defender seu ponto
de vista (pp. 183-186). Cita relatos documentados em que todos os viajantes
para Goiás preferiam a rota que sai de São João Del-Rei e que vai diretamente
ao rio São Francisco. Um desses viajantes foi o General Cunha Matos que
descreveu em detalhes a viagem. Passou por Barbacena, São João Del-Rei, arraial
de S. João Batista, arraial de N. Senhora de Oliveira, Formiga, Fazenda dos
Arcos, fazenda de S. Julião, fazenda das Perdizes, atravessa o rio São
Francisco, quando entra no “sertão” ou “deserto” do Campo Grande, passa pela
fazenda da Aranha, arraial do Bambuí, serra dos Medeiros, sítio de Montevidéu,
serra da Marcela, e, finalmente, sobe até chegar em Paracatu (p. 187).
Barbosa
cita também João Emanuel Pohl, que, em 1818 saiu de São João Del-Rei, passou
por Oliveira, Formiga, Bambuí, São Pedro de Alcântara (Ibiá), Serra do Salitre,
Patrocínio, Guarda-Mor, serra dos Pilões, e chega a Paracatu. Ele denomina a
estrada de “estrada real para Paracatu”, já que, em realidade, ela é uma
continuidade da Estrada Real de Minas para o Rio de Janeiro, comunicando esta
última com Goiás (p. 187).
Outro
viajante famoso que percorreu esse roteiro foi o francês Castelnau, que havia
programado sua viagem passando por Tamanduá, mas, em função da necessidade de
apressá-la em função da temporada chuvosa que não tardaria, resolveu passar por
Pitangui, antes que o rio São Francisco transbordasse na região do Piraquara
(famosa pelas suas extensas lagoas formadas pelas águas do rio que tranbordavam
em vastas extensões de terras no período chuvoso). Seu roteiro partiu de Sabará
e passou pelos seguintes lugares: Curral Del-Rei, Capela Nova (Betim), Bicas,
Mateus Leme, Guardas, vila do Patafufo (Pará de Minas), Onça, Pitangui, fazenda
da Santa Cruz, da Trigueira, Bom Despacho, travessia do rio São Francisco no
porto da Bernarda (19 quilômetros abaixo do Piraquara), fazenda das Pindaíbas,
arraial de Dores do Indaiá, serra da Saudade, Quartel São João e subiu em
direção a Paracatu.
Outra
questão que Waldemar Barbosa levanta é que Diogo de Vasconcelos teria cometido alguns erros históricos. Reconhece em Vasconcelos a importância e o pioneirismo
de seu trabalho, mas descreve algumas divergências do grande historiador
mineiro. A primeira dessas divergências, é que Vasconcelos descreve
erroneamente as sesmarias distribuídas pelo governador Gomes Freire de Andrade,
misturando as duas picadas, a que vai direto de São João Del-Rei a Goiás,
passando por Formiga, Tamanduá e Bambuí e atravessando a Serra da Canastra e a
outra que passa pelo Piraquara.
Para
Barbosa, “O ilustre Mestre confundiu duas picadas diferentes, como veremos a
seguir, relacionando as sesmarias de ambas, num só alinhamento” (p. 178). Na
realidade, hoje está assentado em diversas fontes históricas, cuja
autenticidade é inquestionável, existiram três grandes picadas de Goiás e não
apenas duas. Além das duas já citadas, encontramos inúmeras evidências da
existência de outra que saía de Sabará, subia o Rio das Velhas até a Barra do
Rio das Velhas (Guaicuí), quando então tomava a direção oeste para Paracatu
(vide figura abaixo). Esta terceira picada, Barbosa assim a descreve: sai de Sabará, passa
por Lagoa Santa, Fidalgo, Jequitibá, Maquiné, Bicudo, Pindaíbas, Andrequicé,
transpõe o rio São Francisco na passagem do Espírito Santo, antes da barra do
rio Abaeté, quando se une à outra picada de Pitangui e segue rumo
oeste-noroeste até Paracatu (p. 188), como pode ser observado nos diversos
mapas da capitania de Minas Gerais aqui reproduzidos.
Mais
um reparo colocado por Barbosa a Diogo de Vasconcelos é a confusão que este faz
entre a Serra da Marcela e a Serra da Saudade, ao considera-las uma mesma serra
com nomes diferentes. Em nosso entender Vasconcelos tem razão, pois a Serra da Marcela está localizada mais ao sul, em território hoje
pertencente aos municípios de Campos Altos, Luz e Estrela do Indaiá e a Serra da Saudade se localiza mais a nordeste, dividindo as águas dos rios Indaiá e Abaeté. Porém, ambas fazem parte do conjunto da Serra da Canastra, pois são interligadas. O motivo da polêmica é que há um trecho mais suave, quase um vale, entre ambas o que pode parecer ser o fim da primeira e o início da segunda, como pode ser visto no primeiro mapa de José Joaquim da Rocha. Hoje, com as cartografias digitalizadas, via satélite, o chamado geo-referenciamento, fica claro que ambas fazem parte do complexo da Serra da Canastra. Assim como os complexos das serras da Mantiqueira e do Espinhaço têm várias ramificações e mudanças de direções, que não deixam de ser consideradas como parte do conjunto de cada uma.
Para
a construção das picadas de Goiás, Barbosa dá a sua versão dos fatos (pp.
181-182):
“Caetano
Rodrigues Álvares de Horta, Matias Barbosa da Silva, José Álvares de Mira,
Maximiano de Oliveira Leite (não de Oliveira Pais, como se vê em publicações
várias), Caetano da Silva, André Rodrigues Elvas, Francisco Pais de Oliveira,
José Pires Monteiro, Francisco Rodrigues Gondim e outros sócios requerem
licença para a abertura da picada de Goiás, com preferência para as sesmarias
que pedissem no caminho novo, e com já condição de se passarem editais no
sentido de, por espaço de um ano, nenhuma pessoa pudesse lançar posses no dito
caminho e “lançando-as não lhes valham”. Em despacho de 8 de maio de 1736, de Gomes
Freire de Andrade, foi deferido o pedido “por ser notório que, com o
estabelecimento da capitação nos Goiases, se têm permitido os caminhos que
estavam proibidos”. Martinho de Mendonça, que consultava Gomes Freire a
respeito dos menores problemas, não teria a iniciativa de despachar tal
requerimento, que versava sobre matéria delicada, sobre a qual existia a
proibição severa de 1733. Mas, diante do despacho de Gomes Freire, o substituto
baixou o edital exigido pelos requerentes, mencionando as condições em que se
abriria a picada. Este edital, de junho de 1736, declarava que “foi permitido
ao Cel. Caetano Álvares e seus sócios abrirem um caminho para os Goiases, como
preferência para as sesmarias que pedissem... Mando que nenhuma pessoa dentro
dos limites deste governo impeça ou perturbe a sociedade na abertura do
caminho, nem nele lance de novo posses dentro do dito tempo e lançando-as serão
de nenhum efeito e castigados os transgressores a meu arbítrio”. Esta picada
saia de São João, atravessava o rio São Francisco, perto da barra do Bambuí, e
seguia pela serra da Marcela, proximidades de Araxá, Patrocínio, Coromandel,
Paracatu e, em seguida, chegava a Goiás”.
Pois
bem, nesse mesmo ano de 1736, Domingos de Brito organizou sua sociedade com
Manuel Pinto, Luís Aires e outros, pediu e obteve licença para a abertura de um
caminho de Pitangui a Paracatu, passando pela Piraquara e Serra da Saudade,
conforme documentos que adiante citaremos.
E,
no mesmo ano de 1736, uma terceira sociedade se formou, em Minas, constituída
de elementos da Comarca do Rio das Mortes: Manuel da Costa Gouveia, Cel.
Antônio Magalhães de Godói, Félix da Costa Gouveia, Pedro Xavier de Gouveia,
Francisco Bueno da Fonseca, Pedro da Silva Miranda e Pascoal Leite requereram
licença para construir “um atalho no caminho aonde chamavam a encruzilhada,
continuando-o até entrar no caminho novo dos Goiases, que proximamente se
andava abrindo... sem que lho pudesse impedir pessoa alguma, nem os fatores do
caminho novo das ditas minas dos Goiases”. O despacho final foi dado já em
dezembro de 1736, o que vem mostrar que as três sociedades passaram a agir
quase ao mesmo tempo.
Essa
encruzilhada, mencionada por vários viajantes, inclusive por Saint Hilaire, deu
origem ao arraial da Encruzilhada, hoje cidade de Cruzília, no Sul de Minas. O
primeiro morador daí, Manuel de Sá, obteve sesmaria em 1726.
Barão d’Eschwege. Mapa da Província de Minas Gerais, 1826. |
Outra
referência à questão das picadas encontramos na já citada obra de Tarcísio José
Martins (p. 123) quando transcreve o historiador Laércio Rodrigues, de Bom
Despacho, sobre o tema:
“O
governador Freire de Andrada (...) concedeu em 1736, licença a Caetano
Rodrigues Álvares da Horta e seus sócios para rasgarem uma picada de São João
Del Rei a Paracatu e Goiás, transpondo o rio São Francisco perto da Barra do
Bambuí. No mesmo ano, atendendo requerimento de Domingos de Brito (paulista), Manoel Pinto e Luís Aires, autorizou a abertura de outro caminho que
de Pitangui fosse ter a Paracatu, passando pela paragem da Piraquara, junto ao
rio São Francisco.
A
primeira delas - que se tornou conhecida com o nome de “Picada de Goiás” (ou
Picadão dos Goiases, como se dizia antigamente) - mereceu do Mestre Diogo de
Vasconcelos e do eminente Carlos Cunha Correia substancioso estudo, em que se
procura identificar o famoso caminho como sendo o que de Pitangui se dirigia a
Paracatu, atravessando o São Francisco na Passagem da Piraquara e Rancho da Boa
Vista, e não na Barra do Bambuí.
Todavia, analisando com muita propriedade o mesmo
assunto, o ilustre historiador Waldemar de Almeida Barbosa, em excelente
trabalho publicado na “Revista de História e Arte” parece esclarecer de vez a
questão, concluindo que a Picada de Goiás não passava por Pitangui mas obedecia
ao seguinte traçado: partindo de São João Del Rei, atravessava o rio de São
Francisco na Barra do Bambuí, seguia pela serra da Marcela, Araxá, Patrocínio,
Coromandel, Paracatu e, em seguida, chegava a Goiás. E acrescenta que, aberto
por Domingos de Brito na mesma época, outro era o caminho de Pitangui a
Paracatu, transpondo o São Francisco na passagem da Piraquara”.
Muitas
das sesmarias doadas em regiões próximas à picada de Goiás geraram povoações
que, com o correr do tempo, foram tendo sua população aumentada em função da
facilidade em fazer negócios com os viajantes da estrada. A compra e a venda de
mercadorias tornou-se a mola principal do desenvolvimento do sertão ermo e
desértico, o que levou ao surgimento de cidades hoje importantes no Estado de
Minas Gerais.
A
primeira picada de Goiás, isto é, a que comunicava São João Del-Rei a Goiás,
foi, assim, o marco inicial de inúmeras cidades do centro-oeste mineiro. O mais
antigo núcleo de povoamento da região, segundo Diogo de Vasconcelos (p. 140),
foi o Tamanduá, hoje Itapecerica, um importante centro regional. Sua origem
remonta a 1736, quando o Capitão Estanislau de Toledo Pisa e seu primo, o
Guarda-mor Feliciano Cardoso de Camargos, ao fugir de credores em Goiás, ali se
estabeleceram, dando nascimento ao povoado denominado Casa do Casca do Tamanduá
(Vasconcelos, p. 140). Assim aconteceu também com Piumhi, onde já havia um
pequeno povoado quando a picada foi construída. Ali se abrigavam alguns dos fugitivos
da sangrenta revolta de Pitangui, em 1720. A revolta se deu, principalmente,
pela rebeldia dos colonos que se colocaram contra a cobrança de impostos
elevados pela Coroa portuguesa, além da ojeriza que os paulistas, fundadores de
Pitangui, revelavam pelos reinóis, portugueses aventureiros, que competiam com
aqueles na mineração e na exploração da terra.
Havia
ainda fortes ranços e ódios decorrentes da Guerra dos Emboabas, encerrada há
apenas uma década. Alguns mineradores se recusavam mesmo a pagar qualquer
imposto, desencadeando uma violenta revolta, com dezenas de mortos tanto dentro das fileiras de pessoas
leais à Coroa como entre os paulistas. A revolta foi duramente
reprimida pelo Conde de Assumar, o governador da época. O mais importante dos
personagens desses acontecimentos foi o famoso genro do Anhanguera, Domingos
Rodrigues do Prado, a quem era atribuído o assassinato de um mestre-de-campo em
Taubaté, um dos líderes da revolta de Pitangui. Ao se embrenhar no sertão
bravio e agreste, estabeleceu-se no local que se tornaria Piumhi. São,
portanto, estas as duas primeiras povoações do sertão do Campo Grande, a vasta
região a oeste do São Francisco, infestado de índios bravios e quilombolas.
Uma
das cláusulas do contrato com os empresários construtores da picada, é que eles
deveriam se estabelecer nas sesmarias doadas em pagamento pelos seus serviços,
estando obrigados a construir aí ranchos e pousos ao longo do caminho, bem como
plantar roças, que pudessem abrigar e alimentar os tropeiros e viajantes. Em
poucas décadas o que era o sertão inóspito e bravio foi se tornando um
pontilhado de povoações. Em que pese o fato de a maioria dessas sesmarias terem
sido vendidas para outros, que mudavam os nomes dos locais, complicando o
trabalho dos fiscais da Coroa e o referenciamento geográfico e topográfico da
região, foi enorme o desenvolvimento de toda a região no percurso da picada de
Goiás (Vasconcelos, p. 141). Assim, foram surgindo os povoados de Oliveira,
Candeias, Formiga, Arcos, Perdizes (depois Porto-Real e hoje Iguatama), Bambuí
e outros (vide figura abaixo).
O
mesmo não aconteceu com a segunda picada, Pitangui-Paracatu, passando pela Piraquara (ou pelo sítio da Bernarda, 19 quilômetros mais acima, em direção às
nascentes do São Francisco). A agressividade dos índios tapuias, e os ataques
frequentes dos quilombolas, principalmente originários do Quilombo do Ambrósio,
muito próximo dali, fez com que Domingos de Brito, e outros sesmeiros,
abandonassem suas propriedades e voltassem para Pitangui (Barbosa, p. 191). Esta
região levou muito mais tempo para formar suas primeiras povoações e iniciar
seu processo de desenvolvimento e aculturação.
Pelo
que pudemos constatar em nossas pesquisas, consultando diversos autores e
mapas, Waldemar Barbosa tem razão em suas afirmativas. Ele se baseou em
inúmeros documentos históricos inquestionáveis, que revelam a complexidade das
redes de comunicação na Capitania de Minas Gerais. A presença de atalhos entre
regiões e caminhos alternativos era marcante e sua função, além da comunicação
fácil da Coroa portuguesa com os diferentes locais de mineração e de outras
áreas mercantis, se devia à necessidade, cada vez maior, da arrecadação de
impostos, controle e vigilância dos colonos, de encontrar vias alternativas
para evitar o confronto com o gentio e quilombolas e da necessidade de desenvolver
o processo civilizatório, tão caro a Portugal em sua disputa com a Espanha.
Como
bem o afirma o historiador bambuiense Lindiomar José da Silva, em seu muito
belo e elucidativo livro Bambuí nas
Trilhas da Picada de Goiaz – Pamplona, Quilombolas e o Povoamento do Campo
Grande (Contagem. Santa Clara Editora, 2011, p. 110), a picada de Goiás
foi o berçário onde nasceram importantes cidades mineiras, como Oliveira,
Itapecerica, Formiga, Piumhi, Iguatama, Bambuí, Ibiá, Serra do Salitre,
Patrocínio, Coromandel, Guarda Mor, até chegar a Paracatu. Sem contar as
cidades que vão de Paracatu a Goiás e Mato Grosso, estes grandes estados
brasileiros. Acrescento eu a cidade onde viveram meus ancestrais, Dores do
Indaiá, na variante da Piraquara da picada de Goiás.
Para
concluir, a construção da picada de Goiás foi um dos marcos mais importantes da
história de Minas Gerais e do Brasil, fio aglutinador de ranchos, que se
tornaram povoados e, mais tarde, vilas e cidades. Contribuiu para a
consolidação da capitania de Minas Gerais, inclusive para a anexação do
território da Farinha Podre (atual Triângulo Mineiro) à Província de Minas
Gerais. Sua importância econômica para o desenvolvimento do País foi crucial. Comunicava
as regiões auríferas de Mato Grosso e Goiás ao Rio de Janeiro. Servia de via
para o transporte das riquezas deste vasto território brasileiro, como o ouro,
prata e pedras preciosas e semipreciosas, gado, muares e animais de criação os
mais diversos, produtos agrícolas, tecidos, móveis, materiais de construção,
utilidades domésticas, livros e todo o tipo de mercadorias tão necessárias
durante o período da colonização. Foi utilizada também, e muito, para o
transporte de tropas que se deslocavam não apenas para caçar índios e
quilombolas, mas também para a defesa de nosso território brasileiro das inúmeras
incursões de tropas espanholas.
Em que pesem os morticínios de negros e índios, infelizmente um acontecimento histórico que poderia ter tido um desfecho diferente, houve a contrapartida de levar a civilização aos mais longínquos rincões das Minas Gerais, em particular ao Campo Grande. De Vila Boa de Goiás (atual Goiás) até o Rio de Janeiro os viajantes percorriam nada menos que 266 léguas, ou 1596 quilômetros, uma façanha épica para aqueles tempos heroicos em um território de dimensões continentais. Três meses eram consumidos nesta grande aventura. Muitos não saíram dela vivos. Muitos outros passaram por ela para construir suas fazendas, unindo-se a outros sesmeiros e fazendeiros para fundar cidades. Foi o que ocorreu com o tetravô do autor, Manoel Corrêa de Souza, descendente de bandeirantes, que, partindo de Carrancas, no sul de Minas, tomou da picada de Goiás, instalou-se em sua sesmaria próxima à Serra da Saudade e, poucos anos depois, doou o terreno para a construção da atual cidade de Dores do Indaiá, em plena picada de Goiás, variante da Piraquara. Também por esta picada vieram outros dos nossos ancestrais, imigrantes portugueses ou já nascidos no Brasil, muitos dos quais cristãos-novos, residentes em Pitangui, das famílias Fiúza, Oliveira, Ribeiro, Cunha, Coelho, Souza e muitas outras, que buscavam, com suas sesmarias doadas pela Coroa portuguesa, iniciar uma vida nova nesses rincões isolados do Novo Mundo. Um feito memorável!
Em que pesem os morticínios de negros e índios, infelizmente um acontecimento histórico que poderia ter tido um desfecho diferente, houve a contrapartida de levar a civilização aos mais longínquos rincões das Minas Gerais, em particular ao Campo Grande. De Vila Boa de Goiás (atual Goiás) até o Rio de Janeiro os viajantes percorriam nada menos que 266 léguas, ou 1596 quilômetros, uma façanha épica para aqueles tempos heroicos em um território de dimensões continentais. Três meses eram consumidos nesta grande aventura. Muitos não saíram dela vivos. Muitos outros passaram por ela para construir suas fazendas, unindo-se a outros sesmeiros e fazendeiros para fundar cidades. Foi o que ocorreu com o tetravô do autor, Manoel Corrêa de Souza, descendente de bandeirantes, que, partindo de Carrancas, no sul de Minas, tomou da picada de Goiás, instalou-se em sua sesmaria próxima à Serra da Saudade e, poucos anos depois, doou o terreno para a construção da atual cidade de Dores do Indaiá, em plena picada de Goiás, variante da Piraquara. Também por esta picada vieram outros dos nossos ancestrais, imigrantes portugueses ou já nascidos no Brasil, muitos dos quais cristãos-novos, residentes em Pitangui, das famílias Fiúza, Oliveira, Ribeiro, Cunha, Coelho, Souza e muitas outras, que buscavam, com suas sesmarias doadas pela Coroa portuguesa, iniciar uma vida nova nesses rincões isolados do Novo Mundo. Um feito memorável!
O trajeto por onde passou a picada de Goiás, com os atuais municípios. |
Prezado Antônio Carlos
ResponderExcluirFico grato por ter citado e ajudado a divulgar um dos meus livros.
Porém nele NÃO está escrito que "A segunda expedição militar" fora "comandada pelo notório e cruel Ignácio Correia Pamplona, em 1759/60".
Essa expedição foi comandada por Bartolomeu Bueno do Prado, mas não pelo grande mentiroso chamado Inácio Correia Pamplona.
Um abraço do
Tarcísio.
Prezado Tarcísio,
ResponderExcluirBoa noite. Você está coberto de razão. Foi um equívoco de minha parte que já está devidamente reparado.
Agradeço-lhe pelo comentário e, caso leia algo com o qual não concorde, fique à vontade para me avisar.
Seu livro tem sido de grande utilidade para mim. Recebi, recentemente, de uma prima, o História de Abaeté - Temperada com um pouco de sal e pimenta, do dr. José Alves de Oliveira. Também tem sido valioso para minhas pesquisas.
Um grande abraço.
Antônio Carlos Corrêa
Valeu, mano.
ResponderExcluirUm abraço do
TJ
Quero lhe-agradecer imensamente ao senhor por este post maravilhoso!. Tenho 16 anos me chamo Eduardo Ferreira dos Santos sou filho de uma migrante mineira e um migrante pernambucano, Sou nascido, crescido em São Paulo.
ResponderExcluirEstou procurando minha ANCESTRALIDADE, sobretudo materna do Oeste de Minas (somente por interesse, intrigação e fascinação mesmo).
Queria saber minhas origens. apesar de eu e minha família mineira ter traços europeus não encontrei nenhum estrangeiro em 8 GERAÇÕES. Eu achei alguns indígenas e mamelucos em algumas gerações, porém nenhum europeu (oque me faz desconfiar de sertanistas e bandeirantes). Minha família andava por volta destas cidades: - Formiga, Divinópolis e Santo Antônio do Monte; todos deles com sobrenomes ibericos (Fraga, Ferreira, Rodrigues, Costa).
Meu bisavô se chamava Horizontino Fraga Ferreira (branco), minha bisavó Leonina Ferreira Costa (mameluca bisneta de india).
Procurando a historia da povoação destas cidades, encontro a 'Picada de Goiás', que me fascinou demasiadamente.
Queria saber mais sobre a povoação(origem) demográfica e étnica do Oeste Mineiro, Se nesta região teve imigração européia (sobretudo ibérica) forte.
Como tenho traços europeus fortes e com sobrenomes luzitanos penso em ser descedente de imigrantes portugueses, porém acho nada sobre imigração e povoação européia, caucasiana na região. Qualquer informação eu seria extremamente grato! Abraços de um pseudo-mineiro!
Boa tarde Sr. Antonio Carlos. Foi uma grata surpresa encontrar essa historia em detalhes da Picada de Goiás. Estou escrevendo sobre minha família Barbosa de Melo de Catalão. Estão presentes no inicio da vila do Catalão e nas confusões que deram à cidade a fama de violenta. Eu vi em outra publicação que os Barbosa e os Melo estiveram em Paracatu e Santa Luzia e de lá para Catalão ja nos anos 1800. Você tem alguma referencia para sugerir? Sou geólogo por formação e naturalmente a mineração é parte da minha vida. Mais uma vez parabens pelo belo trabalho. Osvaldo Barbosa Ferreira.
ResponderExcluirMeu bisavô contava que antigamente traziam presos de Goiás para serem julgados em Itapecerica porque era onde tinha o juiz mais próximo. Hoje acabei de confirmar em certa parte o que ele dizia, já que a picada de Goiás passava bem próximo (se não dentro do município) de Santo Antônio do Monte.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirParabéns pelo seu importante trabalho sobre a história da nossa região em especial sobre a "Picada de Goiaz". Obrigado por ter citado meu livro Bambuí nas Trilhas da Picada de Goiaz. O mapa no final do texto ficou bem significativo e preciso.
ResponderExcluirAbraços
Lindiomar J. Silva
Boa tarde! Espero que a família não deixe esse blog acabar.
ResponderExcluirOla Sr Antonio Carlos, coleciono selos e estou montando uma coleção exatamente sobre a picada de goias e as cidades que fizeram parte deste caminho. Gostaria de saber se poderia tirar umas duvidas sobre cidades que não tenho certeza se faziam parte ou não do caminho. obrigado e parabens pelo artigo.
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