Diferentes tipos de bandeirantes. |
Muito já escrevemos sobre os bandeirantes neste
nosso blog. Tanto abordamos os males que infligiram às populações indígenas,
como também seus grandes feitos de descobrimentos de nossas riquezas e
ampliação de nosso vastíssimo território brasileiro. São eles muito criticados
e caluniados por alguns historiadores, autores e pesquisadores, mas, por outro lado, são
defendidos pela maioria dos estudiosos. Historiadores do porte de Capistrano de
Abreu tecem críticas à maneira pela qual os bandeirantes exerceram suas
tarefas, a violência muitas vezes empregada por muitos deles contra os
silvícolas, a crueldade e a dureza com que tratavam esses povos. Mas reconhecem
o valor desses personagens fundamentais de nossa história. Se não
os glorificam, pelo menos sabem dar-lhes o seu devido valor. Os respeitam pelo fundamental papel que exerceram em nosso país, tanto do ponto de vista
geográfico, como etnográfico e cultural. Vamos aqui abordar os dois lados da
questão que ainda gera muitas polêmicas, mantendo-se um tema extremamente
atual.
Por ser ainda um tema muito polêmico, porém muito atual, optamos por uma fluência do
texto menos livre, e nos baseamos em diversas citações de autores bem como fazemos muitas transcrições.
Algumas delas são bastante extensas o que pode cansar o leitor. Optamos por tal
estilo de narrativa para evitar incorreções e erros historiográficos. Pela
importância do tema até hoje, preferimos o risco de tornar este texto assaz monótono,
grande e cansativo para nossos leitores. Mas evitamos um mal maior: a
incorreção histórica e a descontextualização do conteúdo do mesmo. Sabemos que
este não é o melhor estilo para os leitores de um blog. Escusamo-nos por esta
decisão. Porém ficamos mais tranquilos quanto à real expressão dos autores
citados. Ao leitor mais apressado, sugerimos a busca de algum autor de seu
interesse e a leitura da transcrição específica de sua obra. Pensamos ser mais honesto para com nossos leitores.
Por demais conhecida é a vida e a
obra de Domingos Jorge Velho, o bandeirante paulista que, solicitado pela Coroa
portuguesa e pelas autoridades do Nordeste brasileiro, deslocou-se de São Paulo
de Piratininga, em marcha pelo interior das Minas Gerais e da Bahia, e, ao lado
de outros comandantes, escolhidos pelas autoridades coloniais, correu a
combater índios da nação tapuia contra os quais portugueses e colonos estavam
em guerra na Bahia, Pernambuco, Ceará e até no Piauí. Como esses últimos colonos
haviam perdido várias batalhas, as autoridades da Bahia e Pernambuco recorreram
ao experiente guerreiro paulista. Ele venceu os índios, em batalhas que se
caracterizaram pela dureza com que tratou o inimigo. O gentio que não foi apresado
acabou por se refugiar em territórios mais seguros da região do Centro-Oeste e
da Amazônia brasileira. Célebre se tornou a frase do grande bandeirante: “Eles
pensam transformar os índios em anjos, mas não podem fazê-lo antes que se
tornem homens.” Também foi Domingos Jorge Velho quem atendeu aos apelos dessas
mesmas autoridades e, também ao lado de outros importantes comandantes, esmagou
a rebelião dos negros do Quilombo dos Palmares, então o maior do Brasil.
Venceram a guerra, que se caracterizou por uma acirrada defesa dos
aquilombados, quando houve grandes baixas entre eles. Uma boa parte desses
negros foi aprisionada e vendida como escravos em diversos mercados do
Nordeste. Esta guerra ainda é motivo de grandes controvérsias entre
historiadores. Teria sido uma guerra justa, já que os quilombolas assaltavam,
matavam e destruíam pessoas e povoações, além do que prejudicavam enormemente o
comércio e a produção de açúcar no Nordeste? Ou se tratou simplesmente, como
querem alguns, de um massacre desnecessário, truculento e injusto de uma raça
branca, mais poderosa, contra outra, escrava, tida como inferior e
insubordinada? O mote desta última postura ainda serve como bandeira para
movimentos político-ideológicos até os dias atuais.
Entretanto,
é preciso que se ressalte, todos, na colônia e em Portugal, esperavam dos
bandeirantes paulistas uma atitude militar rigorosa que solucionasse a questão
das guerras contra os silvícolas e contra os quilombolas que atazanavam a vida
dos colonos do Nordeste. A história de Domingos Jorge Velho, e de alguns outros
bandeirantes, serviu para contaminar a imagem que deles ficou, isto é, passaram
a ser considerados como indivíduos demoníacos, agentes de satanás, possuidores
da mais baixa cupidez pelas riquezas de nossa terra, de não terem nenhum
respeito pelos índios e pelos negros, e de não passarem de bandidos sem
sentimentos, cruéis assassinos, impiedosos e cínicos. A origem de tais versões
surgiu ainda quando eles invadiram as missões jesuíticas no Sul. Iniciou-se uma
campanha difamatória agressiva e caluniosa por parte de jesuítas, em especial
de seu superior geral nas reduções do Guairá (atual Paraná), do Itatim (atual
Mato Grosso do Sul) e do Tape (atual Rio Grande do Sul), e também de
territórios hoje pertencentes ao Paraguai, dentre eles se sobressaindo o
padre Antonio Ruiz de Montoya (Lima, Peru, 1585-1652).
Montoya, e seu colega Francisco Dias Taño, em 1637/8 foram encarregados pelos jesuítas espanhóis e portugueses de viajar e se queixarem ao rei Filipe IV da Espanha (na época, Portugal e Espanha estavam unidos num mesmo reino) das invasões dos bandeirantes paulistas. O padre Francisco foi ao rei, em Madri, e Montoya foi a Roma se queixar ao Papa. Segundo os jesuítas, os paulistas estavam massacrando e escravizando os índios guaranis (carijós, na terminologia paulista). Na ocasião, pintaram as figuras dos bandeirantes paulistas com as cores mais negras possíveis.
Atualmente se sabe que os jesuítas não foram tão angelicais a ponto de poderem acusar livremente, sem contestações, os bandeirantes paulistas. Em interessante trabalho apresentado em um encontro de linguística, literatura e história, em Maringá, no Paraná, em 2009, Saul Bogoni e Thomas Bonnici apresentam uma versão diferente daquela que os jesuítas tinham a respeito da liberdade e tolerância pela cultura indígena dentro de suas reduções (Bogoni, Saul; Bonnici, Thomas. As reduções jesuíticas na conquista espiritual (1639) de Antonio Ruiz de Montoya, sob a crítica pós-colonial. In: Celli – Colóquio de Estudos Linguísticos e Literários. 3, 2007, Maringá. Anais... Maringá, 2009, p. 923-930). Vejamos o que dizem estes autores:
“As incursões dos colonizadores brasileiros/portugueses de São Paulo na região Norte/Noroeste do Paraná, com o objetivo de caçar os índios para apresamento, são apontadas como a grande causa de dizimação e destruição das reduções jesuíticas, do Paraguai, Paraná, Uruguai e Tape. Este fato, aliado à grande concentração de indivíduos, promovida pelas “reduções”, organizadas em igrejas, paliçadas, escolas, praças, etc, e o contato com os padres e outros europeus de suas relações, também favoreceu a um novo universo bacteriano e virótico (tifo, varíola, gripe, etc), segundo se infere de LUGON (1968; p. 71 a 80). Provocou a destruição dos sistemas de acumulação energética e modificou o equilíbrio de recursos e da dieta alimentar. No plano social, destruiu clãs, tribos, grupos familiares e interferiu na sexualidade indígena, com argumentos cristãos ou tirânicos. Desestruturou o universo indígena através da repressão sistemática dos antigos conhecimentos e representações que foram substituídos ou fundidos em novas crenças e costumes. Por último, desorganizou a economia indígena pelo uso desequilibrado da terra, através da especialização regional e das migrações forçadas e também pela contínua reordenação do território que introduziu progressivamente um novo modelo de consumo”.
Dentre os bandeirantes paulistas, os mais acusados foram António Raposo Tavares e Manuel Preto, justamente os mais importantes expedicionários a invadir as reduções jesuíticas. Domingos Jorge Velho viveu muito depois disso, mas sua imagem, como a dos demais bandeirantes foi inteiramente contaminada por essas acusações.
No século XX, entre as décadas de 1960 a 1980, surgiram diversos autores que, a pretexto de pintar as imagens mais negras e medonhas dos bandeirantes, revelavam, na verdade, seus preconceitos e ranços ideológicos de esquerda. Foram os bandeirantes comparados aos piores assassinos da história universal.
Ao escrever sobre os bandeirantes é
necessário que iniciemos pela definição. O que é o bandeirismo? A resposta será
dada pelo historiador Hélio Vianna em seu clássico História do Brasil, Vol. I, Período Colonial (11ª. Edição, revista
e atualizada por Américo Jacobina Lacombe. São Paulo, Edições Melhoramentos, 1972,
pg. 312-313):
“O bandeirantismo, designação dada ao movimento de penetração
realizado principalmente por moradores da Capitania de São Vicente (depois
denominada de São Paulo), começou com o ciclo
da caça ao índio, ainda na segunda metade do século XVI; entrou no setor da
mineração com o ciclo do ouro de lavagem;
assumiu, depois, o original aspecto apresentado pelo ciclo do sertanismo de contrato; continuou já em fins do século XVII
e primeira metade do seguinte, com o grande
ciclo do ouro, e terminou, ainda na era de setecentos, nos ciclos de povoamento.”
Principais bandeiras.
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“Quanto à localização, ocorreram as
bandeiras do ciclo da caça ao índio principalmente
nas regiões do Sul e Oeste do Brasil, de São Vicente ao futuro Rio Grande do
Sul e Mato Grosso, excepcionalmente atingindo, antes do grande ciclo do ouro,
as do centro do país (Minas Gerais e Goiás); o ciclo de ouro de lavagem foi essencialmente vicentino, compreendendo
zona depois pertencente ao Estado do Paraná; o ciclo de sertanismo de contrato consistiu nas expedições que para
repressão aos indígenas sublevados dirigiram-se às Capitanias da Bahia e
Ilhéus, posteriormente às do Rio Grande (do Norte) e Ceará, bem como na
expedição de Domingos Jorge Velho contra os negros aquilombados nos Palmares,
ao sul da Capitania de Pernambuco, principalmente em terras depois alagoanas; o grande ciclo do ouro realizou-se nas
Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, também atingindo regiões centrais da Bahia e
Ilhéus; ao ciclo das bandeiras de
povoamento coube, afinal, passado o fastígio da mineração, povoar,
notadamente com fazendas de criação de gado, os campos dos atuais Paraná e
Santa Catarina.”
“...Capistrano de Abreu, pouco antes
de sua morte, ocorrida em 1927, forneceu a Paulo Prado, que divulgou em 1928,
um “esquema das bandeiras”, aproximando-as das entradas, a umas e a outras
certamente considerando como um só movimento de penetração territorial, embora
com denominações diferentes, extensivo a todo o país. É o que se conclui do
quadro então apresentado, mas infelizmente não explicado, em que expressa e
localizadamente figuram “bandeiras
paulistas, baianas, pernambucanas, maranhenses e amazônicas”.
Esquema das bandeiras segundo Capistrano de Abreu.
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“Retomou o assunto no sentido da
diversidade dos dois movimentos, entradista e bandeirista, e da inferiorização,
qualitativa do primeiro, o Sr. Alfredo Ellis Júnior, em 1938, na tese de
concurso intitulada Meio Século de
Bandeirismo (1590-1640), em trabalhos posteriores. Em 1950, na Revista de História, de São Paulo, esclareceu
melhor suas opiniões a respeito, mantendo, porém, o mesmo ponto de vista de
restrições às entradas.”
Retornemos aos primórdios da
história do Brasil. Nosso primeiro historiador foi Pero de Magalhães Gândavo
(1540-1580), português de Braga. Descreveu ele nossas primeiras riquezas e as
primeiras entradas para nosso hinterland,
quando as autoridades da Coroa portuguesa estimulavam e financiavam expedições
com vistas ao descobrimento dos tesouros que se imaginavam escondidos na
imensidão de nossas florestas e montanhas. Sua obra, História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil,
foi publicada em Lisboa em 1576. Descreve a riqueza de nosso solo, a flora e a
fauna, as diferentes tribos de indígenas, as plantações que os portugueses
começaram a desenvolver, em particular a cana de açúcar e as potencialidades de
riquezas minerais em nosso território. A região descrita é a costeira, de
Pernambuco até São Vicente e se estendia muito pouco para o interior, ainda
desconhecido. Na época de Gândavo os engenhos de açúcar eram movidos
principalmente pela força hidráulica e menos pela tração animal. A mão de obra
era a indígena e circunscrita ao Nordeste, em particular na região de Olinda, a
mais rica da nação. A quantidade de escravos indígenas era tamanha que
Pernambuco exportava esta mão de obra para outras capitanias.
Após a venda de poucos exemplares de
seu livro, Gândavo teve sua obra proibida pela censura real receosa de que a
divulgação da mesma pudesse atrair toda sorte de aventureiros e piratas, em
prejuízo da própria Coroa. Estes exemplares hoje podem ser encontrados em
bibliotecas de grandes universidades ou museus da Europa e dos Estados Unidos. A
obra somente foi publicada, pela primeira vez, no século XIX.
Gabriel Soares de Sousa foi um
aventureiro, empresário e agricultor português que chegou ao Brasil por volta
de 1565/69. Após dezessete anos, era um homem abastado e proprietário de
engenhos de açúcar. Um de seus irmãos esteve fazendo explorações pelo sertão do
rio São Francisco. Trouxe notícias de grandes riquezas minerais, mas faleceu
logo em seguida. Gabriel Soares viajou para o reino na tentativa de convencer
as autoridades a financiar-lhe uma grande expedição com vistas à descoberta das
riquezas escondidas. Entre 1584 e 1587, período em que permaneceu em Lisboa,
escreveu um memorial, posteriormente chamado de Notícia do Brasil ou Tratado
Descritivo do Brasil, de 1587, um alentado texto em que exaltava nossas
riquezas conhecidas e as que pudessem vir a ser conhecidas. Considerava o Brasil
uma das nações que tinham um potencial de riquezas de tal ordem que o tornaria
um dos países mais importantes do mundo. Conseguiu obter da corte autorização e
financiamento para uma grande expedição. Retornou ao Brasil em 1591 com 360
colonos e 4 frades. Sofreu um grave naufrágio nas costas de Sergipe. Com o que
lhe restou de sobreviventes e víveres, embrenhou-se no sertão do rio São
Francisco onde veio a falecer de doenças tropicais nos fins deste mesmo ano.
Sua obra, entretanto, sobreviveu-lhe e conseguiu despertar a cobiça pelas
nossas riquezas não somente em Portugal como em diversos países europeus. Foi a
origem das lendas sobre nossas serras grandiosas douradas e faiscantes de
pedras e minerais preciosos.
Um
dos nossos primeiros e grandes historiadores foi Frei Vicente do Salvador
(Vicente Rodrigues Palha) (1564-1639). Foi frade franciscano, nascido e
falecido em Salvador, e é considerado o pai da historiografia brasileira ou o
Heródoto nacional. Escreveu o primeiro livro sobre nossa história colonial, História do Brasil, que veio a lume em
1627. Em decorrência do fato de não ter testemunhado muitos dos acontecimentos
bandeirísticos, além de não ter estado na Capitania de São Vicente (futuramente
Capitania de São Paulo), quase nada descreveu sobre o fenômeno das bandeiras.
Sebastião
da Rocha Pita (1660-1738), nascido em Salvador, de família fidalga, é autor de
uma obra importante intitulada História
da América Portuguesa (1730). Data de um período em que a Coroa portuguesa
estava interessada no estímulo a autores que escrevessem obras laudatórias à
nossa colonização com vistas à legitimação junto a outras nações europeias do
modelo português de colonização. Rocha Pita tentou desenvolver um estilo
clássico, à Tito Lívio, no qual tentou descrever em solo americano o que se
passou na história da Europa. De certa forma, ele coloca o movimento
bandeirante como um prolongamento dos grandes feitos navais portugueses dos
quatrocentos e quinhentos. Entretanto, sua descrição das bandeiras é pífia,
motivo pelos quais não nos deteremos mais em sua obra.
Outro
grande historiador pátrio foi Frei Gaspar da Madre de Deus (Gaspar Teixeira de Azevedo)
(1715-1800). Beneditino, foi o autor de Memórias
para a História da Capitania de São Vicente, obra concluída em 1793. Em que
pese sua extensa pesquisa cartorial e da vasta consulta às centenas de
documentos que trouxera de Salvador e do Rio de Janeiro, e ainda de ter sido
primo do grande genealogista e linhagista Pedro Taques de Almeida Paes Leme,
autor da Nobiliarquia Paulistana,
Frei Gaspar não se aprofundou muito na história das bandeiras, fazendo, aqui e
ali, alguma anotação de interesse. Assim, também não vamos nos deter em seus
escritos.
O
primeiro grande historiador a escrever sobre nossa história geral, já não mais
em nosso período colonial, foi o inglês Robert Southey (1774-1843), que, por sinal,
nunca esteve em nosso território. Foi sua obra publicada entre 1810 e 1819, e
somente traduzida para o português meio século após. Southey foi escritor,
prosador, historiador e poeta da escola Romântica inglesa. Contemporâneo e
amigo de William Wordsworth e Samuel Taylor Coleridge, não os suplantou em gênio
e fama literárias. Filho de um rico comerciante de vinhos, ajudou o pai nos
negócios até que, após o falecimento deste, sua educação foi assumida pelo tio
materno, que o matriculou na Westminster School e, posteriormente, na
Universidade de Oxford. O tio era pastor anglicano e, quando se transferiu para
Lisboa, levou o sobrinho. Na capital lusitana, Southey se interessou pela
história de Portugal e do Brasil e frequentava assiduamente os diversos arquivos
históricos da capital, particularmente os da Torre do Tombo. Baseado nos
documentos que encontrou, e muitos outros disponibilizados por amigos e
autoridades, escreveu a História do
Brasil. Seu projeto para escrever a História de Portugal não foi concluído.
De Southey há uma opinião unânime: apesar de não ter tido contato direto com a
terra brasileira, teve acesso a documentação original e a fontes primárias. Não
foi influenciado pela tradição oficial de nossa historiografia, em particular
pela ideologia jesuítica e, assim, pode compor um relato histórico sem deturpações
e falsas interpretações, como atestado por Nelson Werneck Sodré no prefácio da
obra organizada por Brasil Bandecki, de sua obra, na década de 1960. Dedicou
particular interesse à colonização portuguesa. Atribuiu a descoberta do Brasil
ao navegante espanhol Vicente Yañez Pinzon, em 1499, com bastante detalhamento.
Quanto às populações indígenas, considerou-as como agentes históricos
equivalentes aos colonizadores portugueses. Tanto os índios como os portugueses
foram por ele avaliados como igualmente bárbaros e cruéis, em que pese o fato
de terem sido os lusitanos os que implantaram sua civilização e construíram o
Estado. Apesar de a história do Brasil ter sido desenvolvida em “princípios
mesquinhos”, ele a via com otimismo.
Sobre
a conquista de terras do Novo Mundo, na disputa que se seguiu entre espanhóis e
portugueses, Southey relata em sua História
do Brasil – Terceira Edição Brasileira (São Paulo, Editora Obelisco,
Limitada, 1965, pp. 282-283):
"Com
o zelo de homens que sabiam estarem cumprindo o seu dever, se opunham os
jesuítas ao tráfico de escravos índios; nunca houve mais santa causa, nunca
houve quem a uma causa se votasse com valor mais heroico. Assim tornaram eles
seus implacáveis inimigos desde a fundação de S. Paulo os mamelucos, e na
verdade a maior parte do povo. Terem ido criadas por esta ordem odiosa era
razão bastante para que os paulistas vissem com olhos hostis as reduções de
Guaíra, e uma causa que os jesuítas deviam haver previsto, ainda mais veio
exacerbar este sentimento. Consumada por Filipe II a usurpação de Portugal,
nada se tentou para com as duas coroas unir os dois reinos, procurando antes
uma política banal e míope assegurar a cada país as vantagens exclusivas das
suas colônias. Estavam, porém, ainda por demarcar os limites na que os
paulistas possuíam uma raça de homens mais ardida ainda do que a dos primeiros conquistadores,
enquanto que extintas jaziam entre os espanhóis do Paraguai toda a atividade e
empresa. Depois de Nuflo de Chaves mal se havia feito entre eles uma tentativa
para alargar as suas possessões e descobertas. Mas o sistema introduzido por
Ortega e Filds à imitação dos seus irmãos no Brasil, produziu importante
mudança. Estendiam os jesuítas continuamente os seus estabelecimentos e os seus
planos, e infelizmente para os seus conversos e para eles mesmos estendiam-nos
na direção do oriente por um país dentro, que os paulistas consideravam como
pertencente a Portugal e ainda mais particularmente como seu próprio terreno de
minas e escravos. O que é certo é que se estes aventureiros se não houvessem
movido, ter-se-ia a Espanha apoderado da costa do Brasil ao sul de Paranaguá, e
espanholas em vez de portuguesas teriam sido no sertão as minas de Goiás, Mato
Grosso e Cuiabá."
Como
se pode ver, Southey não toma partido deste ou daquele povo, nem faz ataques e
acusações fundamentadas em ideologia, simpatias religiosas ou raciais. Sua
postura foi a do relator daquilo que encontrou nos registros históricos dos
arquivos. Diríamos nós, teve uma atitude neutra e sensata.
No
século XIX, surge o nosso grande referencial historiográfico, Francisco Adolfo de
Varnhagen (1816-1878), o visconde de Porto Seguro. Filho de uma portuguesa e de
um militar alemão, nasceu próximo a Sorocaba, São Paulo, quando seu pai construía
altos fornos para uma indústria local. Seguiu carreira militar em Portugal,
posteriormente adotou a nacionalidade brasileira e adotou a carreira
diplomática. Em suas andanças pela Península Ibérica e por toda a Europa e
Américas, interessou-se pelos assuntos de nossa história e visitou os maiores
arquivos do mundo de então. Faleceu no Chile e, em 1978, seus restos mortais foram
transferidos e depositados em monumento de sua cidade natal, Sorocaba. Em sua
tumba está escrito: Estão aqui
depositados os restos mortais de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de
Porto Seguro. Paulista de Sorocaba, o Pai da História do Brasil *17-2-1816 †
29-6-1878.
Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878). |
Varnhagen foi eleito membro do
Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (IHGB) em 1840, quando deu início às
suas pesquisas historiográficas. Iniciou pelos arquivos paulistas, da Câmara de
São Vicente, da Câmara de São Paulo, tendo encontrado os mais antigos
documentos brasileiros, relativos à história de Santo André da Borda do Campo (1555-1558)
e das vereanças de São Paulo (1573-1577). Em 1842 foi transferido para Lisboa, quando
iniciou suas pesquisas pelos arquivos da Torre do Tombo. Novamente transferido
para a Espanha, vasculhou os arquivos históricos da Biblioteca do Escorial,
Biblioteca do Palácio Real, em Madri, o Arquivo Geral das Índias, em Sevilha, e
em Simancas, onde considerou ter encontrado o maior acervo sobre a história dos
limites entre a América espanhola e a América portuguesa. Trouxe as obras de
Montoya, do Paraguai. Esteve em arquivos no Chile, Peru, Venezuela, Cuba, São
Petersburgo, Estocolmo, Viena e Rio de Janeiro. A importância de Varnhagen na
historiografia brasileira é reconhecida por todos. Seu necrológio foi escrito pelo
jovem historiador Capistrano de Abreu, em 1878, que considerava Varnhagen uma
grande estátua no maior de todos os nossos pedestais da história. Para
Capistrano, os fatos históricos descobertos por Varnhagen, ou por ele
redefinidos, igualavam ou até excediam tudo o que os seus predecessores haviam
descrito.
Varnhagen, conforme uma
crítica de Capistrano, não teria escrito uma história do Brasil do “ponto de
vista nacional” (ver Daniel Mesquita, Descobrimentos de Capistrano. A
História do Brasil “a grandes traços e largas malhas. Rio de Janeiro. Ed.
Apicuri: PUC-Rio, 2010). Queria dizer Capistrano, com essa expressão, que uma
história do Brasil “do ponto de vista nacional” seria uma descrição que
superasse o “transoceanismo intelectual”, isto é, a visão de nossa história com
o olhar português, sem o sentimento de ter aqui nascido e até uma espécie de “desamor
pelas coisas pátrias”. Haveria um quê de melancolia e desdém pela terra, como
ocorrera com os primeiros povoadores do Brasil, que aqui vinham com o objetivo
de fazer fortuna rapidamente e retornar para Portugal. Para Capistrano,
Varnhagen via a história do Brasil como um europeu, onde fora educado e vivera
grande parte de sua vida. De certa forma, seria a continuidade dos demais
historiadores que o antecederam. Apesar de ter sido um grande avanço, não teria
sido o suficiente, na visão de Capistrano, para construir uma história do
Brasil, vista por um brasileiro. Nossa história seria uma continuidade da
história de Portugal e se “estabelecia um lugar para o Brasil na história da
metrópole” (Mesquita, p. 92). Capistrano acredita que Varnhagen delimitou nossa
história à elite aristocrática e aos representantes do poder da Coroa. Como
exemplos, Capistrano aponta a visão negativista que Varnhagen teve dos
episódios relativos à Inconfidência Mineira (“uma cabeçada e um conluio”), a
Conjuração baiana de João de Deus (“um cataclisma de que rende graças à
providência por nos ter livrado”), a Revolução pernambucana de 1817 (“uma
grande calamidade, um crime em que só tomaram parte homens de inteligência
estreita, ou de caráter pouco elevado”). “Sem D. Pedro a independência seria
ilegal, ilegítima, subversiva, digna da forca ou do fuzil...” (Mesquita, p.
84).
Varnhagen pertenceu a uma
geração do IHGB que privilegiava a teoria da Ilha-Brasil, tão ao gosto de
historiadores portugueses. Era o “ethos” que predominava nos tempos do Brasil
Império, como forma, entre outras, de legitimar nossa imensidão continental, de
preservar a monarquia e de fortalecimento da unidade nacional. Ao descrever
geograficamente o Império do Brasil, Varnhagen em sua monumental obra História
Geral do Brasil (Vol. I, 3ª. Ed., anotada por Capistrano de Abreu, 1907, pp.
3-4) nos diz (apud Mesquita, p. 130):
“Dilata-se desde as cabeceiras
mais setentrionais do caudaloso Amazonas até quase às margens do Prata,
alargando-se muito mais para as bandas do norte, à feição do continente
meridional a que pertence, e do qual constitui quase a metade... Por toda a
extensão que abraçam estes dois rios se erguem serranias... Os grandes
tributários da margem direita do Amazonas procedem de serras e chapadões, que
se erguem numa paragem proximamente central a todo o território, da qual vão ao
Atlântico, pelo Prata, outras vertentes depois de contornarem e banharem, com
suas águas, os distritos do Sul.”
Segundo
o etnólogo e historiador alemão Georg Friederici (Caráter da Descoberta e Conquista da América pelos Europeus, Rio de
Janeiro, MEC-Instituto Nacional do Livro, 1967), Varnhagen teve uma visão
acerca do bandeirismo que recebeu algumas críticas, em função de sua posição totalmente
favorável aos conquistadores. Diz Friederici (p. 203):
“Varnhagen
tomou o partido dos conquistadores, sem revelar a mínima compreensão pelos silvícolas
nem por sua posição histórica e moral durante a penetração e conquista do País
pelos mateiros, garimpeiros e colonos,
que, desde o início, foram, acima de tudo e sem exceção, caçadores de escravos.
Considerou mais do que necessários os métodos empregados por paulistas e
portugueses contra Tupis e Guaranis que aniquilaram as missões jesuíticas do
Paraguai e arrastaram seus neófitos ao cativeiro, ele vê a solução natural e
mais lógica possível do problema indígena e das questões fronteiriças.”
Entretanto,
em sua História Geral do Brasil (Vol. I, Tomo I e II, 10ª. Edição, Belo
Horizonte, Editora Itatiaia Ltda/Ed. USP, 1967), Varnhagen nos apresenta uma
idéia que não nos parece assim tão favorável ao lado mais forte, ou seja o do
conquistador. Em determinado momento, Varnhagen nos transcreve uma lei baixada
por Mem de Sá, ao final de seu governo (20 de março de 1570), que nos revela
uma visão mais humanizada, tanto do autor como historiador, como do governador.
Aqui a transcrevemos (p. 345):
“D.
Sebastião, etc. Faço saber aos que esta lei virem que sendo eu informado dos
modos ilícitos que se tem nas partes do Brasil em cativar os gentios das ditas partes,
e dos grandes inconvenientes que disso nascem, assim para as consciências das
pessoas que os cativam pelos ditos modos, como para o que toca a meu serviço e
bem e conservação do estado das ditas partes, e parecendo-me que convinha muito
ao serviço de Nosso Senhor prover nisso em maneira que se atalhasse aos ditos
inconvenientes, mandei ver o caso na Mesa da Consciência, pelos deputados do
despacho dela, e por outros letrados; e conformando-me nisso com uma
determinação e parecer. Defendo e mando que daqui em diante se não use nas
ditas partes do Brasil dos modos que se até ora usou em fazer cativos os ditos
gentios, nem se possam cativar por modo nem maneira alguma, salvo aqueles que
forem tomados em guerra justa que os portugueses fizerem aos ditos gentios, com
autoridade e licença minha, ou do meu governador das ditas partes, ou aqueles
que costumam saltear os Portugueses, ou a outros gentios para os comerem; assim
como são os que se chamam Aimorés e outros semelhantes. E as pessoas que pelas
ditas maneiras lícitas cativarem os ditos gentios serão obrigadas, dentro de
dois meses primeiros seguintes, que se começarão do tempo em que os cativarem,
fazerem escrever os tais gentios cativos nos livros das provedorias das ditas
partes, para se poder ver e saber quais são os que licitamente foram cativos. E
não o cumprindo assim no dito tempo de dois meses, hei por bem que percam a
ação dos ditos cativos e senhorio. E que por esse mesmo feito sejam forros e
livres. E os gentios que por qualquer outro modo e maneira forem cativos nas
ditas partes declaro por livres, e que as pessoas que os cativarem não tenham
neles direito nem senhorio algum.”
Aquele
que é considerado nosso maior historiador, Capistrano de Abreu, em seu
antológico Capítulos de História
Colonial (1500-1800) & Os Caminhos Antigos e o Povoamento do Brasil. 5ª.
edição (Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1963), quando
publicou sua obra, em 1899, nos deixou uma visão mais negativa que positiva das
bandeiras. Para tal, transcreveu texto de um escritor anônimo sobre os
paulistas, em torno de 1690 (p. 130):
“Sua
Majestade odeia se valer dos homens de São Paulo, fazendo-lhes honras e mercês,
que as honras e os interesses facilitam os homens a todo o perigo, porque são
homens capazes para penetrar todos os sertões, por onde andam continuamente sem
mais sustento que caças do mato, bichos, cobras, lagartos, frutas bravas e
raízes de vários paus, e não lhes é molesto andarem pelos sertões anos e anos,
pelo hábito que têm feito daquela vida. E suposto que estes paulistas, por
alguns casos sucedidos de uns para com outros, sejam tidos por insolentes,
ninguém lhes pode negar que o sertão todo que temos povoado neste Brasil eles o
conquistaram do gentio bravo e que tinha destruído e assolado as vilas de
Cairu, Boipeba, Camamu, Jaguaripe, Maragogipe e Peruaçu no tempo do governador
Afonso Furtado de Mendonça, o que não puderam fazer os mais governadores
antecedentes ou mais diligências que fizeram para isso”.
“Também
se lhes não pode negar que foram os conquistadores dos Palmares de Pernambuco,
e também se podem desenganar que sem os paulistas com o seu gentio nunca se há
de conquistar o gentio bravo que se tem levantado no Ceará, no Rio Grande e no
sertão da Paraíba e Pernambuco, porque o gentio bravo por serras, por penhas,
por matos, por caatinga só com o gentio manso se há de conquistar e não com
algum outro poder, e dos paulistas se deve valer Sua Majestade para a conquista
de suas terras”. (Cf. “Informação do Estado do Brasil e de suas
necessidades”, Rev. Do Inst. Hist. e Geog. Brasileiro. 1862, t. 25, p.
473)."
Em
outro momento de seu texto, Capistrano reproduz carta de um grande amigo seu,
Aníbal Falcão, enviada de Paris, em 15 de outubro de 1899, com críticas aos
paulistas (p. 261):
"...Que
fizeram os teus paulistas?
Em
primeiro lugar, porque eram já habitadores do sertão, não tinham que lutar com
os fortes competidores europeus; em segundo lugar, descobriram apenas o que se
lhes deparou na sua caçada aos índios para a exploração do ouro. Nisso não os
guiava o primeiro impulso dum brasileirismo espontâneo: a cobiça devastou-lhes
terras cujos íncolas eles exterminaram pelo arcabuz ou pelo cativeiro.
Ainda
que eu pudesse demonstrar essas afirmativas, nem tenho tempo de o fazer, nem tu
de tal precisas. Mas, Capistrano de Abreu, historiador do Brasil, carece de
justiça e de verdade. Que o Tietê não se lhe represente melhor do que é e,
sobretudo, foi: o rio da escravidão dos índios está muito longe de haver sido o
Nilo, em cujas margens se fundou a nossa civilização."
São
críticas pertinentes essas de Aníbal Falcão. Entretanto, o contexto em que
viveram e atuaram os bandeirantes precisa ser melhor conhecido, antes que se
faça um julgamento precipitado e ideológico. Diversos autores debruçaram-se
diante do tema doBandeirismo e do Sertanismo e encontraram
distintas causas para esse fenômeno tipicamente brasileiro e, mais
especificamente, paulista.
Em
outra edição de sua obra, (Caminhos
Antigos e Povoamento do Brasil, 4ª. Edição, Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1975), Capistrano, tece considerações sobre a questão do
despovoamento de territórios conquistados pelos paulistas e o fato de que eles
não permaneciam muito tempo em um só local (p. 264):
"Ao
assunto que estudamos não pertencem as bandeiras, por motivos óbvios.
Concorreram antes para despovoar que para povoar nossa terra, trazendo índios
dos lugares que habitavam, causando sua morte em grande número, ora nos
assaltos às aldeias e aldeamentos, ora com os maus tratos infligidos em
viagens, ora, terminadas estas, pelas epidemias fatais e constantes, aqui e
alhures apenas os silvícolas entram em contato com os civilizados. Acresce que
os bandeirantes iam e tornavam, não se fixavam nunca nos territórios
percorridos; isto explica o motivo da sua persistência durante mais de um
século e seu exílio quando não tornaram mais à pátria."
Entretanto,
com o tempo, Capistrano reviu sua posição anterior, e fez algumas correções de
rumo em sua avaliação histórica acerca dos paulistas. Em 1909, ao rever esta
grande e pioneira obra, acima citada, sobre a colonização do sertão, o historiador
cearense, ressalta também a importância de desbravadores pernambucanos (p.
260):
"A
falta de bons portos e rios navegáveis, ou pelo menos perenes, em toda essa
zona ingrata do Nordeste e a proibição, vigente mais de cem anos, de comerciarem
suas capitanias subalternas diretamente com o reino, influíram bastante para o
resultado. Não menos concorreria o fato dos pernambucanos aqui não terem tido
repugnância de entrar pelo sertão.
No
avanço para o sertão defrontaram os índios, em que sobressaiam os cariris,
antigos dominadores do litoral, então acuados entre o S. Francisco e a
Ibiapaba. A sua resistência foi terrível, talvez a mais persistente que os
povoadores encontraram em todo o país; mas atacados no rio S. Francisco, no
Piranhas, no Jaguaribe, no Parnaíba, por gente de S. Paulo, da Bahia, de
Pernambuco, da Paraíba, do Ceará, foram uns mortos, outros reduzidos a
aldeamentos, outros agregados a fazendas, fundindo-se e confundindo-se com os
colonizadores alienígenas.
A
pacificação dos cariris, mais ou menos completa nos primeiros decênios do
século XVIII, deixou livre uma grande área e por ela alastraram numerosas
fazendas de gado. Dos povoadores alguns se corresponderam principalmente com a
Bahia ou Minas Gerais, outros demandaram do Acaraú, do Jaguaribe, do Piancó,
através da Borborema, o litoral pernambucano."
Os
paulistas não estavam sós nesta grande empreitada de conquista do vasto
território. Contrapondo-se à visão de Varnhagen, que via nas grandes viagens de
exploração e conquista desse território como a continuidade da história da
metrópole (seriam os portugueses os continuadores dos grandes feitos iniciados
com as Grandes Navegações ao desbravar a imensidão do sertão tupiniquim),
Capistrano via tais acontecimentos como uma “história íntima”, isto é, feita
por colonos aqui nascidos, mamelucos, índios mansos e negros, totalmente
independentes da metrópole. Assim é que, após alguns parágrafos (Capistrano, obra
citada, p. 264), o grande historiador nos dá uma visão mais amena e já vê com
outro olhar o feito dos bandeirantes:
"A
atenção que não cabe aos bandeirantes reclamam-na de passagem os
conquistadores, homens audazes, contratados pelos poderes públicos para
pacificar certas regiões em que os naturais apresentavam mais rija resistência.
Os conquistadores podiam cativar legalmente a indiada, recebiam vastas
concessões territoriais, iam autorizados a distribuir hábitos e patentes aos
companheiros mais esforçados. Estêvão Ribeiro Baião Parente, Matias Cardoso,
Domingos Jorge Velho e outros fixam este curioso tipo; geralmente não tornavam
à pátria e deixaram sinais de sua passagem e herdeiros de seu sangue em Minas
Gerais, na Bahia, em Alagoas e alhures; mas o maior serviço que prestaram
consistiu em ligar o Tietê e o Paraíba do Sul ao S. Francisco, através da Mantiqueira,
construindo e levando rio abaixo canoas para as quais não havia aqui madeira
própria, e auxiliarem os curraleiros a se estenderem até o Parnaíba e Maranhão.
Domingos Jorge Velho, foi um dos primeiros devassadores do Poti."
Sobre
Domingos Jorge Velho, Capistrano cita um trecho de Afonso d’Escragnolle Taunay,
em sua História Geral das Bandeiras (Capítulos
de História Colonial - 1500-1800 - & Os Caminhos Antigos e o Povoamento do
Brasil, 5ª. Edição, Brasília, Ed. Univ. de Brasília, obra citada, p. 122), onde
destaca um trecho supostamente escrito pelo próprio Domingos, em novembro de
1692:
"Meu
capelão saiu para fora estando eu para sair para a campanha, mandei-o buscar;
não quis vir; de necessidade busquei o inimigo; sem ele morreram-me três homens
brancos sem confissão, coisa que mais tenho sentido nesta vida; peço-lhe pelo
amor de Deus me mande um clérigo em falta de um frade, pois se não pode andar
na campanha e sendo com tanto risco de vida sem capelão."
Um
pouco adiante (obra citada, p. 123), Capistrano nos relata a rotina das
bandeiras, como era o aprisionamento dos silvícolas e a astúcia dos caiapós ao
atacar traiçoeiramente os paulistas:
"Faltam
documentos para escrever a história das bandeiras, aliás sempre a mesma: homens
munidos de armas de fogo atacam selvagens que se defendem com arco e flecha; à
primeira investida morrem muitos dos assaltados e logo desmaia-lhes a coragem;
os restantes, amarrados, são conduzidos ao povoado e distribuídos segundo as
condições em que se organizou a bandeira. Nesta monotonia trágica os Caiapós
introduziram mais tarde uma novidade: “a de nos cercar de fogo quando nos acham
nos campos, a fim de que impedida a fuga nos abrasemos: este risco evitam já
alguns lançando-lhes contra-fogo, ou arrancando o capim para que não se lhe
comuniquem as suas chamas; outros se untam com mel de pau, embrulhados em
folhas ou cobertos de carvão, por troncos verdes ou paus queimados”.
Mesmo
apontando a dureza e a crueldade muitas vezes empregadas pelos paulistas,
Capistrano, reconhece a importância que estes intimoratos aventureiros tiveram
em nossa colonização, ao citar um escritor anônimo, por volta de 1690 (obra
citada, pp. 130-131):
"Sua
Majestade podia se valer dos homens de São Paulo, fazendo-lhes honras e mercês,
que as honras e os interesses facilitam os homens a todo o perigo, porque são
homens capazes para penetrar todos os sertões, por onde andam continuamente sem
mais sustento que caças do mato, bichos, cobras, lagartos, frutas bravas e
raízes de vários paus, e não lhes é molesto andarem pelos sertões anos e anos,
pelo hábito que têm feito daquela vida. E suposto que estes paulistas, por
alguns casos sucedidos de uns para com outros, sejam tidos por insolentes,
ninguém lhes pode negar que o sertão todo que temos povoado neste Brasil eles o
conquistaram do gentio bravo e que tinha destruído e assolado as vilas de
Cairu, Boipeba, Camamu, Jaguaripe, Maragogipe e Peruaçu no tempo do governador
Afonso Furtado de Mendonça, o que não puderam fazer os mais governadores
antecedentes por mais diligências que fizeram para isso.
Também
não se lhes pode negar que foram os conquistadores dos Palmares de Pernambuco,
e também se podem desenganar que sem os paulistas com o seu gentio nunca se há
de conquistar o gentio bravo que se tem levantado no Ceará, no Rio Grande e no
sertão da Paraíba e Pernambuco, porque o gentio bravo por serras, por penhas,
por matos, por catinga só com o gentio manso se há de conquistar e não com
algum outro poder, e dos paulistas se deve valer Sua Majestade para a conquista
de suas terras."
Como
se pode ler, apesar de tecer críticas (bem fundamentadas, educadas, se não
eruditas) a certos personagens de nossa história, Capistrano sabia reconhecer
também suas virtudes. Foi um historiador de quem se pode dizer: “deu a César o
que é de César...”
Um dos elementos que contribuíram para que
Capistrano tivesse desenvolvido progressivamente uma visão mais geopolítica das
conquistas territoriais dos bandeirantes foi uma consequência da leitura, que
realizou no início da década de 1880, do autor alemão Friedrich Ratzel,
intitulada Antropogeografia, conforme
revelou em seus Ensaios e estudos, 1ª.
série, de 1881 (In: Daniel Mesquita
- Descobrimentos de Capistrano: a História
do Brasil “a grandes traços e largas malhas”, Rio de Janeiro, Ed. Apicuri:
PUC-Rio, 2010, p.108-109). Recomendamos ao leitor, interessado no tema, este
livro do historiador carioca, no qual ele detalha essas nuanças da correção no
pensamento histórico de Capistrano. Neste texto, o grande historiador cearense
revela uma convicção de que “a luta territorial é a grande, a importante, a
fundamental questão” (Mesquita, obra citada, p. 108). A “história íntima” do
Brasil, isto é, a conquista do território empreendida, como vimos acima, por
colonos, mamelucos, índios mansos e negros, foi possível com o deslocamento
espacial do litoral para o sertão. O meio ambiente impactou de tal forma o
colonizador que ele se tornou um conquistador. Ainda nesta obra (apud Mesquita, p. 109) investigar a ‘luta
territorial’ pelo estudo das estradas seria para o jovem Capistrano o meio de
escrever “uma história que ainda não encontrou quem a narrasse: a do emprazamento
lento do território; do avanço da civilização e do recuo da barbaria; da
substituição do povo brasileiro às hordas brasílicas nômades”.
Essa
postura de Capistrano teve tal importância que contribuiu decisivamente para o
desembaraço das negociações entabuladas no final do século XIX pelo Barão do
Rio Branco, durante as contendas diplomáticas do Brasil com a Inglaterra e a
França. Capistrano foi o principal consultor do Barão em questões relativas à
geografia e história do Brasil. A opinião de Capistrano foi fundamental para a
instrumentação teórica onde ele “via nas relações entre o território e os povos
traços da diferenciação progressiva entre brasileiros e portugueses”. Influenciado
por Ratzel, Capistrano apontava a “influência que a natureza exerce sobre os
povos, a variabilidade dos mesmos ou a expansão das populações” (Mesquita, obra
citada, p. 111). O Barão utilizou-se de mapas, relatos de viagens, documentos
oficiais e das pesquisas de Capistrano, para demonstrar inequivocamente a
anterioridade da presença portuguesa nos territórios em litígio, como a localização
de estradas, picadas, vias de navegação, fortes militares, soldados e índios
submetidos à autoridade da Coroa portuguesa. Assim, Capistrano também deu sua
capital colaboração na demarcação de nosso atual território brasileiro. Na
época, Eduardo Prado levantou novamente a questão da “Ilha Brasil”, quando, “dizem
os geólogos que o Prata e o Amazonas foram em tempo dois longos mares
interioranos que se comunicavam. O Brasil, ilha imensa, era por si só um
continente” (Mesquita, obra citada, p. 123).
A
visão da história desenvolvida por Capistrano foi adotada de Ratzel (que, por
sua vez, a atribuiu a Herder) e é a seguinte (apud Mesquita, p. 134):
“...
não se pode esquecer que todo acontecimento se faz no espaço, e por isso toda
história possui seu teatro. Tudo que constitui o presente será história amanhã;
por isso, o material da geografia vai
passando ininterruptamente para as mãos do historiador... A frase de Herder de que a história é uma
geografia em movimento permanece verdadeira também inversamente, e disso se
segue que a história não pode ser compreendida sem o território onde ela se
desenvolve, e que a geografia de qualquer parte da terra não pode ser
representada sem conhecer a história que imprimiu sobre esta, suas pegadas.”
A
contiguidade territorial do Brasil é demonstrada por Capistrano, construída
pela ação do homem, que partiu de pontos distantes de nosso território. Seus
principais agentes foram os conquistadores.
Assim como Georg Friederici, Capistrano distingue bandeirantes e conquistadores.
Os primeiros levam ao despovoamento, ao não se fixar no solo e ao trazer,
preado, o índio do sertão. Já os conquistadores se enraízam no território e
consolidam o povoamento. Capistrano também reconhece a possibilidade da
transformação do bandeirante em conquistador (Mesquita, p. 138).
Completando
sua correção de rumo e adoção de uma visão geopolítica ampla, transcrevemos a
súmula do que nos escreveu Capistrano (Capítulos
de História Colonial – 1500-1800 & Os Caminhos Antigos e o Povoamento do
Brasil, pp. 167-168):
Os
triunfos colhidos em guerras contra os estrangeiros, as proezas dos
bandeirantes dentro e fora do país, a abundância de gados animando a imensidade
dos sertões, as copiosas somas remetidas para o governo da metrópole, as
numerosas fortunas, o acréscimo da população, influíram consideravelmente sobre
a psicologia dos colonos. Os descobertos auríferos vieram completar a obra. Não
queriam, não podiam mais se reputar inferiores aos nascidos no além-mar, os
humildes e envergonhados mazombos do começo do século XVII. Por seus serviços,
por suas riquezas, pelas magnificências da terra natal, contavam-se entre os
maiores beneméritos da Coroa portuguesa.
A
esse respeito, ao final desta postagem, encontramos texto do grande escritor
Cassiano Ricardo, que consideramos um grande complemento à posição de
Capistrano.
Figura de um bandeirante (o 1o. Anhangüera). |
Além
de Capistrano de Abreu, vamos também acompanhar o maior “bandeirólogo” do
Brasil, o grande historiador Afonso d’Escragnolle Taunay. Em sua
monumental História das Bandeiras Paulistas, obra esta inicialmente
publicada em sete alentados volumes, o grande catarinense, fez a mais completa
descrição do que realmente foram as bandeiras. Pôs o dedo nas feridas, como
muitos outros, mas soube elevar o trabalho realizado por esses gigantes ao seu
nível merecido. Sua figura insuspeita pode ser apreciada em sua breve
biografia, que se encontra no site da Academia Brasileira de Letras e em vários
outros sites na internet.
Afonso d'Escragnolle Taunay (1876-1958). |
Afonso Taunay nasceu de uma família de nobres, tanto pelo lado paterno
quanto pelo materno. Era filho do então presidente da província de Santa
Catarina, Alfredo d’Escragnolle Taunay, e de Cristina Teixeira Leite, visconde
e viscondessa de Taunay. Nasceu no palácio sede do governo, em Florianópolis,
em 11 de julho de 1876. Formou-se em Engenharia Civil pela Escola Politécnica do
Rio de Janeiro, em 1900. Foi professor da Escola Politécnica de São Paulo entre
1904 e 1910, ano em que se tornou professor catedrático nesta escola. Foi
diretor do Museu Paulista (Museu do Ipiranga), entre 1917 e 1945. Reorganizou a
Biblioteca e o Arquivo do Ministério das Relações Exteriores, em 1930. Foi
professor na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da Universidade de São
Paulo, entre 1934 e 1937. Atuou no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, na Academia Paulista de
Letras, na Academia Portuguesa de História e foi correspondente de Institutos
Históricos de vários estados brasileiros. Foi professor, historiador, tradutor,
genealogista e lexicógrafo (especializou-se na terminologia científica). Toda
essa bagagem intelectual tornou-o um dos maiores historiógrafos do Brasil.
Dedicou especial interesse ao estudo do bandeirismo paulista, ao período
colonial brasileiro, à literatura , ciência e arte do Brasil. Escreveu outra
obra monumental: A História do Café. Foi
ocupante da Cadeira 1 da Academia Brasileira de Letras, eleito em 7 de novembro
de 1929, sucedendo a Luís Murat. Foi recebido pelo acadêmico Roquette-Pinto.
Posteriormente, recebeu os acadêmicos Oliveira Viana e Rodolfo Garcia. Faleceu
em São Paulo, em 20 de março de 1958.
Em 1975, a empresa Edições Melhoramentos, de
São Paulo, publicou a 3a. edição, em cinco volumes de sua História das Bandeiras Paulistas. No Tomo I, logo no início do Capítulo I (pp. 13-14), Taunay nos remete
ao clima histórico em que surgiram as bandeiras. Transcrevo aqui as palavras do
mestre:
“Afirma Euclides da Cunha que a “tradição
heroica das entradas constitui o único aspecto original da nossa história.”
“Não é bem exato o conceito do autor
ilustre dos Sertões. Esta originalidade
tem o Brasil de a repartir com dois outros dos maiores impérios territoriais do
Globo hodierno: a Rússia e os Estados Unidos.
“No reinado de Ivã, o Terrível
(1533-1584) com o famoso hetman Iermak encetaram os russos desde 1578 a fácil
ocupação da Sibéria. Cerca de sessenta anos mais tarde atingiam as praias do
Oceano Pacífico. Em 1689 o tratado de Nertschink estabelecia o Amur como
fronteira sino-moscovita.”
“Em 1720 a imensa região siberiana
com uma superfície correspondente a quatro quintos do continente sul-americano
formava um único governo, em que se incluíam o Kamtchatka e as Kurilas.
“Naquelas vastidões intérminas,
porém, nada se opôs seriamente à conquista. Nelas viviam algumas escassas
tribos perdidas na solidão das estepes. Já em 1875, passados três séculos da
investida de Iermak contava toda a Sibéria cinco milhões de almas apenas.”
“E geograficamente os obstáculos
opostos a tal penetração foram certamente muitíssimo menores do que à
brasileira. Se as planícies siberianas são atingidas pelos frios polares
excessivos o interior brasileiro opôs aos devassadores a calidez da
temperatura. E sua salubridade é muito menor do que a do setentrião asiático,
calidez propícia aos flagelos da agressão parasitária entomológica,
aracnológica e helmintológica a cada passo terrível e por vezes insuportável. E
isto sem contar o ataque invisível ao homem, nos desertos, nascido da
transmissão dos microrganismos, geradores de pavorosas enfermidades.”
“A resistência dos primitivos
siberianos à penetração moscovita foi certamente incomparavelmente menor do que
a das nações indiáticas do Brasil bandeirante.”
“Nos Estados Unidos, como se sabe, o
movimento entradista se processou muito mais tarde.”
“Em 1783 o seu território constituía
a fímbria costeira da Nova Inglaterra. Até 1802 ainda não compreendia a área da
República o ocidente do Mississipi. A exploração das Montanhas Rochosas só se
processou em 1802, quando em 1750, o Brasil tinha a sua linha fronteiriça definida
pelo Tratado de Madri e já se encerrara o nosso ciclo bandeirante. Dezenas de
anos mais tarde encetar-se-ia o dos norte-americanos.”
“A expansão branca encontraria a
resistência das nações indígenas belicosas, e belicosíssimas, de além
Mississipi, mas teria, como instrumento de conquista, extraordinária
superioridade de armamento, incomparavelmente mais eficiente do que a dos seus
precursores do Brasil.”
“Aquilo que na área, em quilômetros
quadrados várias vezes milhonar, realizou o bandeirantismo paulista, coube a
Augusto de Saint-Hilaire definir, em 1830, ao Mundo e em conceitos sintéticos,
impressão nítida da admiração vizinha do assombro que dele se apossara. “Depois
que se conhecem os pormenores das jornadas intermináveis dos antigos paulistas,
fica-se como estupefato e levado a crer que estes homens pertenciam a uma raça
de gigantes.” (Negrito e itálico
nossos).
“E este sentimento admirativo ele o
reforçaria quando meditando sobre o que exigia a jornada das monções cuiabanas
declarava que os europeus, habituados à navegação dos seus mesquinhos rios, não
podiam, de todo, avaliar o que representava semelhante empresa.”
“E
com efeito esta última fase do bandeirantismo, esta sim, não encontra similar
em qualquer outro episódio de tal natureza, nos fastos de qualquer nação do
Globo.” (Negrito
e itálico nossos).
“A prodigiosa navegação fluvial de
Araraitaguaba a Cuiabá não tem o que se lhe compare em qualquer outra região do
Universo. Ela sim representa a grande nota realmente original que Euclides da
Cunha atribuiu a todo o movimento entradista.”
“Enceta-se com o século XVII a era
do bandeirismo paulista num Brasil que então ia de Cananéia a Natal, com a mais
escassa densidade demográfica. Era simplesmente pasmoso que naquele litoral de
milhares de quilômetros de extensão, se houvessem firmado os núcleos de
povoamento português a que balizavam São Vicente e Santos, Rio de Janeiro e
Vitória, Salvador, Olinda e Paraíba.”
“A mais profunda penetração pelo
interior brasileiro acusava uma centena de quilômetros a partir do oceano, em
Parnaíba, a seis léguas de São Paulo. E constituía fato virgem em todo o
território da Colônia.”
Em outro trecho desta obra
fundamental de nossa historiografia quando aborda a questão dos imperativos da
colonização europeia na América e a escravização das raças menos armadas
americanas, Taunay nos diz (pg. 19/20):
“Era, no século XVI, o
imperativo máximo das nações europeias em relação às suas conquistas e colônias
americanas, o que se consubstancia na fórmula famosa do estadista argentino: governar es poblar.”
“Povoar para auferir renda
fosse como fosse, sujeitando o braço dos homens das raças menos armadas às
ásperas, às aspérrimas exigências dos brancos cúpidos, insaciáveis pela
remuneração de suas penosas e arriscadas jornadas oceânicas e continentais,
exigindo tamanho isolamento, desconforto e insegurança de vida.”
“A alucinação dos europeus
emigrados para o Novo Mundo visava os metais nobres, mercadoria de que havia
verdadeira fome na Europa da Renascença. Que valiam terras da América sem
minas? Exclamava um cronista do século XVI.”
“Haviam os portugueses,
primeiros povoadores de Pernambuco, descoberto, de início, tão rendosa mina,
talvez, quanto os jazigos argentíferos peruanos e mexicanos: a do açúcar, gênero
que na Europa proporcionava imensa margem de lucros. Mas a indústria da cana
exigia a presença de avultado operariado.”
“E este só podia ser um,
no clima reinante no Mundo quinhentista: o do braço servil dos indivíduos de
pele escura, cobrada ou negra. Eram, porém, os primeiros, pouco afeiçoados ao
regime de contenção, além de escassos. Davam péssimos escravos. Começaram os
povoadores a voltar-se para aquele imenso viveiro de escravos que era a África.”
“E, assim, vieram os
africanos penar e morrer nas lavouras açucareiras do Brasil, ‘inferno de negros’,
como, em princípios do século XVIII, escreveria o bom e lúcido Antonil.”
“Mas enquanto não chegavam
as levas africanas, os engenhos tiveram de servir-se do labor vermelho, tal
qual ocorria na América espanhola. E para o recrutamento destes servos fácil
recurso era a extensão ao Novo Mundo da multissecular instituição vigente do
outro lado do Atlântico a da preia do escravo.”
“Assim a primeira fase dos
fastos da devassa do solo brasileiro é a da caça ao índio, nascida de um
determinismo econômico.”
“Em São Paulo o frio e a
geada não permitiam o surto açucareiro, mas as expedições dali partidas pelas
terras a dentro, obedientes a uma consuetude racial, vinda dos contatos
luso-africanos do século XV, desde os anos do Infante, dedicaram-se à faina da
preia com vigor não igualado em qualquer outra região da colônia.”
“Há, aliás, ainda a
considerar que a miscigenação planaltina, incutira nos mamalucos euro-americanos
novas tendências reforçadoras de tal mentalidade pois é bem sabido que as
razias escravistas se praticavam correntemente entre as tribos de que
procediam, na própria Piratininga. Denunciam os primeiros jesuítas que a
preação antecedera imemorialmente à chegada dos colonizadores: os tupis,
segundo o Taumaturgo do Brasil, ‘muchas veces van a le guerra y aviendo andado
mas de cien léguas si captivam tres o quatro se tornan com ellos’.”
“Tentar alguém à luz dos sentimentos modernos
obscurecer o que foi o vulto do despovoamento das terras americanas pela
crueldade da conquista dos ibéricos e anglo-saxônicos torna-se inútil e
ridícula tentativa.”
“A crueldade dos espanhóis
procurou um poeta hispano-americano, Quintana, explica-la em versos
sobremaneira repetidos:
‘Su atroz codícia, su inclemente saña
Crimen fueron del tempo y no de España’.”
Taunay, e vários outros autores,
nos revelam que, muito antes dos paulistas, a prática da preação e escravização
já era corrente entre nossos primevos ancestrais.
Esta descrição de Taunay é
especialmente revitalizadora para nós, brasileiros, que tanto subestimamos
nossa pátria e que tanto sofremos, na atualidade, com a falta de informações
que empurrem nossa dose de ignorância e desconhecimento de nossa história para
os abismos profundos da terra. São poucos de nós que sabemos ser a aventura dos
bandeirantes a mais espetacular campanha de conquistas de territórios da
História Universal. Dado este, aliás, compartilhado por Taunay, Jaime Cortesão,
Cassiano Ricardo e muitos outros historiadores, como veremos ao final desta
postagem.
Deixando temporariamente o grande Taunay, insuperável em sua sabedoria, vamos agora descrever o que era
São Paulo de Piratininga, o núcleo do bandeirismo, no século XVI e início do
século XVII. Para tal, nos valemos do excelente texto da historiadora paulista e
professora da Universidade de São Paulo, Myrian Ellis, autora do capítulo As Bandeiras na Expansão Geográfica do
Brasil, que faz parte da também monumental obra História Geral da Civilização Brasileira, Tomo I, A Época Colonial, Do
Descobrimento à Expansão Territorial, organizada por Sérgio Buarque de
Holanda e Pedro Moacyr Campos (São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1972). Em
seu 1º. Volume (pp. 273-279), a profa. Myrian Ellis nos relata como eram as
condições geográficas, climáticas, populacionais, sociais, psicológicas e
econômicas de São Paulo de Piratininga e o porque desta vila ter se tornado o
grande polo irradiador do bandeirismo no Brasil, que ela chama de “o grande
centro gerador de um dos mais heroicos episódios da penetração dos continentes
e com amplas e profundas repercussões na história do Brasil”. Pedimos a
paciência do leitor para transcrevermos aqui um longo trecho deste importante
texto, já que Ellis é uma das mais competentes historiadoras paulistas a
estudar o bandeirismo. É longo, porém muito elucidativo para se compreender o
contexto no qual viveram esses grandes desbravadores. Assim Myrian Ellis nos
relata:
“Encravada no sertão, a mais de setecentos e
cinquenta metros do nível do mar, ergueu-se a vila de São Paulo de Piratininga,
cuja privilegiada posição geográfica predestinou-a ao domínio do Planalto
Meridional brasileiro, ou seja, à condução do movimento de penetração,
desbravamento e conquista de grandes áreas situadas além-meridiano de
Tordesilhas.”
“No início da colonização do Brasil
ao galgar, na altura de São Vicente, a Serra do Mar revestida pela exuberante
mata tropical atlântica, o branco deparou com uma região de vastos campos
cobertos de vegetação rasteira, com pequenas árvores esparsas ou agrupadas e
alguns capões de mato. Eram os campos de Piratininga, já conhecidos pelo índio.
Aí se estendia a planície aluvial formada pelos Rios Tietê, Pinheiros e
Tamanduateí e pelos ribeirões seus afluentes.”
“Outro aspecto da paisagem: colinas
arredondadas, de origem sedimentar, separadas, por fortes declives, das várzeas
frequentemente inundáveis. O solo pobre e pouco profundo, constituído por
depósitos argilo-arenosos, não desenvolvera uma vegetação de porte denso e não
haveria de constituir o principal motivo para a fixação do povoamento. Daria,
entretanto, possibilidades para que aí fosse instalada, tempos depois, uma
agricultura de subsistência.”
“O clima tropical, temperado pela
altitude, em contraste com o interior quente e o litoral caracteristicamente
tropical e favorável às endemias. Clima de aspectos locais, obedecendo à
situação geográfica e topográfica da região a setecentos e cinquenta metros de
altitude em relação ao nível do mar e sob o trópico de Capricórnio que permitiu
a São Paulo ser uma região de transição para zonas de regimes climáticos
diferentes.”
“Um aspecto importante do clima:
temperaturas moderadas, sujeitas a grandes oscilações decorrentes do predomínio
periódico de massas de ar – a tropical-atlântica, a equatorial-continental e a
polar-atlântica, da qual emanam prolongamentos ou “frentes” até a atmosfera de
São Paulo, provocando fenômenos típicos das altas latitudes do hemisfério sul.
Consequentemente, um clima tônico, pelas variações bruscas de temperatura, em
reduzidos espaços de tempo, estimulante e renovador de energias, favorável ao
desenvolvimento da eficiência humana propício ao povoador europeu, não só por
essas particularidades, como por ser eliminador das grandes endemias tropicais,
fato de importante significação numa época em que o homem não dispunha dos
modernos recursos da civilização para dominar certas condições do meio. O clima
facilitou, portanto, o estabelecimento do europeu na região e o desenvolvimento
demográfico; favoreceu a constituição física do paulista, explicando em grande
parte a sua vitalidade e sua eficiência de homem afeito às incursões ao
sertão.”
“Eis como o planalto, na região
vicentina, sobrepujou o litoral, pelas vantagens que oferecia à colonização. A
estreita faixa costeira, os terrenos baixos constituídos por mangues e
pântanos, a inexistência de um solo rico e comparável aos massapés do Nordeste,
um clima tropical, gerador de endemias, tudo isto contribuiu de forma a
impulsionar o homem serra acima, permanecendo quase desprezada a zona costeira.
Os fatores geográficos explicam, pois, vários motivos de deslocamento do centro
de colonização do litoral para o planalto, da escolha do sítio para a localização
da célula inicial do aglomerado paulistano e do seu posterior desenvolvimento.”
“Ainda mais um fator responsável
pela situação dos campos de Piratininga como um centro de convergência da
colonização do planalto. Na altura de São Paulo, a barreira montanhosa, formada
pelos terrenos antiquíssimos de granitos e gnaisses da Serra do Mar, desce para
oitocentos metros, enquanto para o norte atinge de novecentos a dois mil metros
de altura e para o sul alarga-se consideravelmente até cem quilômetros de extensão
com uma topografia acidentada e revestida por densa e intrincada mata tropical.
Eis por que, apesar das dificuldades de acesso, tornou-se essa a passagem
preferida para a penetração do planalto. Já era aproveitada pelos índios e
passou a sê-lo pelos europeus.”
Todas essas condições influíram na
escolha do local para a construção do Colégio de São Paulo, pelos jesuítas, em
25 de janeiro de 1554, na colina que contribui para a divisão das águas dos
rios Anhangabaú e Tamanduateí, a aproximadamente trinta metros de altitude em
relação aos fundos dos vales circunvizinhos.
Continua a profa. Myrian Ellis, sua
brilhante apresentação:
“Essa verdadeira acrópole, pelas
suas condições geográficas e estratégicas de defesa contra o índio, alojou o
colégio fundado pela Companhia de Jesus e depois, o povoado elevado a vila – a
vila de São Paulo de Piratininga – seis anos mais tarde. Teriam sido observadas
pelos jesuítas e pelos colonizadores as vantagens da posição geográfica do
local escolhido, em relação ao Tietê, ao Paraná e consequentemente à região do
Prata. Era um trampolim para o sertão e, devido à sua excelente situação
relacionada às vias de acesso para o interior, manteve a soberania
expansionista no Planalto Meridional.”
Ellis nos aponta que aquela era uma
zona de convergência das linhas do relevo e do sistema hidrográfico da região.
Era e é um centro de entroncamento de passagens naturais, o que,
indiscutivelmente, foi o principal elemento da construção da vila e da formação
do espírito pioneiro e desbravado do paulistano.
“Três grandes passagens partem de
São Paulo, seguindo as linhas do relevo que condicionaram as diretrizes da
expansão: a) A passagem rumo nordeste, pelo vale do Paraíba, rota das
expedições para Minas Gerais, para o Rio São Francisco, para o norte e nordeste
do Brasil. b) A passagem para o norte, por Campinas e Moji Mirim, em direção a
Minas Gerais e Goiás. c) A passagem em direção ao sul e sudoeste, via Sorocaba
e Itapetininga visando as regiões meridionais.”
”As duas primeiras resultam da
posição da Serra da Mantiqueira que penetra em São Paulo pelo norte, como uma
cunha cuja ponta é o morro do Jaraguá. De um lado e de outro situam-se, então,
a passagem da planície do Paraíba para o nordeste e a passagem em direção norte
formada por terrenos da depressão periférica mais ou menos planos que se
estendem do nordeste do Estado – Mococa, Casa Branca – até sudoeste – Itararé,
Faxina – descrevendo amplo arco de círculo, cuja face convexa passa nas
proximidades de São Paulo, por Campinas e Itu. São terrenos que para oeste seguem-se
logo após a escarpa da Mantiqueira ao norte de São Paulo e para o sul
sucedem-se à topografia movimentada da Serra de Paranapiacaba.”
“A passagem rumo sul é a própria
continuação desses terrenos de configuração quase uniforme, que continuam em
direção às partes meridionais do Brasil, infletindo para sudoeste na altura de
Itapetininga. Foi a passagem que facilitou a penetração dos paulistas até o
vale do Paranapanema e seus afluentes da margem esquerda, onde se estabeleceram
os jesuítas em terras do Alto Paraná no século XVII. Nesses terrenos
localizam-se os campos de Sorocaba e de Itapetininga, aproveitados nas
comunicações estabelecidas não só com a região do Paraná, como de Santa
Catarina e Rio Grande do Sul percorrida e devassada pelos bandeirantes.”
“Essas três grandes passagens
naturais que convergem para São Paulo, estabelecidas pelo relevo, fizeram de
Piratininga um verdadeiro núcleo do sistema topográfico da região,
possibilitando e canalizando a expansão desbravadora e colonizadora levada avante
naquelas direções rumo ao interior do Brasil.”
“Além disso, São Paulo foi a escala
intermediária das comunicações entre o planalto e o litoral. O Caminho do Mar,
antiga trilha dos índios, foi a principal via de passagem da Capitania de São
Vicente através da serra, não obstante as grandes dificuldades que se
antepunham ao livre trânsito. Ainda mais. A presença do Rio Tietê fez de São
Paulo o centro natural de importante sistema hidrográfico. Acessível pelo
Tamanduateí nos tempos coloniais, cortando todo o território paulista rumo
noroeste e atirando-se no Rio Paraná, o Rio Tietê estabeleceu comunicações
fluviais para a região de Mato Grosso. Por aí navegaram as monções cuiabanas no
século XVIII.”
“Nos primeiros tempos da
colonização, ele e seus afluentes tiveram considerável atuação de importância
no povoamento de São Paulo e imediações, povoamento que depois se estendeu
também ao vale do Paraíba que no curso superior quase se confunde com o Tietê e
que corre em direção oposta, como um verdadeiro prolongamento para leste do
curso daquele afluente da bacia platina.”
“Decorrência do ajuste do relevo e
da hidrografia foi essa situação privilegiada que fez de São Paulo o centro de
expansão por excelência do Planalto Meridional. Convergiam para São Paulo as
rotas sertanistas: a) o caminho do vale do Paraíba que conduziu ao sopé da
Mantiqueira, de onde partiam serra acima as trilhas que levavam às Gerais; b) o
caminho do sul rumo às Reduções jesuíticas estabelecidas em terras além
Tordesilhas; c) os caminhos do norte, o que por Moji Mirim atingia as minas de
Goiás e o que, pela região de Atibaia e Bragança, ganhava o sul de Minas; d) o
caminho fluvial do Tietê, em direção oeste, rumo às minas de Cuiabá; e) o
caminho do mar, rumo ao litoral, eixo do sistema São Paulo-Santos.”
“Se a situação geográfica de São
Paulo de Piratininga como centro de entroncamento de rotas de penetração para o
interior influiu na expansão sertanista, não menos importante nesse sentido foi
a presença da Serra do Mar. Dificultando pela sua aspereza o livre trânsito
entre o planalto e o litoral, fez com que a vila piratiningana se voltasse
inteiramente para o sertão, onde o paulista ia buscar o “remédio para a sua pobreza”: o índio. Ou pesquisar tesouros
naturais de pedras e metais preciosos que aguardavam o momento de serem
desvendados pelo homem. O sertão era, portanto, uma provocação, um fascínio
constante ao espírito aventureiro do paulista.”
Por que foi necessário o apresamento
de índios? Pura maldade, banditismo ou ódio racial? Nada disso. A profa. Myrian
Ellis nos dá a sua visão de historiadora:
“’Buscar o remédio
para a sua pobreza’, ‘buscar o seu remédio’, ‘buscar a sua vida’, ‘o seu modo
de lucrar’ são
expressões usuais nos testamentos de bandeirantes do século XVII, designando
suas incursões ao sertão. Traduzem os objetivos econômicos das expedições de
apresamento do índio.”
“Dos moradores do Brasil já dissera
Gândavo: ‘(...) a primeira coisa que pretendem alcançar, são escravos para lhes
fazerem e granjearem suas roças e fazendas, porque sem eles não se podem
sustentar na terra (...)’.”
“Os paulistas não escaparam a essa realidade.
Dominava a penúria na Capitania de São Vicente e o povoador, não dispondo de
recursos para a aquisição do escravo negro, teve que lançar mão do trabalho
indígena que lhe assegurava os meios de subsistência de acordo com o regime econômico
da época.”
“Impedida pelas condições
geográficas de concorrer com a região açucareira por excelência do Brasil
Colonial – a Capitania de Pernambuco enriquecida pelo açúcar – estagnou-se na
segunda metade do século XVI a lavoura canavieira iniciada por Martim Afonso de
Sousa no litoral vicentino. Faixa costeira aluvional, estreita pela presença da
serra, de solo pouco profundo, pantanosa, faltavam à região as excelentes
condições características da larga planície litorânea e dos massapés do
Nordeste, como também as decorrentes da posição privilegiada da Capitania de
Pernambuco, na parte mais oriental do Novo Mundo, facilitando as comunicações
com a Metrópole, o que aliviava o preço do frete do açúcar transportado para a
Europa. Consequentemente a Capitania de São Vicente ficou relegada a um plano
econômico inferior e o homem então preferiu o planalto. Galgou a Serra do Mar e
aí se estabeleceu, desenvolvendo uma policultura de subsistência baseada no
trabalho forçado do índio capturado no sertão. Visava assegurar uma base
material que lhe garantisse a sobrevivência. Assim, firmou-se definitivamente
no planalto, de onde partiu, depois, em todas as direções, na arrancada
sertanista em busca de índios, de pedras e metais preciosos”.
“Capturado inicialmente pelo colono
nas imediações de Piratininga e depois apresado pelo bandeirante, sertão
adentro, num raio de ação cada vez mais amplo, o índio teve, ainda, outra
função econômica: locomovendo-se por si próprio numa época em que escasseavam
os meios de transporte, constituiu ‘mercadoria’ de exportação para outras
capitanias. Esse tipo de comércio já era praticado desde a época em que os
portugueses, João Ramalho, Antônio Rodrigues e o Bacharel de Cananéia viviam no
litoral vicentino e imediações a capturar índios e a negociá-los para outras
regiões. Não havia sido fundada ainda a vila de São Vicente e o respectivo
porto era então denominado ‘porto dos escravos’.”
“Na primeira metade do século XVII,
houve grande incremento no tráfico de índios, devido às investidas paulistas
contra as missões jesuíticas estabelecidas na bacia platina, onde capturaram os
bandeirantes grandes contingentes ameríndios já aculturados e aptos aos
trabalhos braçais em geral.”
“Os empórios desse tráfico teriam
sido São Paulo, Santos, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Em 1628, consta que
no Rio de Janeiro o preço dos índios atingia a cifra de vinte mil-réis por
cabeça, um quinto do valor do escravo africano. Chegaram a escassear nas
lavouras paulistas, tal o êxodo forçado para outras capitanias, em certas
épocas. Tal fato resultou do desenvolvimento da indústria açucareira do
Nordeste e da Bahia, absorvedora do trabalho escravo, e das dificuldades
advindas das guerras holandesas que desorganizaram temporariamente o tráfico
negreiro para o Brasil. Quando se efetuou o ataque batavo à Bahia, a Câmara de
Salvador fez um apelo aos paulistas, solicitando a remessa de escravos para o
Recôncavo devastado pelas forças inimigas.“
“Ainda sobre o tráfico indígena
promovido pelos bandeirantes, é possível que se tenha estendido ao Nordeste com
o fim de aumentar os contingentes humanos na expulsão do flamengo. Ou também à
região do Prata, para o fornecimento de mão-de-obra para os ervais de mate do
Paraguai e ainda para a zona de mineração andina, grande consumidora de
mão-de-obra e certamente prejudicada também pela influência holandesa no
Atlântico Sul. São problemas que aguardam, entretanto, estudos especializados e
comprovação documental.”
“Quanto às vantagens materiais
auferidas pelas incursões bandeirantes, até hoje não foi possível uma avaliação
concreta, pela inexistência de dados elucidativos, pois as ‘peças’ trazidas do
sertão eram consideradas nos atos públicos quase sempre como forras ou como
tendo-se agregado aos povoados por livre e espontânea vontade, não podendo,
portanto, ser avaliadas, nem constar dos inventários.”
“Excetuando o período das incursões
bandeirantes às missões jesuíticas, os resultados do apresamento não foram
vultosos. Um engenho de açúcar do Nordeste, por exemplo, rendia mais do que uma
expedição apresadora. Diante dos sacrifícios, do desgaste humano, dos riscos
sem-par corridos pelo bandeirante, era fraco o rendimento econômico de uma
bandeira. O tráfico de índios, salvo curtos períodos, não constituiu um
comércio lucrativo. É o que provoca a pobreza da Capitania de São Vicente e a
sua limitada produção. Contribuiu, entretanto, de alguma forma, para manter o
modesto padrão de vida do paulista, bem como o seu interesse pelo apresamento.”
“Ao lado da agricultura de
subsistência e de outros misteres que nos agrupamentos humanos paulistas
exigiram o baço indígena e alimentaram a caça do índio, o tráfico do aborígene
também influiu sem dúvida na ação desenvolvida pelo bandeirante.”
“Em decorrência dos fatores
econômicos, o bandeirismo tornou-se uma profissão criada pelo meio e uma escola
por excelência, onde os adolescentes paulistas eram preparados para a caça ao
índio e para o sertanismo em geral. Tornou-se um negócio até. Aquele que não
podia partir para o sertão, tratava alguém que fosse por sua conta,
fornecendo-lhe os meios materiais necessários à empreitada: índios, correntes,
armas, munições de guerra e mais aviamentos, ou seja, a ‘armação’ de que o
bandeirante era o ‘armador’. Uma verdadeira sociedade estabelecida com o
capital de uns e a coragem de outros, ou sociedade capital e indústria. Os
lucros eram depois repartidos proporcionalmente.”
Encontramos em muitos outros autores
informações preciosas acerca do bandeirismo. Gilberto Leite de Barros, um dos
grandes autores a escrever sobre o bandeirismo, em sua obra A cidade e o campo. Processo de dominância
da cidade de São Paulo. Tomo I. (São Paulo, Livraria Martins Editora,
1967), nos informa (pg. 7):
“À
medida que crescia a população de São Paulo, ampliava-se o consumo, provocando
a necessidade de criar-se alguma lucrativa fonte de produção. Não se
organizando a agricultura, em termos de empreendimento econômico, não se
criando, em consequência, comércio regional ou de exportação, foi “em partes e
desertos de sertões muito prolongados” onde abundava gentio hostil, “e onças e
tigres e outros bichos mui indômitos”, que o paulista procurou ganhar a vida,
no corpo a corpo com a natureza, esquadrinhando a terra na busca de ouro e
prata ou na trabalhosa caça ao índio, para ser presado e vendido como escravo.
As causas econômicas explicaram inelutavelmente, a campanha escravizadora dos
bandeirantes, embora inúmeras outras tenham contribuído para a sua
concretização.”
Citando
o grande historiador Alfredo Ellis Júnior, em seu livro Capítulos da História Social de São Paulo (São Paulo. Cia. Editora
Nacional, 1944, pág. 325), prossegue Gilberto Leite de Barros:
“Alfredo
Ellis Júnior, examinando o problema do aparecimento do bandeirismo, atribuiu-o
a diversas causas, entre as quais as econômicas, geográficas e demográficas
(necessidade premente de povoamento), mas relevando, sobretudo, as econômicas.
“A causa econômica determinante do bandeirismo”, assevera ele, “foi a falta de
uma fonte de riqueza qualquer na região vicentina”. Exauridas as primeiras
tentativas de cultivo em larga escala da cana-de-açúcar, só restava ao homem o
ataque ao sertão, criando de forma “sui generis” uma atividade econômica
própria, peculiar ao meio rude e inóspito. “São Vicente não tinha, pois”, dizia
ele, “elementos econômicos para sair do dilema hórrido que se apresentava
implacável diante de si. Ou volviam ao Reino, abandonando a obra de
colonização, ou se equiparavam aos povos primitivos diante da absoluta
impossibilidade de serem adquiridos, por importação, os meios que deveriam
manter na civilização os povoadores de São Vicente.”
Sobre
as dificuldades financeiras e as agruras pelas quais passava a população de São
Paulo de Piratininga nos séculos XVI e início do século XVII, Gilberto Leite de
Barros acrescenta (pp. 16/17):
“O
que ressaltava em São Paulo de Piratininga, sobretudo nos séculos XVI e XVII, era
o esforço infecundo do homem para granjear estabilização econômica, fosse na
exploração do ouro de lavagem, na cultura da cana-de-açúcar, ou no
aprisionamento de índio para ser vendido como peça no mercado. À organização
social de Piratininga faltava um esteio econômico e social – tipo casa-grande,
por exemplo – que propiciasse a consolidação do poder local e, portanto, do
regional. Repara-se, com frequência, no exame das atas e cartas da Câmara, a
inconformação da gente da terra contra a desorganização econômica vigente,
revolta que se manifestava em termos de conflito social, na rixa constante com
o jesuíta, com os capitães-mores, como os ouvidores. Por que cargas dáguas o
piratiningano teria iniciado o movimento do bandeirismo escravizador, senão com
o fito de lançar o brado de protesto de um povo, cuja vida decorria sem eira
nem beira, sentindo-se o homem na situação de uma espécie de tapa-buraco a
serviço da Coroa? Seriam maus os Raposo Tavares ou os Manuel Preto? Ou
prefeririam ao sistema que superintendeu suas vidas, um outro estável, como
poderia ter sido, por exemplo, a cultura do açúcar, a pecuária, ou qualquer
empreendimento agrícola favorável?”
“Quando
a população da vila de São Paulo não excedia a 190 moradores – consoante
informava a Câmara em janeiro de 1606 – já demonstrava a Coroa lusitana a
intenção de beneficiar-se dos dotes de
mobilidade e agressividade do homem paulista. O ouro de lavagem, descoberto por
Afonso Sardinha junto ao Jaraguá, e as minas de ferro de Araçoiaba haviam
excitado a ganância da administração portuguesa, a ponto de, em 1599, D.
Francisco de Sousa – governador-geral do Brasil – dispor-se a vir à vila de São
Paulo, a fim de informar-se a respeito das minas, trazendo em sua companhia o
seu secretário, Pedro Taques, natural de Setúbal. Em 16 de outubro de 1609
publicou-se alvará proibitivo de criação de novos conventos no Brasil, a fim de
assegurar o aumento da população. No mesmo sentido, com o fito de elevar a
população, em 1623, uma ordem régia veio determinar a cobrança de quinto no
aprisionamento do gentio sob a condição de que a quinta parte dos índios fosse
aldeada pelos padres.”
“Nem
se diga que o rendimento econômico das bandeiras fosse compensador, sobretudo
se se levarem em conta os perigos que os sertanistas eram obrigados a arrostar.
“Um único engenho real, no Nordeste Brasileiro”, assinala Roberto Simonsen,
“rendia, anualmente, em seu pacífico labor, bem mais do que uma destas
perigosas expedições. (Simonsen, Roberto C. – História Econômica do Brasil. São Paulo. Cia. Editora Nacional,
1937, tomo I, p. 324.).
É difícil estabelecer-se cálculo aproximado para avaliar o total de peças aprisionadas pelos paulistas, no sertão bruto ou nas Reduções Jesuíticas do Brasil e Paraguai. Roberto Simonsen julga, que o total dos índios aprisionados não teria ultrapassado o número de 300.000 peças, em todo o ciclo despovoador. No seu entender, esse total representaria menos de 2.000.000 de libras, ou seja, menos de 1% do valor que a mineração, em 70 anos, encaminhou aos cofres de El-Rei. O Cônego João Pedro Gay assinala que, em 1631, quando os jesuítas foram obrigados a abandonar as reduções das províncias de Guaíra e de Vera, e a retirar-se para duzentas léguas ao Sul, a população das reduções diminuiu de cem mil para doze mil almas. E, citando as informações de Alcide d’Orbigny, em sua “Voyage em Amérique”, lembra estar “provado por documentos autênticos que de 1628 a 1630 os paulistas roubaram e venderam como escravos mais de sessenta mil habitantes das reduções”. (Com. João Pedro Gay. História da República Jesuítica do Paraguai. Rio de Janeiro. Imprensa Nacional, 1942, 2ª. Edição, p. 241).”
É difícil estabelecer-se cálculo aproximado para avaliar o total de peças aprisionadas pelos paulistas, no sertão bruto ou nas Reduções Jesuíticas do Brasil e Paraguai. Roberto Simonsen julga, que o total dos índios aprisionados não teria ultrapassado o número de 300.000 peças, em todo o ciclo despovoador. No seu entender, esse total representaria menos de 2.000.000 de libras, ou seja, menos de 1% do valor que a mineração, em 70 anos, encaminhou aos cofres de El-Rei. O Cônego João Pedro Gay assinala que, em 1631, quando os jesuítas foram obrigados a abandonar as reduções das províncias de Guaíra e de Vera, e a retirar-se para duzentas léguas ao Sul, a população das reduções diminuiu de cem mil para doze mil almas. E, citando as informações de Alcide d’Orbigny, em sua “Voyage em Amérique”, lembra estar “provado por documentos autênticos que de 1628 a 1630 os paulistas roubaram e venderam como escravos mais de sessenta mil habitantes das reduções”. (Com. João Pedro Gay. História da República Jesuítica do Paraguai. Rio de Janeiro. Imprensa Nacional, 1942, 2ª. Edição, p. 241).”
Outra
importante questão que contribui para se entender o Bandeirismo e o Sertanismo
é a questão do “status” social adquirido por todos aqueles que se engajavam
numa bandeira. Continua Gilberto Leite de Barros em seu interessantíssimo
relato (pg. 28):
“Magnetismo
do sertão – A missão do homem vicentino do século XVI resumia-se precipuamente
na domesticação do sertão. Encabrestar o sertão, quebrar-lhe o mistério,
tocar-lhe o conteúdo, viver a satisfação do domínio sobre a terra estranha e
incomensurável, eis o propósito do colonizador. Na epopeia piratiningana, “o
dominador”, como diz Cassiano Ricardo, “é o homem pela força do seu pensamento
geométrico e construtivo. Ele é quem amarra a distância com os próprios rios,
com o sangue brasileiro da bandeira, com as entradas de penetração, com o
espírito que vigia a terra, com os laços invisíveis e eternos da solidariedade
nacional”. Como se sentiria o lusitano, arribado de barco à vela da Europa
rotineira e de viver cadenciado, ao projetar-se no novo continente, inexplorado
e silencioso? Como se lhe afiguraria o primeiro impacto com o sertão? Que
resposta poderia este lhe dar às dúvidas e ambições embarcadas de tão longe? À
beira da praia, o homem iluminava a vista com a luz do céu oceânico, vendo o
mar, que era o caminho da civilização europeia. À beira-mar, ainda que distante
do lar, da província, do país, o homem confiava em si mesmo, porque se escorava
em todo um arcabouço de civilização de que se sabia possuidor. Junto ao oceano
ouvia o rebojo do vento e sentia o mesmo aroma marítimo que sentira no cenário
doméstico que o vira nascer. Dentro do continente, ao revés, o homem
deparava-se com o sertão errático, o “tapuyrama”, a região dos tapuias ou dos
bárbaros, zona que representava o desconhecido, a treva, o terror. Era por ali
que o homem devia se enroscar como uma cobra, serpentendo por debaixo de
troncos de peroba, ultrapassando valos, galgando espinhaços perigosos.”
“O
vicentino, que era o homem pré-sertanejo, achava-se constantemente de vigília
na terra, pronto a estarrecer-se com o belo ou o terrível enclausurado no
interior do continente estranho. Pero de Magalhães Gândavo, quando se referia a
São Vicente, afirmava: “Esta he a última capitania que há nestas partes do
Brasil”, evidenciando que ali se encontravam os confins do mundo a desafiar a
ciência do homem (Pero de Magalhães Gândavo, Tratado da Terra do Brasil. Rio de Janeiro. Edição do anuário do
Brasil, 1924, pág. 37). Pero Lopes de Sousa esclarecia que Martim Afonso
ordenara se fizesse “hûa villa na ilha de Sam Vicente e outra 9 léguas dentro
pelo sartam, a borda d’hum rio que se chama Piratininga”, registrando ao aludir
aos castelhanos encontrados pelas bandas de São Vicente: “... deram novas ao
capitam I de muito ouro e prata, que dentro no sartam havia; e traziam mostras
do que diziam e afirmavam ser mui longe’. Da mesma forma, Nóbrega, em 1554, em
carta endereçada a “El-Rei D. João”, preocupava-se, indisfarçavelmente, com os
extremos da terra, afirmando que ali, ao pé da Serra do Mar, está “a porta e o
caminho mais certo e seguro para entrar nas gerações do sertão”.
Continuamos
a sorver o elevado saber sobre os paulistas revelado por Gilberto Leite de
Barros. Agora, ele aborda a importante questão em que o sertão foi uma escola
para o homem (p. 30):
“O
sertão moldou a alma paulista desde as primeiras eras coloniais, porque ali
estavam quase todos os elementos materiais e espirituais forjadores da cultura
planaltina: o ganha-pão profissional (através da caça ao índio e da procura da
pedra preciosa); a alimentação e os remédios, desde as mandiocas até as plantas
e ervas medicinais, que lhe serviam para curar doenças e assegurar a sobrevivência;
a satisfação sexual e consequente proliferação graças a união carnal com a
índia. No sertão, encontrava o homem a inspiração para fortalecer os seus mitos
e superstições, lendário, cuja influência no seu espírito religioso foi
profunda. Do sertão, o homem retornava engrandecido ou não, herói ou não,
revelando na luta com a terra se sentia coragem ou medo, e se demonstrava
iniciativa ou apatia, prudência ou leviandade. O sertão configurava-se como a
escola do homem, pois junto à natureza rude ele aprendia a tornar-se adulto e a
conhecer empiricamente a Geografia, a Zoologia, a Botânica, a Astronomia, a
arte de fazer a guerra ao inimigo ou a de caça e pesca. No sentido moral,
servia o sertão de prova de fogo, verdadeiro crisol, pois o homem tanto podia
estiolar ali a personalidade como desenvolvê-la plenamente. Sucedia que o
menino piratiningano, educado para tornar-se adversário do sertão, não chegava
a sublimar na adolescência a agressividade primária (sádica, no sentido
freudiano), que o trabalho ordenado e coletivo absorve logo ao raiar a
mocidade. A fim de conseguir o diploma de homem adulto, havia de persistir, sem
intermitência, através da sua vida, em exercitar-se nos grandes lances
emocionais e aleatórios, que exigiam mais o empenho do arrojo e da astúcia, do
que a colaboração da própria razão.”
Completando
esse profundo estudo sobre a alma do bandeirante, Gilberto Leite de Barros nos
oferece sua visão global do que foi o bandeirismo, esse movimento fundamental
na história do Brasil (p. 39-40):
“Entendo
o bandeirismo, entre nós, como o símbolo de tudo que significa justamente
dinamismo, movimento, iniciativa, realização. Se o bandeirismo caracterizou-se,
de início, antes da promoção de sua imagem a símbolo, como predatório, instável
e despovoador, assim sucedeu em virtude de não ter havido então condições
econômicas, sociais e políticas, para apressar o amadurecimento do pioneirismo,
à semelhança do que aconteceu nos Estado Unidos. Não reconheço no bandeirismo
natureza unicamente destrutiva e fugaz. No bandeirismo, o que vejo é a
tentativa inglória e penosa do homem de estremecer a apatia que se originava na
sua pobreza e se confundia com o seu cansaço perante as insuficiências locais.
Insuficiências econômicas, como a disparidade, desde cedo estabelecidas, entre
os vastos latifúndios brasileiros e as propriedades norte-americanas
desmembradas a pouco e pouco, sobretudo na Nova Inglaterra; insuficiências
demográficas, uma vez que era incomparável a capacidade povoadora entre a
Inglaterra e Portugal. É sabido que em Portugal escasseava a população no
século XVI, a ponto de não haver gente sequer para o cultivo do próprio
território lusitano. Na primeira metade do século XVI os escravos negros
somavam parte ponderável da população de Lisboa, desde que as expedições ao Oriente haviam extirpado muitas vidas e
diminuído enormemente a densidade demográfica do Reino. Os Estados Unidos foram
povoados por gente de nível de instrução mais elevado, indivíduos conscientes
do que significava o Estado, a propriedade privada e outros conceitos de tal
ordem. Segundo Caio Prado Jr., “as colônias tropicais tomaram um ritmo
inteiramente diverso do de suas irmãs da zona temperada”, pois “nestas se
constituiram colônias propriamente de povoamento
(o nome ficou consagrado depois do trabalho clássico de Leroy Beualieu “De la
colonization des les peuples modernes”), escoadouro para excessos
demográficos da Europa que reconstituem no Novo Mundo uma organização e uma
sociedade à semelhança do seu modelo e origem europeus” (Caio Prado Jr. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo. Editora Brasiliense
Ltda., 1948, 3 ed., p. 25).”
E
conclui sua brilhante exposição (p. 41):
“Em
São Paulo, a conduta social do homem seiscentista caracterizou-se especialmente
pela mobilidade e presteza no agir, traços culturais que, estimulados pelo seu
temperamento emotivo floresceram sob a influência de um conjunto de fatores de
variada natureza, quase todos de efeitos emocionais negativos e frustradores
para o homem; fatores de ordem política ou jurídica – a incerteza das
fronteiras e as pretensões jesuíticas sobre a posse do gentio; fatores de ordem
econômica – o ilícito escambo com o índio, e a infrutífera, durante século e
meio, busca ao ouro e às pedras raras: fatores de ordem espiritual – a
religiosidade cristã mesclada com certa mitologia do sertão, o tabu florestal, como o denominou Joaquim
Ribeiro; fatores de ordem biológica – a necessidade da união sexual e
poligâmica com a aborígene; e, finalmente, fatores morais, estes de efeito
positivo para o homem, como seja, o anseio de afirmação perante o meio
inóspito, enfrentando-o cara a cara, com destemor e virilidade. A síntese desse
complexo cultural constituiu o bandeirismo. Na sua fase áurea, o movimento
bandeirante representou um ideal ético de vida, estimulado, como já se disse,
por elementos carismáticos, que não se desfizeram, mas se espiritualizaram,
inflamando até os dias de hoje a ação do povo planaltino. Por isso orgulha-se o
“paulista de quatrocentos anos”, ao procurar legitimar a ascedência
carismática, arrimado nos feitos heroicos dos antepassados. Este fenômeno de
legitimação do carisma exprime, ao ver de Max Weber, a sua objetivação, isto é, o
carisma continua como objeto desde que passa a ser entendido como um bem hereditário. E tanto se pode
consagrar o carisma pela concepção puramente norte-americana (puritana) do
“self-made man” – o que se faz por si mesmo portador de carisma que diviniza a
criatura – como , nos regimes monárquicos, pelos reis que simbolizam carismáticamente
os primitivos heróis guerreiros mediante a sagração.”
Este é um tema que desperta argumentações apaixonantes, brilhantes e, até mesmo, eruditas. Não há consenso entre os historiadores se houve realmente uma continuidade entre o processo histórico dos Descobrimentos e o das bandeiras. Existem bons argumentos pró e contra ambas as postulações. Todas ricas em descrições e conhecimento.
O
grande historiador e intelectual Sérgio Buarque de Holanda, em uma das mais
importantes obras sobre a história do Brasil, nos apresenta sua visão
geopolítica das questões aqui abordadas. Em seu seminal Raízes do Brasil (São Paulo, Companhia das Letras, 26ª. edição
(2011, p. 100) ele aborda a polêmica questão das bandeiras serem ou não uma
continuidade dos grandes Descobrimentos efetuados pelos portugueses.
Diferentemente de outros autores, ele acredita que o bandeirismo é um fenômeno
tipicamente brasileiro e não português. Senão vejamos:
“Os
portugueses, esses criavam todas as dificuldades às entradas terra adentro,
receosos de que com isso se despovoasse a marinha. No regimento do primeiro
governador-geral do Brasil, Tomé de Sousa, estipula-se, expressamente, que pela
terra firme adentro não vá tratar pessoa alguma sem licença especial do
governador ou do provedor-mor da fazenda real, acrescentando-se ainda que tal licença
não se dará, senão a pessoa que possa ir ‘a bom recado e que de sua ida e
tratos se não seguirá prejuízo algum, nem isso mesmo irão de huas capitanias
para outras por terra sem licença dos ditos capitães ou provedores posto que
seja por terras que estãm de paz para evitar alguns enconvenientes que se disso seguem sob pena de ser açoutado
sendo pião e sendo de moor calidade pagará vinte cruzados a metade para os
cautivos e a outra metade para quem o acusar”.
Um
pouco adiante, Buarque de Holanda reforça sua visão de que o fenômeno do
bandeirismo é obra puramente nacional, paulista, numa associação entre portugueses
já abrasileirados, mamelucos e índios mansos (pp. 101-102):
“A
influência dessa colonização litorânea, que praticavam, de preferência, os portugueses,
ainda persiste até aos nossos dias. Quando hoje se fala em ‘interior’,
pensa-se, como no século XVI, em região escassamente povoada e apenas atingida
pela cultura urbana. A obra das bandeiras paulistas não pode ser bem compreendida
em toda a sua extensão, se a não destacarmos um pouco do esforço português,
como um empreendimento que encontra em si mesmo sua explicação, embora ainda
não ouse desfazer-se de seus vínculos com a metrópole europeia, e que,
desafiando todas as leis e todos os perigos, vai dar ao Brasil sua atual
silhueta geográfica. Não é mero acaso o que faz com que o primeiro gesto de
autonomia ocorrido na colônia, a aclamação de Amador Bueno, se verificasse
justamente em São Paulo, terra de pouco contato com Portugal e de muita
mestiçagem com forasteiros e indígenas, onde ainda no século XVIII as crianças
iam aprender o português nos colégios como as de hoje aprendem o latim.”
E
continua Buarque de Holanda a desenvolver sua visão da peculiaridade
tipicamente paulista das bandeiras (p. 102):
“No
planalto de Piratininga nasce em verdade um momento novo de nossa história
nacional. Ali, pela primeira vez, a inércia difusa da população colonial
adquire forma própria e encontra voz articulada. A expansão dos pioneers paulistas não tinha suas raízes
do outro lado do oceano, poderia dispensar o estímulo da metrópole e fazia-se
frequentemente contra a vontade e contra os interesses imediatos desta. Mas
ainda esses audaciosos caçadores de índios, farejadores e exploradores de
riqueza, foram, antes do mais, puros aventureiros – só quando as circunstâncias
o forçavam é que se faziam colonos. Acabadas as expedições, quando não acabavam
mal, tornavam eles geralmente à sua vila e aos seus sítios da roça. E assim,
antes do descobrimento das minas, não realizaram obra colonizadora, salvo
esporadicamente.”
Buarque
de Holanda cita a monumental obra do etnólogo e historiador alemão Georg
Friederici, publicada em 1937, que se tornou fundamental para o conhecimento do
que foi a influência dos povos europeus sobre as culturas do Novo Mundo após
sua descoberta. Ele traça paralelos
entre os portugueses, espanhóis, franceses, ingleses e holandeses. Para
Friederici, os portugueses e espanhóis se caracterizaram pela sua extrema
violência física, cultural e étnica contra os povos vencidos (aqui ele inclui a
colonização ibérica do Oriente). Em certo momento (p. 132) Buarque de Holanda
transcreve Friederici, que confirma sua tese de que as bandeiras não foram um
fenômeno português. Buscando na fonte, encontramos na obra de Friederici mais
detalhes (Georg Friederici, Caráter da
Descoberta e Conquista da América pelos Europeus, Rio de Janeiro,
MEC-Instituto Nacional do Livro, 1967, p. 179):
“Os
verdadeiros descobridores e conquistadores do sertão do Brasil não foram
portugueses, mas brasileiros, sobretudo mestiços, mamelucos e, como aliados, os
aborígenes. O vasto interior do Brasil não foi conquistado e desbravado aos
europeus por filhos do Velho Mundo, mas por americanos. Graças ao sangue
indígena que lhes corria nas veias, estes americanos mostraram espírito
empreendedor, aliado ao espírito de aventura, foram homens de fibra e coragem,
com a audácia, a energia e a capacidade física própria do sertanejo, a tudo
resistindo e vencendo todos os obstáculos, arrastando todos consigo no ímpeto
de sua investida”.
E
continua Buarque de Holanda (p. 132):
“Não
penso em tudo com o etnólogo e historiador alemão onde parece diminuir por
sistema o significado da obra portuguesa nos descobrimentos e conquistas, contrastando-a
com a de outros povos. Acredito mesmo que, na capacidade para amoldar-se a
todos os meios, em prejuízo, muitas vezes, de suas próprias características
raciais e culturais, revelou o português melhores aptidões de colonizador do
que os demais povos, porventura mais inflexivelmente aferrados às
peculiaridades formadas no Velho Mundo. E não hesitaria mesmo em subscrever
pontos de vista como o recentemente sustentado pelo sr. Júlio de Mesquita
Filho, de que o movimento das bandeiras se enquadra, em substância, na obra
realizada pelos filhos de Portugal na África, na Ásia, e na América, desde os
tempos do infante d. Henrique e de Sagres. Mas eu o subscreveria com esta
reserva importante: a de que os portugueses precisaram anular-se durante longo
tempo para afinal vencerem. Como o grão de trigo dos Evangelhos, o qual há de
primeiramente morrer para poder crescer e dar muitos frutos. (Júlio de Mesquita
Filho, Ensaios sul-americanos. São Paulo, 1946, pp. 139 ss.).”
Sérgio Buarque de Holanda também
tece alguns comentários sobre o famoso (e detratado) bandeirante Domingos Jorge
Velho, que, por sua vez, era mameluco, filho de português com uma índia guaianás,
de São Paulo. Tentando elucidar questões acerca de suas origens étnicas e o
fato dos bandeirantes, inclusive ele, falarem a língua geral dos Tupis e não o
português, Buarque de Holanda escreve (obra citada, pp. 126-127):
“Mais importante, sem dúvida, para
elucidar-se o assunto é o caso de Domingos Jorge Velho, o vencedor dos Palmares
e desbravador do Piauí. Na ascendência do grande régulo parnaibano o elemento português
predomina francamente, embora, para acompanhar a regra, não isento de
mestiçagem com o gentio pois, se não falham os genealogistas, foi tetraneto,
por um lado, da filha de Piquerobi e, por outro, da tapuia anônima de Pedro
Afonso.”
“Não deixa, assim, de ser curioso
que, tendo de tratar com o bispo de Pernambuco no sítio dos Palmares, em 1697,
precisasse levar intérprete, ‘porque nem falar sabe’, diz o bispo. E ajunta: ‘nem
se diferença do mais bárbaro Tapuia mais que em dizer he Christão, e não
obstante o haver se casado de pouco lhe assistem sete Índias Concubinas, e
daqui se pode inferir como procede no mais’. [‘Carta do bispo de Pernambuco...’,
in Ernesto Ennes, As guerras dos Palmares, I (São Paulo), p. 353].”
“Um estorvo sério à plena aceitação
desse depoimento estaria no fato de se conhecerem, escritos e firmados de
próprio punho por Domingos Jorge, diversos documentos onde se denuncia certo
atilamento intelectual que as linhas citadas não permitem supor. Leiam-se, por
exemplo, no mesmo volume onde vêm reproduzidas as declarações do bispo de
Pernambuco, as palavras com que o famoso caudilho procura escusar e até exaltar
o comportamento dos sertanistas preadores de índios, em face das acres censuras
que tantas vezes lhes endereçam os padres da Companhia.”
“Primeiramente, observa, as tropas
de paulistas não são de gente matriculada nos livros de Sua Majestade, nem
obrigada por soldo ou pão de munição. Não vão a cativar, mas antes a reduzir ao
conhecimento da civil e urbana sociedade um gentio brabo e comedor de carne
humana. E depois, se esses índios ferozes são postos a servir nas lavras e
lavouras, não entra aqui nenhuma injustiça clamorosa ‘pois he para os
sustentarmos a eles e aos seus filhos, como a nós e aos nossos’, o que, bem
longe de significar cativeiro, constitui para aqueles infelizes inestimável
serviço, pois aprendem a arrotear a terra, a plantar, a colher, enfim a
trabalhar para o sustento próprio, coisa que, antes de amestrados pelos
brancos, não sabiam fazer.”
É esse, segundo seu critério, o
único meio racional de se fazer com que cheguem os índios a receber da luz de Deus
e dos mistérios da sagrada religião católica, o que baste para sua salvação
eterna, pois, observa, ‘em vão trabalha quem os quer fazer anjos antes de os
fazer homens’.
Esses relatos, e muitos outros mais,
entre eles o de que Domingos Jorge Velho fazia questão de que em sua bandeira
houvesse sempre um padre capelão, apontam para uma outra realidade muito
diferente daquela em que é pintado como um verdadeiro demônio. Todos os católicos
sob seu comando, inclusive os índios catequisados e batizados, que estivessem
para partir desta para uma melhor, recebiam os sacramentos da Igreja Católica e
a extrema unção. Nunca ele partia com sua bandeira sem a presença deste
capelão. Todos se confessavam antes da partida. Parece-nos que a demonização
dos bandeirantes serviu principalmente como uma vingança dos jesuítas pela
invasão de suas reduções no Guairá, no Itatim e no Tape. O Padre Montoya foi o
principal de seus detratores, na América e na Europa, para onde retornou e
depois voltou.
Mas havia também influências
religiosas que incentivavam a formação das bandeiras, pois interessava à Igreja
a conquista de terras para a catequização e conversão do gentio. Até o papado
se envolveu na questão e estimulava a entrada dos bandeirantes pelas imensidões
de nosso território desconhecido.
Tratado de Tordesilhas. |
Outro paulista, o grande Paulo
Prado, em seu clássico Província &
Nação - Paulística – Retrato do Brasil (Rio de Janeiro. Livraria José
Olympio Editora, 1972), nos traça um retrato muito fiel do que era São Paulo de
Piratininga ao tempo em que surgiram as primeiras bandeiras (pp. 36-37):
“Oliveira Martins, num dos lampejos
à Michelet da sua obra de historiador, mais romântica que científica – afirma
que “pelos fins do século XVI, a região de São Paulo apresentava os rudimentos
de uma nação, ao passo que a Bahia e as dependências do Norte eram uma fazenda
de Portugal na América”. Agrupamento isolado e longínquo, só ligado ao resto do
país pela origem primitiva da língua e religião e pela antiga e vaga fidelidade
ao rei, a reunião de Portugal e Espanha veio ainda mais favorecer e desenvolver
os instintos de vida própria e independente desses aventureiros que se fiavam “em las elevadíssimas rocas que hacen
inacessible sua pais a los soldados de fuera”, como informava um documento
jesuíta, e como já o experimentara nas Termópilas do alto da serra a milícia de
Salvador Correia. Essa independência e isolamento foram os traços
característicos do povo de São Paulo durante todo o desenrolar da História do Brasil.
Quando o país inteiro era apenas uma colônia vivendo no mesmo ritmo transmitido
da Metrópole, os Paulistas viviam a sua própria vida em que a iniciativa
particular desprezava as ordens e instruções de além-mar para só atender aos
seus interesses imediatos e à ânsia de liberdade e ambição de riquezas que os
atraíam para os desertos sem leis e sem peias. A história do que se nomeou a
“expansão geográfica do Brasil” não é, em sua quase totalidade, senão o
desenvolvimento fatal das qualidades étnicas do povo paulista. Caçador de
índios, despovoador ou povoador de sertões, pioneiro de ouro e pedras
preciosas, soldado pacificador de gentio inimigo – a Natureza e o acordo da sua
formação racial o criavam admiravelmente para suas sucessivas transformações. Além
da espontaneidade de ação a que se referiu Basílio de Magalhães, uma das mais
notáveis peculiaridades do movimento paulista para a conquista do sertão, foi,
sem dúvida, a uniformidade e a constância dessa impulsão, como que instintiva,
que os levou ao interior profundo do país.”
Como podemos observar, na realidade
os bandeirantes não foram os assassinos impiedosos como certos autores querem
nos demonstrar. Os bandeirantes são fruto de uma época, de uma cultura, da
expectativa da Coroa portuguesa, no enfrentamento com a Coroa espanhola, da
necessidade da primeira de expandir o território sob seu domínio assaz restrito
em função do acordo tipificado no Tratado de Tordesilhas. Em outras postagens
abordaremos os mitos existentes no Renascimento sobre a “Ilha Brasil”, os
tesouros do Eldorado, as riquezas da terra e muitas outras lendas que corriam
pela Europa. Eles precisam ser compreendidos dentro de seu contexto histórico.
Faziam parte de uma grande engrenagem política, econômica e social. Os bandeirantes sofriam pressões
da Coroa portuguesa, de outros reinos europeus interessados em que os
portugueses descobrissem riquezas em seu território do Novo Mundo para que
assim pudessem, de alguma forma, usufruir ou toma-las dos mesmos.
A respeito dos mitos do Eldorado que
tanto influenciaram os paulistas em sua busca desesperada pelas riquezas do
sertão, constatamos que não foram eles que criaram esses mitos. Essa é uma
longa história que remonta à Antiguidade e prosseguiu pela Idade Média, em particular na Península Ibérica.
Valemo-nos agora das palavras do grande historiador mineiro Augusto de Lima Júnior, que, em seu clássico A Capitania das Minas Gerais (Origens e Formação), 3ª. Edição. (Belo Horizonte, Edição do Instituto de História, Letras e Arte, 1965), aborda a questão desses mitos e lendas (pp. 19-21):
Valemo-nos agora das palavras do grande historiador mineiro Augusto de Lima Júnior, que, em seu clássico A Capitania das Minas Gerais (Origens e Formação), 3ª. Edição. (Belo Horizonte, Edição do Instituto de História, Letras e Arte, 1965), aborda a questão desses mitos e lendas (pp. 19-21):
“Desde
que desponta a civilização, nos longínquos horizontes da História, o ouro, a
prata e as pedras preciosas, aparecem incorporadas às necessidade humanas,
expressões da riqueza, reconhecias universalmente entre todos os homens,
símbolos das coisas nobres e fatores supremos da felicidade. Nos mais remotos
tempos bíblicos, nas nebulosas eras do raiar das gerações que povoaram o
Oriente e viveram os tempos precursores da Antiguidade Clássica, já os
encontramos em todas as suas aplicações, guardando, sempre, o primado da
fascinação sobre homens e mulheres. Não contente com o que obtinham, sonhavam,
ainda, os antigos, com certas regiões privilegiadas, onde o nobre metal seria
de estonteante profusão.”
“Como
batidas as terras onde andavam insatisfeitos, sonhassem com mais riquezas,
criava a fantasia desses povos, regiões misteriosas onde jaziam imensos
tesouros. Jasão fora à Cóquida, para se apoderar do Velocino de Ouro; os Jardins
das Hespérides tinham, em suas árvores, frutos de ouro, que Hércules teria colhido
num dos seus feitos heroicos.”
“Do
Oriente, foram as riquezas de Ofir e de Golconda levadas a Salomão e derramadas
pelo mundo egípcio e grego, enquanto as misteriosas Ilhas de Crisis e Argira
eram buscadas com ânsia, para delas serem arrancados, como de pedreiras, blocos
de ouro e prata.”
“Através
da evolução do mundo, o ouro, a prata e as pedrarias foram, cada vez mais,
tornando-se imprescindíveis ao homem, que delas usou em variados fins, desde o
adorno e culto ao escambo.”
“Enquanto
a Alquimia medieval se entregava à busca do ouro, pela transubstanciação,
entrevendo em seu empirismo elementar, a contemporânea realidade científica da
decomposição atômica, preparavam-se os espíritos ávidos de aventura, em ganhar
a remota Região do Cipango, onde Marco Polo pretendia ter encontrado casas
feitas de ouro puro. O El Dorado, como premonição de tudo quanto havia de
surgir após, começou a alucinar os homens. Segundo o que que corria de boca em
boca, de geração em geração, havia além dos mares, em direção desconhecida, um
país misterioso, no meio de florestas colossais, onde vivia um povo dispondo
das maiores riquezas da terra. Quando era eleito um novo rei, envolvia-se-lhe o
corpo em resina sobre a qual era deposta espessa camada de ouro em pó. Em
seguida, conduziam-no processionalmente até o meio de um lago, e aí ficava
mergulhado, até que todo o ouro se soltasse, ficando no fundo das águas. Era
uma oferta feita à Divindade e todos participavam dela, atirando ao lago nesse
período, jóias e barras de ouro em quantidades imensas. Sendo essa cerimônia
repetida milhares de vezes, desde tempos remotíssimos, afirmava a lenda, que
nesse desconhecido El Dorado, achavam-se amontadas as maiores riquezas do
mundo.”
“Em
1492, quando Cristovão Colombo aportou à ilha que denominou de Hispaníola, nas
Antilhas, viu com alegria, o ouro pendurando às orelhas e aos narizes dos
selvagens, como adorno banal. Desde então, todas as partes da América, de que
se foram apossando os espanhóis, do México ao litoral do Pacífico, forneceram riquezas,
cujas cifras reais estão muito além do que se conhece pelos cômputos escritos.”
“Os
portugueses, com a descoberta do Brasil em 1500, esperavam lhes coubesse
igualmente, uma parte de monta, no quinhão da opulência sul-americana. Não deu,
entretanto, o litoral brasileiro, mostras dos tesouros escondidos por detrás da
muralha de serrarias, nos recônditos sertões ignotos e bravios. Por muito tempo
haviam de se contentar, os portugueses, com o pau-brasil e o açúcar, fracos
atrativos que não chegaram a determinar um fluxo de gente e um cabedal de
riqueza, capazes de criarem uma civilização com forças de se desenvolver.
Restava-lhes o que poderiam arrancar à Índia, à custa, embora, de guerras
tremendas, com assinaladas perdas de vida.
...”
...“Ao
longo do litoral iam-se formando alguns núcleos de população, base do
desenvolvimento intenso, que acontecimentos ulteriores determinariam.
Mestiçando-se ao índio e ao negro, recebendo, com escassez, novos reforços de
sangue branco, morosamente se constituía uma civilização rudimentar, isoladas
umas das outras, essas populações, cuja única e dificílima intercomunicação se
fazia pelo mar. Não descuravam, porém, nem mesmo o Governo da Metrópole nem das
colônias, em pesquisar minerais. A relativa proximidade das possessões
espanholas, produzindo riquezas imensas, constituía estímulo já essa fé
constante, em persegui-las também em suas terras, o que sempre fizeram os
portugueses, malgrado os seguidos insucessos. Mas informações preciosas
autorizavam a crer que também o Brasil possuia as ambicionadas minas de metais
preciosos.”
“Desde
Pero Vaz de Caminha, escrivão da Armada de Pedro Álvares Cabral, sabia-se pelo
que registrara em sua famosa Carta, que os índios teriam dado a entender aos
recém-chegados à Terra de Santa Cruz, a existência de ouro e prata nas terras
interiores. Américo Vespúccio, em 1503, escrevendo a Sonderini, informava
existir no Brasil, larga abundância de ouro.”
O
grande historiador norte-americano, Richard Morse, pensador e estudioso da
cultura brasileira e latino-americana, escreveu uma obra fundamental,
intitulada Formação Histórica de São
Paulo - De Comunidade a Metrópole (São Paulo. Difusão Européia do Livro,
1970). Nela ele descreve como as cidades brasileiras do período colonial,
notadamente São Paulo de Piratininga, seguiram padrões arquitetônicos,
políticos e administrativos europeus da Idade Média. Os paulistas deram
continuidade também aos mitos que a Europa cultivava, desde remotas eras, sobre
os tesouros do El Dorado. Eles foram incentivados pelas Coroas portuguesa e
espanhola (notadamente durante o período da unificação destes dois reinos entre
1580 a 1640) para a conquista dessas riquezas a qualquer custo. É verdade que a
Coroa portuguesa, a partir do último quartel do século XVI, proibira o aprisionamento
e escravização do gentio, mas, na verdade, fazia vistas grossas para essa
atividade paulista, já que necessitava das riquezas que advinham da extração do
pau-brasil e da cana de açúcar, além da extração do ouro e outros minerais na
Capitania de São Vicente. Para tal, a mão-de-obra indígena era de capital
importância. Sem ela, o prejuízo seria incalculável. Os paulistas, portanto,
seguiam orientação, em off, das
autoridades portuguesas e espanholas (estas últimas não faziam qualquer objeção
quanto à escravização do silvícola, muito antes pelo contrário).
No que tange à questão da escravatura, não podemos imputar ao
escravagista a pecha única de bandido e opressor. Mais uma vez, temos que vê-la
dentro de seu contexto histórico, sócio-econômico e mercadológico. Ela surgiu
na medida em que as nações se formavam e as diferentes classes sociais se
organizavam de acordo com seu poder aquisitivo. Umas classes, mais poderosas,
passaram a dominar outras classes menos poderosas. Dentre os pensadores mais
importantes do Brasil, com uma visão marxista da história, buscamos importantes
considerações nos escritos de Nelson Werneck Sodré. Em sua obra também clássica
Formação Histórica do Brasil, 14ª. Edição
(Rio de Janeiro, Graphia Editorial, 2004), lemos às pp. 15-17:
“O regime escravista existiu em quase todos os povos e predominou em
Roma entre o século II antes da nossa era e o século II da nossa era. Começou
com a escravidão doméstica ou patriarcal, que ocupava poucos escravos. Motivou
a segunda divisão social do trabalho: a separação entre os ofícios e a
agricultura. Os traços mais característicos do regime escravista de produção
são os seguintes:
- começa como regime de economia natural, quando os produtos são
consumidos onde são produzidos;
- gera a troca, em seguida, quando aparece excedente na produção;
- assiste à evolução na troca, desde a troca em espécie à troca em
dinheiro, passando pela etapa intermediária da troca por uma mercadoria base;
-faz surgir a cidade, onde se processa o comércio e onde se instalam
os ofícios, num processo progressivo mas não total;
- faz surgir a oposição entre a cidade e o campo;
- a propriedade dos instrumentos de trabalho, surgida no processo de
deterioração da comunidade primitiva, estende-se à terra;
- com o desenvolvimento da produção, cresce o número de escravos, e
a sociedade se reparte em duas classes, a dos homens livres, grandes proprietários
e pequenos produtores, de um lado, e os escravos de outro;
- aparece o Estado;
- as relações de produção evoluem: a propriedade dos meios de
produção ampliada à terra estende-se ao escravo;
- os escravos trabalham em cooperação simples, são deslocados, não
têm família; obtidos pela guerra ou pela compra, motivam o surto do comércio de
escravos;
- o proprietário da terra e dos escravos apropria-se do trabalho
necessário destes, o trabalho que o escravo desenvolve para assegurar a própria
subsistência, e do sobretrabalho.”
Assim, o fenômeno da escravatura surgiu na Antiguidade, na medida em
que uma classe social tornava-se cada vez mais poderosa e possuidora de muitos
bens materiais. Para manter esse status,
essa classe tinha que recrutar entre os povos vencidos nas guerras a mão--de-obra
necessária para a realização das inúmeras tarefas necessárias à existência da
comunidade.
Continua Sodré:
“O escravo não vendia a sua força de trabalho ao escravista, era
vendido de uma só vez e para sempre, com a sua força de trabalho, tal como o
boi era vendido ao lavrador. As relações jurídicas deixavam claro esse traço, e
as Ordenações, em Portugal, situavam o escravo entre as bestas. Com o decorrer
do tempo, formou-se o latifúndio romano, pela expulsão dos pequenos produtores
e pela apropriação das terras públicas;
o camponês livre, pequeno produtor, não tinha condições para competir com o
latifúndio, que ocupava mão-de-obra numerosa, e acabou esmagado. Com o
crescimento demográfico, considerado o trabalho como indigno do homem livre, de
vez que o regime escravista motivara a oposição entre trabalho físico e
trabalho intelectual, grupos crescentes da população foram sendo
marginalizados. O sobreproduto destinado ao consumo parasitário e obtido pela
exploração do escravo à base da propriedade plena, pelos escravistas, sobre os meios
de produção e sobre os próprios escravos, correspondia à ruína de camponeses e
artesãos, à conquista de outros países e domínio de seus povos. A contradição
fundamental entre escravos e escravistas é agravada pela contradição entre
escravistas e pequenos produtores, camponeses e artesãos.”
“A escravidão tornou possível a divisão do trabalho em grande escala
entre a agricultura e a indústria, criando condições para o florescimento da
cultura do mundo antigo. No Brasil, possibilitou a grande empresa de produção
açucareira, a maior do século XVI. Sem a escravidão, não teria existido o
Estado grego, a arte e a ciência próprias do helenismo. Não teria existido o
Império Romano. E sem tais etapas históricas, não teria surgido a Europa
moderna, nas condições em que surgiu, e que motivaram o surto mercantil, as
grandes navegações e a descoberta da América. Sob o regime escravista, que dera
impulso às trocas, limitadas pelas condições que definiam a comunidade
primitiva, a produtividade do trabalho não tardou em revelar-se insuficiente. O
horror do escravo aos utensílios de trabalho, que só lhe permitia lidar com os
mais toscos, retardava as inovações técnicas, e a força motriz aproveitada era,
naquela fase, ou a força física do homem ou a dos animais.”
”Com o passar dos tempos, o regime escravista revelou, por diversos
traços, sintomas de deterioração que se tornaram evidentes progressivamente. A
escravidão aniquilava, na realidade, a força produtiva fundamental, que era o
próprio escravo, e o desinteresse deste pela produção impunha substituí-lo pelo
trabalhador que nela encontrasse algum estímulo. Por outro lado, a escravidão
arruinara os camponeses e artífices, que suportavam a carga militar e o ônus
dos impostos. Pouco a pouco, o latifúndio se fragmenta e os escravos são
substituídos por trabalhadores livres que pagam taxas ao senhor, vinculados à
terra mas não escravos. Das ruínas do regime escravista, assim, surge o
colonato, que engendra o feudalismo.”
Após tecer considerações sobre o que é o regime feudal, vigente em
grande parte da Europa durante a Idade Média, e sua posterior passagem para o
capitalismo, a partir do Renascimento e no período dos grandes Descobrimentos,
Sodré aborda a questão de que na Península Ibérica não houve de fato um regime
feudal. Em decorrência das contínuas e intensas lutas contra os mouros, que
arregimentava uma grande parcela da população masculina ativa, as trocas
comerciais passaram, muito precocemente, a ser feitas por uma classe de
comerciantes, com amplas ligações com seus confrades em outros países do
Mediterrâneo, da Inglaterra, França, do Báltico e do norte da Europa. Essa
classe foi tomando feições e poderes capitalistas, de grande poder econômico.
Foi graças a ela que Espanha e Portugal, mais este que aquele, desenvolveram
sua grande habilidade marítima e vieram a dominar o mundo comercial com a
conquista de ilhas no Mediterrâneo, no Atlântico (o mar Oceano), e cidades na
costa ocidental da África. Com o comércio das especiarias, trazidas do Oriente,
Portugal se transformou, por quase meio século, no país mais rico e capitalista
do planeta. Foram os portugueses que trouxeram do Oriente (leste da Índia,
Java, Ceilão) mudas de uma das especiarias, a cana de açúcar, que, dado o clima
sub-tropical, muito semelhante ao de onde vieram, se adaptaram muito bem e
floresceram em ilhas mediterrâneas e atlânticas portuguesas e, depois, nas
espanholas. A queda de Constantinopla, tomada pelos Turcos Otomanos, em 1453,
obrigou os navegantes portugueses a se aventurar pelas costas da África
Ocidental em busca de novas terras para o plantio da cana de açúcar. Nesta
época, voltou-se ao período de relações econômicas de exploração de uma classe
por outra, num retorno ao modelo da Antiguidade, que foi a escravatura. Sem a
força do trabalho do negro, aprisionado pelos seus próprios patrícios
continentais, em decorrência de disputas e guerras tribais, e vendido aos
mercadores portugueses, não teria sido possível a exploração das plantações de
cana de açúcar. Vendo sua riqueza aumentar, tendo descoberto uma nova rota marítima
para as Índias, com a grande epopeia da viagem de Vasco da Gama, Portugal,
então o mais capitalista dos países europeus, viu-se motivado para alçar novos
voos, ou, melhor dizendo, novas navegações marítimas. Numa delas, foi
descoberto o Brasil em 1500, na sequência da descoberta da América, por Cristóvão
Colombo, em 1492, expedição patrocinada pelos Reis Católicos da Espanha. Logo
se viu que as terras de Santa Cruz, ou terra dos Papagaios, depois Brasil, era
extremamente fértil para o plantio da cana de açúcar, em particular nas regiões
litorâneas do Nordeste brasileiro. A importação do escravo negro era por demais
dispendiosa para os colonos aqui chegados, geralmente composta por uma classe
de aventureiros empobrecidos em Portugal e que aqui vieram para enriquecer,
fazer fortuna, e voltar para sua pátria. Assim, sem outro recurso, o
aprisionamento do indígena foi a única saída para a sua libertação econômica. Inicialmente,
o silvícola trabalhava de bom grado com os portugueses na colheita do
pau-brasil, a primeira fonte de renda importante para Portugal na terra recém-descoberta.
Geralmente, foi uma relação de intercâmbio amistoso: os portugueses
presenteavam os índios com quinquilharias (pentes, apitos, espelhos, machados,
facões, panos, etc.), que, em troca, recebiam dos índios as toras cortadas do
pau-brasil, que eles mesmos se encarregavam de transportar até os navios,
ancorados nas costas brasileiras. Quando instado a trabalhar no cultivo, corte
e beneficiamento da cana de açúcar, o indígena se rebelou, já que não estava
habituado ao trabalho em um só local e sob condições pesadas e duríssimas, de
sol a sol. Em sua grande maioria, fugiu para o mato. Uns poucos aceitaram esse
infausto trabalho. O português, contrariando ordens da Coroa, sentiu-se
obrigado a fazer guerra ao índio para poder aprisiona-lo e utiliza-lo como
mão-de-obra escrava nos engenhos de açúcar. Isso foi facilitado pela amizade
que os lusos fizeram com diversas tribos tupiniquins do litoral, que estavam em
guerra com outras tribos, como os tupinambás. Estes, por sua vez, foram conquistados
por contrabandistas franceses que assolavam as costas brasileiras, para levar a
rica prenda do pau-brasil. Das guerras entre tribos inimigas, aumentou o
cabedal de índios aprisionados pelos tupiniquins, e entregues aos portugueses
como escravos. Assim começou nossa longa história de escravização, inicialmente
do indígena, depois pela importação do escravo negro africano. As bases para
tal fenômeno são encontradas dentro do processo das trocas econômicas entre
estados, comerciantes e classes sociais. Um recuo, sem dúvida, ao costume da
Antiguidade, mas perfeitamente explicável por razões sócio-econômicas.
Sobre a questão do apresamento do indígena, em particular na
capitania de São Vicente, Nelson Werneck Sodré tem sua visão causal baseada na
economia e no mercado, que agora novamente transcrevemos (pp. 129-130):
“A estreiteza do mercado local de mão-de-obra fez com que o
apresamento, em fase inicial, vegetasse na exploração dos estoques indígenas
próximos. A invasão holandesa na área açucareira, entretanto, alterou
profundamente aquela situação de equilíbrio relativo. O rompimento da associação
de interesses entre o capital comercial luso e o capital comercial holandês
obrigou os investidores batavos a procurar a recuperação pela violência. As
investidas de simples pilhagem não seriam satisfatórias. Impunha-se o
apossamento da área colonial produtora de açúcar. Esse apossamento ficaria
incompleto, entretanto, se não fosse conjugado com o das fontes africanas de
mão-de-obra. O domínio holandês, aqui, só se realiza quando encontra correspondência
no domínio da costa africana onde se abastecia o tráfico negreiro. Sem
assegurar o fluxo normal de mão-de-obra, não se poderia manter a empresa
produtora colonial.”
“A queda das fontes africanas de mão-de-obra escrava em poder dos
holandeses traz à Colônia, nas zonas livres da dominação batava, uma crise
muito grave. É essa carência no fornecimento externo que acarreta uma súbita
ampliação do mercado de mão-de-obra indígena. É o momento em que as lavouras
solicitam o índio, porque já não dispõem do africano, sob o risco de
perecimento. Elas próprias não têm condições de prover as suas necessidades de
mão-de-obra, entretanto. Surge a espontânea divisão do trabalho que faz do
paulista um preador, especializado nessa tarefa, que as circunstâncias tornaram
imperiosamente necessária, para atender a uma demanda ascensional.”
“A essa altura, entretanto, os estoques indígenas próximos já
estavam esgotados, não tinham condições para responder às necessidades novas do
mercado. A solução natural apresentava-se com a aproximação das reduções
jesuíticas, bordejando agora o Paranapanema. Na sua extraordinária expansão, as
doutrinas haviam conquistado um vastíssimo território e articulado nele uma
rede de aldeamentos indígenas. Ora, a defesa natural do índio estava na sua
infixação, na possibilidade de internar-se, de deslocar-se, face ao preador. Aldeado,
era indefeso. São os numerosos estoques das reduções o manancial oportuno e
adequado de que se servem os paulistas, tornados preadores.”
Aqui, Sodré nos apresenta sua versão econômica do fenômeno das
bandeiras, ao contrário de outros historiadores, como Jaime Cortesão, que as
coloca dentro de um objetivo geopolítico, de ampliação das fronteiras
territoriais nos domínios da Coroa portuguesa do Novo mundo. Senão, vejamos (pp.
130-131):
“Ruem, assim, diante das sucessivas bandeiras, as grandes empresas
produtoras que eram as reduções. Em um período muito curto, as províncias de
Itatim, Guairá e Tape sofrem uma sistemática destruição que risca de um
território futuramente português uma dominação estranha a Portugal. Supor que o
movimento de penetração bandeirante, na fase de apresamento, quando toda a área
sul-americana estava submetida ao domínio espanhol, obedecia a uma intenção
política não representa apenas um erro, reveste-se ainda de um sentido
anti-histórico evidente. Em toda a população paulista não haveria, na época,
uma só pessoa em condições de racionar assim, quanto mais de impulsionar os
homens válidos a uma empresa como a do bandeirismo de apresamento.”
“Esta fase de expansão territorial, por outro lado, não tem a
intenção povoadora, ou condições para revestir-se desse sentido. O bandeirismo
de apresamento foi um movimento de fluxo e refluxo, operado por um núcleo
humano reduzido, que não tinha o mínimo de condições para realiza-lo de outra
forma senão aquela que o caracterizou. Não havia nela nenhuma preocupação territorial.
O seu objeto era, pura e simplesmente, a mão-de-obra agrupada nas reduções – e não
o território.”
“Muito ao contrário, a empresa das reduções tinha como fundamento
necessário a ocupação territorial para, sobre esta, montar a estrutura de
produção, de caráter permanente pela sua própria finalidade, que a Companhia de
Jesus realizou com singular pertinácia e sem nenhum sentido nacional. Destruída
pela ação demolidora dos bandeirantes, só voltou a surgir, em área portuguesa
futura, com os Sete Povos de Missões, já nos fins do século XVII. O refluxo
jesuítico para a mesopotâmia Paraná-Uruguai e para o Paraguai deixou vazio o
território em que se haviam articulado as reduções. Nele não permaneceu, por
seu lado, o bandeirante, que o declínio da procura de mão-de-obra indígena, com
o restabelecimento do domínio luso sobre o Brasil como sobre as fontes
africanas de escravos, obrigou a abandonar a atividade de apresamento. Restabelecido
o tráfico negreiro tradicional para suprir as áreas agrícolas da Colônia não
cabia mais o apresamento, nas proporções que tomou quando os holandeses o
dominaram.”
Concluindo, Sodré faz um abreviado de como as bandeiras foram, do
ponto de vista econômico, definhando, mudando para a prospecção de minas e até
para o povoamento do território:
“Nem foi, pois, o insucesso de Mbororé que forçou os paulistas a
deixar o sul em abandono e a própria atividade preadora. A mineração viria apontar-lhes
novos rumos. Mas, nas planura sulinas, onde as reduções tinham as suas
estâncias, o gado encontrou um meio físico extremamente propício, e nele se
multiplicou, à lei da natureza. Foram estes os rebanhos que, nas ‘vacarias do
mar’ ou nas ‘vacarias dos pinheirais’, os paulistas encontraram, em época
posterior, servindo de base ao povoamento do Continente de São Pedro. Só a
mineração, entretanto, apresentaria as condições que impulsionariam os
paulistas novamente para o rumo do sul.”
Assim,
em nenhum dos três grandes pilares do pensamento histórico brasileiro, com
fundamentação marxista, ou socialista (Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda
e Nelson Werneck Sodré), encontramos referências de que o bandeirismo tenha
sido sinônimo de banditismo. Estamos, pois, muito bem alicerçados no que de
mais competente e cosmopolita encontramos no pensamento histórico nacional,
seja conservador ou de esquerda, o que nos deixa plenamente convictos de que
estamos na vertente certa da tentativa de mudar a conceituação do que foram os
bandeirantes. Vejamos agora outras correlações históricas, elaboradas por
autores diferentes, ligadas ao bandeirismo.
O
ilustre historiador mineiro, João Camillo de Oliveira Torres, membro da
Academia Mineira de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Minas
Gerais, em sua grande obra publicada em cinco volumes, História de Minas Gerais, Vol. I, 2ª. Edição (Belo Horizonte,
Difusão Pan-Americana do Livro, 1966), nos traça a teoria que esposa sobre o
bandeirismo, baseada numa continuidade das grandes aventuras e empreendimentos
marítimos lusitanos dos séculos XV e XVI. É uma teoria que tem muitos
defensores, bem como críticos. Entretanto, é uma hipótese apoiada em inúmeras
observações pertinentes, como Oliveira Torres nos revela (pp. 97-98):
“Quer
Alexandre Rodrigues Ferreira que a epopeia dos bandeirantes se filie à grande
empresa dos descobrimentos marítimos. Chega a entrever a presença de uma “política
de sigilo” e admite como que uma ”escola de Sagres” em Piratininga, passando Fernão
Dias, Bartolomeu Bueno e Raposo Tavares a serem continuadores de Bartolomeu
Dias, Vasco da Gama e Cabral... A sua argumentação é interessante; e, de fato,
vemos que os paulistas continuaram terra a dentro o trabalho de seus
antepassados mar a fora... (Ver O Mistério
do Ouro dos Martírios. São Paulo, 1960).”
“Um
fato é indiscutível: consolidada mais ou menos a Coroa na dinastia nacional, as
expedições se fizeram para explorar o interior do Brasil. Durante a união
ibérica descobriu-se um fato portentoso: o Brasil confinava com o Peru, o que
evidentemente significava a possibilidade, a quase certeza de haver ouro na
América portuguesa.”
“E
se expedições puderam sair de várias partes, a grande contribuição seria a dos
paulistas. Nos campos de Piratininga formara-se uma pequena fidalguia,
aguerrida e bem organizada, que se aperfeiçoaria na luta contra os bugres. Com
o ethos da fidalguia ibérica, vivia-se frugalmente, com o sentido da aventura e
da honra, o prazer do “esforço”, o desprezo pelo conforto. Segundo Valdecasas,
o estilo ibérico de fidalguia pressupunha uma certa aceitação da pobreza, a
conservação da honra sem considerações pelos fins econômicos. (Ver El Hidalgo y el honor. Madrid, 1958, pp.
63-64).”
“A
nobreza paulista reproduzia os grandes traços da fidalguia ibérica: alto
sentido da honra, espírito de fidelidade e lealdade ao rei, amor à aventura. E
as Bandeiras, embora visando à descoberta de minas de ouro, possuíam o seu lado
de aventura pelo gosto da aventura (São Paulo permaneceu pobre, apesar de haver
descoberto o ouro...), tinham como principal atrativo não tanto o
enriquecimento como a honra: cartas autografadas del-rei e promessas de hábito
de Cristo, eis o que os bandeirantes procuravam em primeiro lugar.”
“Mas
o território hoje mineiro não confinava unicamente com Piratininga e seus
terríveis preadores de índios – pelo norte espalhava-se nos sertões de S.
Francisco, onde, desde os primeiros tempos, poderosos senhores de terras
estabeleciam seus currais de gado. E ao longo do litoral, em terras hoje
baianas e capixabas, surgiam núcleos de povoamento que bem podiam ser o ponto
de partida para as descobertas das minas.”
“Daí
as duas séries de tentativas de descobertas das minas. As do norte,
infrutíferas, e as de S. Paulo, com êxito. Até hoje muito se discute a respeito
de itinerários, procedências, trajetos, etc. Há muitas dúvidas e indecisões,
não obstante os trabalhos exaustivos dos pesquisadores, antigos e modernos,
mandando a justiça que se mencione a monumental História Geral das Bandeiras Paulistas, de Afonso de Taunay, que
fez um levantamento quase completo do problema. Algumas das lacunas são
insanáveis, seja por efeito de uma “política dos sigilos”, seja pelo fato mais
banal e corriqueiro de não terem consciência os bandeirantes da importância de
seus feitos e com isto muitas expedições vão ficando no olvido.”
Para quem pinta as bandeiras com as cores do inferno, vamos recorrer a um antigo historiador paranaense (em verdade, foi jornalista, advogado, professor, historiador, político e escritor), José Francisco da Rocha Pombo (1857-1933), que publicou outra monumental obra intitulada História do Brasil, em cinco volumes, entre os anos de 1905 e 1917. Consultamos a Nova Edição Ilustrada, onde, no Vol. II, O Regime Colonial (Rio de Janeiro, W.M. Jackson, Inc., s/d, pp. 291-293), este grande historiador aborda a rotina diária de uma bandeira e como ela era constituída. Vamos ao que nos relata o grande Rocha Pombo:
"Urge que refaçamos, aos clarões vigorosos da verdade, as nossas tradições e a nossa vida. Às gerações de agora e às gerações porvindouras não podemos dar melhor ensinamento que o que ressalta do pugilo de bandeirantes intrépidos indomáveis nos seus estos de independência e galharda altivez, heroicos e generosos, hercúleos na sua pujante força de vontade, de energia inquebrantável e fecunda, mesmo quando violenta e sanguinosa, aos quais devemos a extensão das nossas lindes, a conquista e povoamento do coração do país, a revelação das nossas riquezas deslumbradoras e os pródromos do nosso self-government."
“É esse, segundo seu
critério, o único meio racional de se fazer com que cheguem os índios a receber
da luz de Deus e dos mistérios da sagrada religião católica, o que baste para
sua salvação eterna, pois, observa, ‘em vão trabalha quem os quer fazer anjos
antes de os fazer homens’.”
É do conhecimento de todos
os historiadores que, até finais do século XVII e início do século XVIII, no
Brasil a língua portuguesa era falada por poucos, geralmente pessoas da elite
intelectual, cultural e social. A língua falada pelo povo era a “língua geral”,
uma mistura de dialetos tupi-guarani, com português, mais dos primeiros do que
do segundo. Nos colégios de religiosos se ensinava o português, como no século
XX o latim era uma disciplina obrigatória nos cursos de segundo grau. Em outro
trecho de sua obra, Buarque de Holanda (pp. 124-125) nos revela esse fato:
“Um século depois de
Antônio Vieira, de Artur de Sá e Meneses, de Antônio Pais de Sande, condição
exatamente idêntica à que, segundo seus depoimentos, teria prevalecido no São
Paulo do último decênio seiscentista será observada por d. Félix de Azara em
Curuguati, no Paraguai. Ali também as mulheres falavam só o guarani e os homens
não se entendiam com elas em outra língua, posto que entre si usassem por vezes
do castelhano. Essa forma de bilinguismo desapareceria, entretanto, em outras
partes do Paraguai, onde todos, homens e mulheres, indiscriminadamente, só se
entendiam em guarani, e apenas os mais cultos sabiam o espanhol.”
“Deve-se notar, de
passagem, que ao mesmo Azara não escaparam as coincidências entre o que lhe
fora dado observar no Paraguai e o que se afirmava dos antigos paulistas. ‘Lo mismo’, escreve, ‘ha sucedido exatamente
em la imensa província de San Pablo, donde los portugueses, habiendo olvidado
su idioma, no hablam sino el guarani’.
Como se vê, essa imputação
de bárbaro, tanto como os silvícolas a quem combatia, ignorante e cruel, como o
bispo de Pernambuco tachava Domingos Jorge Velho, não correspondia a nada mais
nada menos que uma deslavada mentira, que visava apenas manter-se solidário com
seus confrades jesuítas, possuidores de ódio mortal pelos audazes bandeirantes.
Esses relatos, e muitos
outros mais, entre eles o de que Domingos Jorge Velho fazia questão de que em
sua bandeira houvesse sempre um padre capelão, apontam para uma outra realidade
muito diferente daquela em que é pintado como um verdadeiro demônio. Todos os
católicos sob seu comando, inclusive os índios catequisados e batizados, que
estivessem para partir desta para uma melhor, recebiam os sacramentos da Igreja
Católica e a extrema unção. Nunca ele partia com sua bandeira sem a presença
deste capelão. Todos se confessavam antes da partida. Parece-nos que a
demonização dos bandeirantes serviu principalmente como uma vingança dos
jesuítas pela invasão de suas reduções no Guairá, no Itatim e no Tape. O Padre
Montoya foi o principal de seus detratores, na América e na Europa, para onde
retornou e depois voltou, como abordamos anteriormente.
A propósito da
continuidade das grandes conquistas ibéricas do Novo Mundo e do bandeirismo,
encontramos também importantes referências que defendem esse ponto de vista no
excelente livro que o cientista político e intelectual brasileiro Francisco
Weffort, publicou em 2012 (Espada, Cobiça
e Fé – As origens do Brasil; Rio de Janeiro, Editora Civilização
Brasileira). O livro, que revela todo seu brilho intelectual, a clareza da sua escrita,
sem gongorismos e sua maneira objetiva de colocar as questões, cativa desde a
primeira página. Weffort (pp. 18-19) nos chama a atenção para o fato de que na
história da Europa os eventos mais aproximados à conquista ibérica do Novo
Mundo foram as lutas da Reconquista da Península Ibérica, cuja descrição
histórica já foram exaustivamente, expostas por nós, inclusive com inúmeras
ilustrações, no nosso blog http://familiasefaradidi.blogspot.com.br/
Recordando, as lutas da
Reconquista se iniciaram no século VIII e terminaram no fim do século XV,
precisamente em 1492, com a conquista de Granada pelos Reis Católicos, Fernando
e Isabel. Essa é uma data ao mesmo tempo gloriosa e sinistra. Nesse ano,
patrocinado pela Coroa espanhola, Cristóvão Colombo descobriu o Novo Mundo, um
dos acontecimentos mais marcantes de toda a História Universal. Mas, foi também
o infausto ano da expulsão dos judeus da Espanha, após séculos de perseguições,
pogroms e mini-holocaustos. A partir dessa data, ocorreu nas Américas uma
repetição da longa guerra de libertação das terras ibéricas aos mouros, que ali
haviam chegado, em uma conquista fulminante, em 708. Essas lutas da Reconquista
deram origem aos dois reinos nacionais ibéricos independentes, Portugal e
Espanha. A conquista do Novo Mundo reacendeu entre os povos ibéricos os velhos
mitos, que, entre outras coisas, deram origem ao Brasil e aos demais países
ibero-americanos.
Os vestígios dessa época,
segundo Weffort, podem ser observados entre nós nas festas populares urbanas da
sociedade brasileira. Principalmente nas festividades do interior, entre elas
as cavalhadas, tão conhecidas no Sul, Sudeste e Centro-Oeste brasileiros. Nelas
ainda vemos as lutas entre “mouros” e “cristãos”, numa eternização simbólica do
que ocorrera séculos antes. Também a festa do círio de Nazaré, em Belém do
Pará, em homenagem a Nossa Senhora de Nazaré, que reúne milhões de pessoas,
relembram lendas religiosas de Portugal, ainda do século XIII. Assim,
verificamos que por sob a superfície de nossa vida cultural cotidiana,
sobrevivem mitos e lendas da Ibéria tradicional.
Transcrevo aqui um trecho da
obra de Weffort que, pelo seu brilho, merece ser lido na sua íntegra (pp.
19-20):
“Falar desses tempos exige
algo mais do que reconhecer os ecos de uma ‘leyenda
negra’, de sinistra memória. Os descobrimentos dos séculos XV e XVI são
parte de uma época ‘iluminada pelo fogo’ que deu aos hispânicos – incluindo
nessa designação lusos e espanhóis – motivos de glória que ecoaram em toda a
Europa, suscitando um fascínio pelo menos tão grande quanto o horror das
brutalidades que praticaram. Sabemos que desde fins do século XVIII, Espanha e
Portual apareceram na Europa como países condenados ao atraso. Mas não
deveríamos esquecer que nos séculos XV e XVI os ‘países católicos’ tomaram a
dianteira da expansão da Europa para o mundo. E que algo do brilho e do fulgor
dos tempos dos descobrimentos durou até meados do XVII.”
“A devoção religiosa e a
audácia renascentista – que na Península Ibérica encontraram formas próprias –
impulsionaram príncipes, navegantes e conquistadores a sair à conquista de
outros povos e de outras terras para fortalecer a ampliar a soberania das suas
monarquias para além dos limites do Mediterrâneo. Nas ilhas e nos continentes
recém-descobertos, os conquistadores de terra e de ouro foram acompanhados
pelos conquistadores de almas. Primeiro, os dominicanos e os franciscanos;
depois, os jesuítas, estes no Brasil mais do que nos outros países
ibero-americanos. Reis e príncipes alinhavam seus povos no cenário dos
conflitos religiosos da Europa e, ao mesmo tempo, capitães, governadores e
‘adelantados’ lembravam na América recém-descoberta o poder das coroas
distantes.”
“Em meio às suas
aventuras, os sertanistas portugueses, bem como os ‘encomenderos’ espanhóis –
quase todos eles em colaboração com os governadores e as autoridades coloniais
designados diretamente pelas coroas – tiveram também algum tempo para iniciar a
construção de novas sociedades. É certo que, de início, essa construção não foi
desejada e, quando passou a ocorrer, seguiu desígnios mal conhecidos pelos
protagonistas. Mas de qualquer modo novas sociedades surgiram como frutos
inesperados de suas aventuras. E se tornaram no correr do tempo em permanente
exemplo da grandeza e da violência da época em que nasceram.”
“O historiador Capistrano
de Abreu disse que ‘os paulistas’ transportaram para o seio das florestas as
epopeias que os portugueses tinham cinzelado nos seios dos mares’. Na verdade,
esta referência de Capistrano aos ‘paulistas’ vale para os sertanistas
brasileiros em geral, os quais Basílio de Magalhães e outros pesquisadores
distinguiram em diversas regiões do país. Quando se olha o panorama geral da
América, talvez se possa dizer o mesmo da maioria dos conquistadores ibéricos.
Um historiador português estimou em cerca de 40 mil os portugueses que
construíram o império luso que alcançava América, África e África. Seria
impossível entender como um país tão pequeno conseguiu conquistar um império
tão vasto, não fosse a mentalidade conquistadora, cujos exemplos mais típicos
são os dos condottieri da última
Idade Média.”
“Alimentada pela
violência e pela fé, a conquista foi um fenômeno geral das Américas,
estabelecendo um padrão histórico que se prolongou além do século XVII. E não
se limitou aos territórios destinados aos ‘países católicos’ pelos papas. Foi
também um fenômeno de regiões mais distantes, como o Canadá, sob a influência
conquistadora de ingleses e franceses. Ainda mais distante, ocorreu também na
Rússia, que, a ferro e fogo, crescia para a Sibéria, sob o domínio de Ivan, o
Terrível. Com as qualificações necessárias, servem também de exemplo os Estados
Unidos, já no século XVIII, nos momentos iniciais do capitalismo industrial,
bem como no rush do ouro e na ‘marcha
para o oeste’ do século XIV. Ainda no século XIX, ocorreu na Argentina, na
‘conquista do deserto’. Poderiam ser muitos os exemplos de regiões formadas
pela conquista, entre as quais o Brasil é apenas um caso a mais, embora com
suas peculiaridades e diferenças.”
Para quem pinta as bandeiras com as cores do inferno, vamos recorrer a um antigo historiador paranaense (em verdade, foi jornalista, advogado, professor, historiador, político e escritor), José Francisco da Rocha Pombo (1857-1933), que publicou outra monumental obra intitulada História do Brasil, em cinco volumes, entre os anos de 1905 e 1917. Consultamos a Nova Edição Ilustrada, onde, no Vol. II, O Regime Colonial (Rio de Janeiro, W.M. Jackson, Inc., s/d, pp. 291-293), este grande historiador aborda a rotina diária de uma bandeira e como ela era constituída. Vamos ao que nos relata o grande Rocha Pombo:
“Na
véspera da partida, a expedição toda ouvia missa solene, e despedia-se da gente
da vila, como se fosse para uma guerra de que nem todos terão a fortuna de
voltar. De semelhantes cerimônias do culto nunca se prescindia, como se, no
meio dos tumultos e desvairamentos, a consciência daqueles homens reclamasse
alguma coisa. O capelão, na bandeira,
era uma figura obrigada: sem ele talvez não se pudessem organizar aquelas
grandes companhias, de cujos membros se exigem antes de tudo coragem e um
desprendimento de criaturas que põem toda a sua confiança em outra vida... Só a
ideia de que lá no fundo do sertão se pudesse morrer sem assistência e socorro
espiritual seria bastante para arredar do cometimento, ainda o mais seguro,
mesmo os mais fortes. Além disso o capelão ia como se fosse o diretor moral daquele
trôço de homens, em cuja alma nutria sempre algum sentimento, alguma emoção
superior que ao menos de instante a instante lhes disfarçasse o horror, a
amargura das vicissitudes: todas as manhãs, antes de levantar o acampamento, a
gente, em contrição, ouvia missa. Tão estranho é isso – esta associação do
culto religioso à faina heroica – que nos sugere a suspeita, a certeza mesmo,
ao enfrentar com tais expedições, de que aqueles homens têm mesmo uma idéia
muito nítida da sua função, e que procuram conciliá-la com a misericórdia
divina. Dir-se-ia assim que o esforço daqueles heróis assume proporções de um
sacrifício feito pelo homem a alguma potestade suprema que preside ao curso dos
acontecimentos humanos.”
“Antes de sair para o sertão, o
chefe bandeirante confessa-se e faz
testamento, no qual declara sempre que “indo caminho da guerra e sendo mortal,
e não sabendo o que Deus Nosso Senhor de mim fará”... por isso põe a sua vida
em dia. No sertão, em véspera de algum grande assalto, ou diante de algum
perigo, confessa-se e comunga; e supre o testamento, se o não tinha feito, por
uma declaração da última vontade perante oficiais da bandeira.”
“Ao preparar-se para a viagem, põe o
bandeirante todos os seus negócios em
ordem, assegura, como é possível, a situação da família, e provê a tudo mais
que lhe interesse, pois não sabe que tempo gastará na jornada, nem mesmo se há
de voltar salvo e são ao seio dos seus. Muitos levaram tanto tempo sem dar
notícias de si que se julgou terem falecido, e que – diz Montoya – ao volverem
ao cabo de anos aos lares, encontraram já as mulheres casadas com outros. Por
sua parte, ao recolher de expedições esquecidas, traziam muitos heróis lá do
sertão filhos que não tinham levado...”
“As grandes expedições que se
fizeram, de meados (ou pouco antes) do século XVII, até quase meados do
seguinte, ficavam muitos meses, e até longos anos no sertão. Em certas
conjunturas, a bandeira estacionava
em algumas paragens, para invernar, ou à espera da monção propícia, da cessação
de enchentes, de temporais que impossibilitavam a marcha. Em muitos casos
também a carência de mantimentos obrigava a longas estações, durante as quais a
gente se ocupava em fazer lavouras e reunir provisões. Por fim, a contingência
em que se viam frequentemente levou os bandeirantes
a tomar precauções regulares contra embaraços a que se viam expostos –
expedindo, antes do grosso da bandeira, guardas avançadas, que fossem plantando
roças pelo caminho: costume que se fixou na fase da mineração.”
“O dia da partida de uma bandeira recorda a cerimônia com que
outrora, dos portos lá da península, zarpava para o oceano desconhecido uma expedição
marítima: toda a vila, os bairros, e sítios da redondeza se comovem e abalam, à
vista daquele novo e estranho heroísmo que em muitos casos era inconcebível
temeridade; pois muitas vezes, principalmente de certa época por diante, bem se
sabia que os aventureiros tinham de encontrar-se, não só com selvagens, mas
também com espanhóis. Dava-se por isso, para disfarçar os pressentimentos e os
cuidados que enchem as almas, uns ares de festa àquela solenidade da partida.”
“Mal se pode hoje fazer uma ideia de
como semelhantes expedições encontraram no ânimo dos paulistas. Há de ser muito
raro, entre os homens mais consideráveis da colônia naqueles tempos, algum que
não tivesse feito uma destas aparatosas excursões, de que menos se aproveitavam
talvez do que se desvaneciam as famílias mais distintas. Muitos houve que
tiveram tempo de realizar grande número de tais expedições, não sendo a idade,
mesmo avançada, obstáculo a empreendimentos de semelhante natureza, em que
parece que só a mocidade era capaz de arrostar os trabalhos e perigos que
tinham de ser vencidos. Manuel de Campos Bicudo chegou a fazer vinte e quatro
viagens aos sertões do Paraná e Paraguai. E como este muitos outros. Não raro,
ficavam os aventureiros estabelecidos no sertão, por lá fundando arraiais, que
depois se fizeram as primeiras vilas de Minas, de Goiás, de Mato Grosso e de
outras capitanias. Houve momentos em que o alvoroço de ir para o sertão se
tornou uma verdadeira mania, uma forma de loucura geral, a que não escapavam
nem aqueles cuja vida ou cuja índole poderia parecer menos conciliável com os
excessos daquela boêmia depredadora. Um desses momento é o que se compreende
entre fins do século XVII (1680) e meados do século seguinte. Durante este
período sucedem-se nos sertões as bandeiras mais fortes e temerosas; e não
houve uma só família de nota em São Paulo que não contasse ao menos uma dessas
grandes provas, que passaram logo a ser, não só de coragem heroica, mas de amor
à pátria.”
É inegável que alguns autores glorificaram, talvez em demasia, os feitos bandeirantes. Basílio de Magalhães foi um desses autores. Apesar de algumas de suas teses terem sido, posteriormente, contestadas por outros historiadores, ele nos legou descrições que não fogem ao que a maioria de seus pares também nos escreveram. Assim é, que, em sua obra Expansão Geográfica do Brasil Colonial. Quarta Edição (Rio de Janeiro, Companhia Editora Nacional - MEC, em convênio com o Instituto Nacional do Livro, 1978, pp. 279), Basílio de Magalhães assim se refere aos intrépidos paulistas:"Urge que refaçamos, aos clarões vigorosos da verdade, as nossas tradições e a nossa vida. Às gerações de agora e às gerações porvindouras não podemos dar melhor ensinamento que o que ressalta do pugilo de bandeirantes intrépidos indomáveis nos seus estos de independência e galharda altivez, heroicos e generosos, hercúleos na sua pujante força de vontade, de energia inquebrantável e fecunda, mesmo quando violenta e sanguinosa, aos quais devemos a extensão das nossas lindes, a conquista e povoamento do coração do país, a revelação das nossas riquezas deslumbradoras e os pródromos do nosso self-government."
O novo Eldorado. Acervo da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. |
A defesa dos bandeirantes tem sido, atualmente, cada vez mais encontrada em livros, textos, teses e documentários, quando já dispomos de muito mais material de pesquisas e conhecemos muito mais documentos do que há algumas décadas. Um desses pesquisadores foi o grande historiador português Jaime Cortesão. Um homem insuspeito já que, possuidor de uma cultura enciclopédica, médico, político, escritor e historiador, foi um dos mais importantes intelectuais portugueses do século XX. Vindo de uma família de historiadores e filólogos, logo se destacou em suas atividades. Formou-se em medicina pela Universidade de Coimbra em 1909. Lecionou no Porto entre 1911 e 1915, quando foi eleito deputado por aquela cidade. Fundou e colaborou na fundação de algumas revistas literárias em Portugal. Em 1919 já era diretor da Biblioteca Nacional de Portugal, quando também foi feito oficial da Ordem Militar de Santiago da Espada (já falamos sobre ela quando descrevemos a vida de D. Paio Pires Corrêa em nosso post Um Herói da Ibéria).
Na década de 1920 participou da tentativa de derrubada da ditadura portuguesa de direita. Foi demitido de seu cargo e solicitou asilo político à França onde permaneceu até 1940. Neste ano, as tropas nazistas invadiram o país e, mais uma vez, teve de se exilar, desta vez no Brasil. Aqui residiu, inicialmente no Rio de Janeiro, onde se dedicou ao ensino universitário, especialmente sobre a história dos Descobrimentos Portugueses. Logo publicou um livro sobre este tema. Em 1952, foi um dos organizadores da Exposição Histórica de São Paulo, por ocasião do quarto centenário da cidade. Em 1944, coordenou um longo curso, promovido pelo Itamarati, sobre a expansão do território brasileiro durante o período colonial, o sertanismo e o bandeirismo. Suas conferências tornaram-se célebres, granjeando-lhe grande fama entre nossos estudiosos. Daí resultou seu livro, escrito em 1958, Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil, publicado pela Editora do Ministério da Educação e Cultura, um clássico no tema. Ao voltar para Portugal, em 1958, engajou-se na campanha oposicionista de Humberto Delgado, quando ficou preso por alguns dias. No mesmo ano foi eleito presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores. Faleceu em 1960. Postumamente, recebeu os títulos de Grande-Oficial da Ordem da Liberdade e a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique.
Entre suas teses se encontra a que concerne aos mitos da “Ilha Brasil”, com suas riquezas, o paraíso do Eldorado, uma análise detalhada das cartas portuguesas do período, e um estudo aprofundado da cartografia de antes da descoberta do Novo Mundo e dos três séculos que se seguiram. Ele demonstra como os portugueses estavam convictos, em princípios do século XVI, de que seu novo território recém-descoberto, era uma ilha, formada pela união dos rios da Prata e Amazonas bem no interior daquilo que ainda não se sabia ser um continente. Cortesão cita nosso primeiro historiador, Magalhães Gândavo, em seu História da Província de Santa Cruz, que afirmava nascer o rio São Francisco em um grande lago bem no centro do território, o mesmo lago que dava origem aos dois outros grandes rios acima citados. Um trecho de Gândavo, em seu capítulo II, é muito importante quando aborda as origens do rio São Francisco: “procede dum lago mui grande que está no íntimo da terra, onde afirmam que há muitas povoações, cujos moradores, segundo fama, possuem grandes haveres de ouro e pedraria”, e acrescentava que o Paraguai procedia do mesmo lago.
Jaime Cortesão (1884-1960). |
Na década de 1920 participou da tentativa de derrubada da ditadura portuguesa de direita. Foi demitido de seu cargo e solicitou asilo político à França onde permaneceu até 1940. Neste ano, as tropas nazistas invadiram o país e, mais uma vez, teve de se exilar, desta vez no Brasil. Aqui residiu, inicialmente no Rio de Janeiro, onde se dedicou ao ensino universitário, especialmente sobre a história dos Descobrimentos Portugueses. Logo publicou um livro sobre este tema. Em 1952, foi um dos organizadores da Exposição Histórica de São Paulo, por ocasião do quarto centenário da cidade. Em 1944, coordenou um longo curso, promovido pelo Itamarati, sobre a expansão do território brasileiro durante o período colonial, o sertanismo e o bandeirismo. Suas conferências tornaram-se célebres, granjeando-lhe grande fama entre nossos estudiosos. Daí resultou seu livro, escrito em 1958, Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil, publicado pela Editora do Ministério da Educação e Cultura, um clássico no tema. Ao voltar para Portugal, em 1958, engajou-se na campanha oposicionista de Humberto Delgado, quando ficou preso por alguns dias. No mesmo ano foi eleito presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores. Faleceu em 1960. Postumamente, recebeu os títulos de Grande-Oficial da Ordem da Liberdade e a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique.
Entre suas teses se encontra a que concerne aos mitos da “Ilha Brasil”, com suas riquezas, o paraíso do Eldorado, uma análise detalhada das cartas portuguesas do período, e um estudo aprofundado da cartografia de antes da descoberta do Novo Mundo e dos três séculos que se seguiram. Ele demonstra como os portugueses estavam convictos, em princípios do século XVI, de que seu novo território recém-descoberto, era uma ilha, formada pela união dos rios da Prata e Amazonas bem no interior daquilo que ainda não se sabia ser um continente. Cortesão cita nosso primeiro historiador, Magalhães Gândavo, em seu História da Província de Santa Cruz, que afirmava nascer o rio São Francisco em um grande lago bem no centro do território, o mesmo lago que dava origem aos dois outros grandes rios acima citados. Um trecho de Gândavo, em seu capítulo II, é muito importante quando aborda as origens do rio São Francisco: “procede dum lago mui grande que está no íntimo da terra, onde afirmam que há muitas povoações, cujos moradores, segundo fama, possuem grandes haveres de ouro e pedraria”, e acrescentava que o Paraguai procedia do mesmo lago.
João José de Santa Teresa (1698). Roma. Istoria delle guerre del regno del Brasile - accadute tra la corona di Portogallo, e la Republica di Olanda. O mito da "Ilha-Brasil" visto na cartografia do século XVII. Os rios da Prata, Amazonas e São Francisco nascem numa mesma imensa lagoa nos confins do hinterland brasileiro (o lendário lago de Xarayes, correspondente ao atual Pantanal matogrossense). Acervo da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. |
Cortesão,
em sua obra, cita o capítulo XIV do mesmo livro de Gândavo,
quando nos esclarece sobre as origens dessas notícias (pp. 39-40):
“E a maneira como isto se veio a denunciar e a
ter por cousa averiguada foi por via dos
índios da terra (...) E sabe-se
decerto que está toda esta riqueza nas terras da Conquista de El-Rei de Portugal
(...). Além da certeza que por esta via temos, há outros índios da terra que
também afirma haver no sertão muito ouro (...) Principalmente é pública fama entre eles que há uma lagoa mui grande no
interior da terra donde procede o rio São Francisco (...), dentro da qual
dizem haver algumas ilhas e nelas edificadas muitas povoações e outras ao redor
delas mui grandes, onde também há muito ouro, e mais quantidade, segundo se
afirma, que em nenhuma parte desta província”.
Frederik de Wit. Nova totius Americae descriptis. 1660. O mito da "Ilha-Brasil". Acervo da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. |
Acrescenta
ainda Cortesão:
“Falta
na descrição de Gândavo, para completar a Ilha-Brasil dos mapas, a ligação
entre a Lagoa e o Amazonas. É Gabriel Soares de Sousa, que, cerca de 1584,
também na base de informações indígenas, estabelece implicitamente a ligação,
situando as amazonas cerca do São Francisco: “e, além delas (certas castas de
índios) vive outro gentio, não tratando dos que comunicam com os portugueses,
que se ataviam com jóias de ouro, de que há certas informações. Este gentio se
afirma viver à vista da Lagoa Grande, tão afamada e desejada de descobrir, da
qual este rio nasce(....)” (Ver Tratado
Descritivo do Brasil, ed. Brasiliana, São Paulo, 1938, pp. 370-413). Do
mesmo texto se infere não só que as informações eram de origem indígena, mas –
observe-se – que o autor as tinha por certas”.
Henry Abraham Chatelain (1684-1743). Nouvelle carte de geographie de la partie meridionale de l'Amerique suivant le plus nouvelles observationes avec des tables et des remarques pour l'intelligence de l'histoire et de la geographie. 1732. Acervo da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. |
Cortesão
encontrou em outros autores informações muito semelhantes a esta, como
transcrevemos a seguir:
“Cerca
de trinta anos volvidos, Ambrósio Fernandes Brandão dizia nos Diálogos das Grandezas do Brasil: “Os
naturais da terra (isto é), os índios do Amazonas) querem o (seu princípio)
tenha de uma alagoa, que dizem estar no meio do sertão, donde afirmam nascerem
os mais rios reais e caudalosos, que sabemos por toda esta costa do Brasil (Diálogos
das Grandezas do Brasil, II ed. com notas de Rodolfo Garcia e Introdução de
Jaime Cortesão, p. 50)”.
Gerhard Mercator (1512-1594) America Meridionalis, 1606. Outra visão da "Ilha-Brasil". Acervo da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. |
E
continua o grande historiador português a nos relatar outras informações
encontradas em outras obras:
“Em
1624, Simão Estácio da Silveira, em sua “Relação
Sumária das coisas do Maranhão”, repete os informes de Gândavo, mas situa
naquele Estado o lago Dourado.
Em
1625, o jesuíta Pe. Antônio de Araújo supunha também que a demarcação do Brasil
“está fechada com dois limites como com duas chaves, uma das quais é o nomeado
rio da Prata (...) a segunda é o afamado Pará (...)”. E referia-se ainda à
“famosa lagoa chamada Paraupaba” (donde nascem vários e famosos rios), entre os
quais o Pará e o São Francisco.
“No
Livro I das Notícias antecedentes,
curiosas e necessárias das Cousas do Brasil, com que abre a sua “Crônica da
Companhia de Jesus no Estado do Brasil (1661), não há, por assim dizer, rio por
ele descrito, cujo prévio conhecimento nas origens, curso e demais
particularidades, não atribua aos índios. Vai mais longe: e insinua, com as
obscuridades do seu estilo gongórico, que os cartógrafos portugueses também
aprenderam com os índios. Falando no curso do Paraguai afirmava ele: “Não são
menores as riquezas de ouro, prata e pedraria, que vem descobrindo suas águas
por todos os seus sertões. Aqueles índios
moradores da beira-mar, as significavam a nossos Cosmógrafos por seus modos
toscos”. E mais adiante volta a dizer: “E finalmente que eram infinitas as
nações que habitavam as margens deste rio, à maneira do Grão-Pará. Tudo isto referiam aqueles índios aos nossos
cosmógrafos; e tudo o tempo, descobridor das coisas, tem mostrado claro”.
Lizars, W. H. (William Home), 1788-1859 18__ Lower Peru, Brazil e Paraguay. Cartografia do hinterland brasileiro. Acervo da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. |
Vemos,
assim, que logo após o descobrimento o Brasil era motivo de especulações as
mais diversas quanto ao potencial de suas riquezas, o que daria definitivamente
à Coroa portuguesa todos os recursos dos quais precisava para enfrentar a
concorrência quase impossível da Coroa espanhola e igualar-se a ela, se não
supera-la, numa disputa que se prolongaria por três séculos. Foram se
desenvolvendo os mitos e fábulas e isso contaminou a todos os colonos que aqui
viviam. Tais lendas eram estimuladas entre a população pela própria Coroa
portuguesa que desejava ardentemente a colaboração de todos, com vistas ao
imenso tesouro escondido.
M. Moleiro Editor. El Dorado. |
Os
índios foram dos primeiros tesouros a serem encontrados, além do pau brasil e,
em seguida, o cultivo da cana de açúcar. Os portugueses fizeram amizade com
grandes tribos tupis do litoral. Com elas, trocavam presentes, recebendo como
pago o trabalho de cortar a madeira e transporta-la para os navios e ainda
contar com seu trabalho para a construção e sobrevivência dos primeiros
povoados na terra dos papagaios. Aí se incluía o cultivo, pelos índios, de
plantações para a alimentação dos portugueses e mamelucos aqui residentes.
Lopo Homem-Reinéis - Terra Brasilis (1519). Compõe o Atlas Miller. Ricas iluminuras que revelam a colaboração entre os indígenas e portugueses no corte do pau-brasil e seu preparo para o transporte para os navios. Acervo da Biblioteca Nacional de França. |
Giácomo Gastaldi (1500-1566). Detail of Map of Brasil (1550). Outra representação (iluminura) cartográfica mostrando a cooperação entre brancos e índios no corte e embarque do pau-brasil. Gastaldi nasceu em Villafranca, Piemonte, e faleceu em Veneza. Acervo do Instituto Cultural Banco Santos. O Tesouro dos Mapas. A cartografia na formação cultural do Brasil. São Paulo, 2002. |
Por outro lado, todas as tribos tinham seus inimigos entre outras tribos, em particular os da nação tapuia, que incluíam tamoios, tupinambás, aimorés, caiapós e muitas outras mais. Os índios tinham por hábito canibalizar os inimigos vencidos e aprisionados nos combates. Era sua cultura e eles acreditavam, assim, receber do inimigo abatido toda a sua força, coragem e resistência, num ritual mágico-religioso.
Theodore de Bry. Canibalismo entre os Tupinambás. As três gravuras acima são ilustrações baseadas nas figuras do livro de Hans Staden após sua passagem pelo Brasil. 1550. |
Pieter Van der Aa, (1659-1733). 1729. Le Bresil. Acervo da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. |
Isso
horrorizava os portugueses cristãos-velhos e também os cristãos-novos, pois os
havia em grande quantidade no novo território português. Calcula-se que, nos
primeiros cinquenta anos de colonização, o Brasil contava com uma população de
descendentes de hebreus (cristãos-novos) em torno de 35 por cento. Todos haviam
fugido dos horrores da Inquisição. Eles preferiam que os índios, seus aliados,
aprisionassem os índios inimigos e, em vez de mata-los e come-los, que os
tornassem escravos dos portugueses, para trabalhar nas lavouras de subsistência
e nos trabalhos domésticos. Assim pregava a moral cristã. Isso era considerado um
ato humanitário, além de sua grande utilidade na vida cotidiana do colono. Desta
forma, a escravização dos índios se prestava ao cultivo da solidariedade humana
e à prestação de serviços essenciais para a sobrevivência dos portugueses. Tudo
fazia parte de uma lógica cartesiana, era ético e moral, um ato de grandeza.
Este era o contexto cultural no qual surgiu a escravização do índio (inimigo
dos amigos índios, evidente). A escravatura dos negros já existia na Europa há
muitos séculos. Aliás, a escravatura em geral, de povos inimigos, que habitavam
em outros países próximos ou distantes, ou que não comungassem dos mesmos
princípios étnicos e religiosos, que fossem diferentes social e culturalmente,
existia desde a mais remota Antiguidade. Escravizar negros, então considerados não
como seres humanos, como não possuidores de uma alma, era uma prática corrente,
aceita até mesmo pela Igreja, assim como pelas outras religiões monoteístas: o islamismo e o judaísmo.
O
conceito se arraigou entre nossa população dos primórdios e as primeiras
entradas pelo sertão baiano e pernambucano visavam o aprisionamento de índios.
Era também uma questão de sobrevivência, já que tribos inimigas eram um perigo
constante para a vida dos cidadãos nos povoados. Muitas dessas expedições
(entradas) foram trucidadas por tribos indígenas do hinterland baiano e pernambucano. As que sobreviveram e conseguiram
voltar para o litoral trouxeram notícias de grandes riquezas minerais. Coisas
como serras resplandescentes de diamantes, morros com as mais diversas pedras
preciosas, montanhas de esmeraldas, rios com seu leito forrado de ouro, morros
de prata (aí entrava o desejo ardente da Coroa de suplantar o tesouro de prata
que os espanhóis encontraram em Potosi) eram a rotina da vida e do imaginário
de nossos colonos do século XVI e início do XVII. Tudo era corroborado quando
se encontravam vestígios de minerais preciosos durante as incursões das
entradas pelo Nordeste (Bahia e Pernambuco) e também pelos adornos e adereços
encontrados em índias aprisionadas. Eram os próprios índios que falavam em
grandes riquezas escondidas em nossas matas, montanhas, rios e lagos. Isso despertou
com força a cobiça não só dos colonos, como da Coroa, de toda a corte
portuguesa, das demais coroas europeias e (por que não?) da Igreja.
Emanuel Bowen, m.1767. A new and accurate map of Brasil divided into its captainship drawn from the most approved modern maps and charts and regulated by astrenimical observations. 17__ Acervo da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. |
Quando
foi criada a capitania de São Vicente esses mitos já existiam. A descoberta de
ouro próximo a São Paulo de Piratininga, no planalto sem fim, que dominava o
litoral sul do novo território lusitano, atiçou também a cobiça dos paulistas.
Seria estranho se isto não ocorresse. Quem não gostaria de encontrar ouro,
prata e pedras preciosas rapidamente e de forma fácil, enriquecer em pouco
tempo, voltar para a Europa e viver tranquilo, assim como suas famílias, para o
resto de suas vidas? A resposta é fácil de ser encontrada.
Quando
as primeiras bandeiras paulistas, no último quartel do século XVI, começaram a
descobrir ouro, no vale do Paraíba, nas montanhas próximas ao que hoje
conhecemos como a Mantiqueira, nas grandes campinas onduladas do sul, atual
território do Paraná e oeste de São Paulo, a febre do ouro foi tomando os
corações e mentes de todos, indistintamente.
No
século XVII assistimos à explosão na organização das bandeiras. Todos os
habitantes de São Paulo e cercanias se envolviam nesses preparativos. Até as
famílias dos bandeirantes, com suas esposas à frente, estimulavam seus maridos
e pais a organizarem ou se engajarem em alguma bandeira. Tornou-se um ritual
sagrado e obrigatório para todos os paulistas. Muitas vezes os filhos homens
também se engajavam nelas, ao lado de seus pais. Ficavam para trás, em suas
propriedades ou fazendas, as esposas, a gerenciar todos os negócios da família.
Marido que não se engajasse em alguma bandeira era ridicularizado e desprezado
pela sua própria família. As bandeiras não eram compostas apenas por brancos,
sua grande maioria era de mamelucos, filhos de portugueses com índias. Além de
conhecerem bem a língua desses povos, conheciam suas manhas, conheciam bem o
terreno e a melhor forma de enfrentar a mata fechada e as serras. As bandeiras também contavam com a colaboração de centenas, senão milhares, de índios pacificados e amigos dos paulistas e portugueses. Geralmente, compunham a tropa de flecheiros, habilidade na qual eram insuperáveis. Eram também batedores, indo à frente da expedição, verificar o terreno, seus riscos e potenciais fontes de água e alimentos. Foram de valiosa colaboração tanto nas bandeiras de apresamento quanto nas de prospecção.
A
lenda do Eldorado tornou-se uma verdadeira religião popular. Assim, as
bandeiras foram as instituições mais importantes para o desbravamento de nosso
território e para a criação de nossa nacionalidade brasileira.
Quando,
em nossas pesquisas, nos deparamos com certos textos por demais críticos e
agressivos em relação à história das bandeiras, vi o quanto esse tema ainda
desperta paixões contraditórias entre nós. Algumas críticas têm um bom
fundamento. Outras, entretanto, são baseadas em puro radicalismo e sectarismo
político-ideológico de esquerda.
Um exemplo do que acabo de descrever encontra-se no livro Bandeirismo - Dominação e Violência, de autoria de Júlio José Chiavenato, Coleção Polêmica, editado em São Paulo, pela Editora Moderna, em 1991. Este é o mesmo autor da polêmica tese de que o Brasil, desde o século XIX, é uma potência imperialista na América do Sul. A Guerra do Paraguai, para ele, teria sido uma guerra de extermínio e genocídio contra o povo paraguaio, cuja finalidade seria unicamente para o Brasil dominar o mercado e a economia desse povo, dentro de um processo incipiente de capitalismo selvagem e imperialismo regional. Não é à toa que a coleção em que o livro foi publicado se chama "Coleção Polêmica".
Um dos trechos mais agressivos, que aborda a missão, como bandeirante, de António Raposo Tavares, é o seguinte (p. 67):
"António Raposo Tavares, por exemplo, não teria sido tão bem-sucedido se não tivesse sido cruel. Esse bandeirante atacou seguidamente as reduções jesuíticas, capturando centenas de índios. Antes de transportá-los para São Paulo e distribuí-los para o Rio e Bahia, prendia-os em campos de concentração na selva. Em Taquari, manteve um desses campos durante quase um ano, levando para lá todos os índios que arrebanhava. Não é preciso dizer qual o regime necessário para manter os indígenas confinados".
"Ser só bandido não bastava. Era preciso ser atrevido. O mesmo Raposo Tavares, em 1633, apoiado por vários paulistas importantes, atacou as reduções jesuíticas de Barueri. Aprisionou os índios, arrasou as dependências dos padres, destruiu os móveis. Em consequência, foi excomungado. Ao receber o processo de excomunhão das mãos do padre Martins, deu-lhe uns tapas e rasgou o documento".
"Se não se respeitava a excomunhão vinda direta do papa, por que acatar os padres no Brasil? Era preciso violência. Bartolomeu Bueno do Prado, por exemplo, colecionava orelhas para mostrar às autoridades sua força. Eram a prova de que cumprira com sucesso sua missão."
Eram soldados duros. Andavam a pé pelo sertão, frequentemente descalços, percorrendo léguas e léguas. De Assunção, chegou a Madri uma carta, em 1676, informando: 'os portugueses que até aqui se têm visto são todos brutos descalços de pé e pernas, com escopetas e sabres'. A figura do bandeirante de botas, vestido como um guerreiro de porte imponentemente marcial, é uma criação da historiografia. Na realidade, eram os bandeirantes gente duríssima, que fazia do banditismo um meio de obter sucesso".
Chiavenato, apesar de não ser historiador, pertence a um grupo de escritores de clara visão marxista da história e, portanto, que distorcem os fatos para que estes se enquadrem dentro de sua ideologia rígida. Novos trabalhos, mais recentes, estão a desmentir essas afirmações injuriosas.
Autores de menor expressão nacional também difundem calúnias semelhantes. Um deles é o prof. Rubens Fiúza, de Dores do Indaiá, quando faz o relato de uma das famílias mais antigas da cidade, os Corrêa, descendentes de bandeirantes. Sua leitura causou-me espécie, não por que fala de nossa família, mas pelos tons assaz pesados e, de certa forma, até grosseiros, quando se refere aos desbravadores paulistas.
Um exemplo do que acabo de descrever encontra-se no livro Bandeirismo - Dominação e Violência, de autoria de Júlio José Chiavenato, Coleção Polêmica, editado em São Paulo, pela Editora Moderna, em 1991. Este é o mesmo autor da polêmica tese de que o Brasil, desde o século XIX, é uma potência imperialista na América do Sul. A Guerra do Paraguai, para ele, teria sido uma guerra de extermínio e genocídio contra o povo paraguaio, cuja finalidade seria unicamente para o Brasil dominar o mercado e a economia desse povo, dentro de um processo incipiente de capitalismo selvagem e imperialismo regional. Não é à toa que a coleção em que o livro foi publicado se chama "Coleção Polêmica".
Um dos trechos mais agressivos, que aborda a missão, como bandeirante, de António Raposo Tavares, é o seguinte (p. 67):
"António Raposo Tavares, por exemplo, não teria sido tão bem-sucedido se não tivesse sido cruel. Esse bandeirante atacou seguidamente as reduções jesuíticas, capturando centenas de índios. Antes de transportá-los para São Paulo e distribuí-los para o Rio e Bahia, prendia-os em campos de concentração na selva. Em Taquari, manteve um desses campos durante quase um ano, levando para lá todos os índios que arrebanhava. Não é preciso dizer qual o regime necessário para manter os indígenas confinados".
"Ser só bandido não bastava. Era preciso ser atrevido. O mesmo Raposo Tavares, em 1633, apoiado por vários paulistas importantes, atacou as reduções jesuíticas de Barueri. Aprisionou os índios, arrasou as dependências dos padres, destruiu os móveis. Em consequência, foi excomungado. Ao receber o processo de excomunhão das mãos do padre Martins, deu-lhe uns tapas e rasgou o documento".
"Se não se respeitava a excomunhão vinda direta do papa, por que acatar os padres no Brasil? Era preciso violência. Bartolomeu Bueno do Prado, por exemplo, colecionava orelhas para mostrar às autoridades sua força. Eram a prova de que cumprira com sucesso sua missão."
Eram soldados duros. Andavam a pé pelo sertão, frequentemente descalços, percorrendo léguas e léguas. De Assunção, chegou a Madri uma carta, em 1676, informando: 'os portugueses que até aqui se têm visto são todos brutos descalços de pé e pernas, com escopetas e sabres'. A figura do bandeirante de botas, vestido como um guerreiro de porte imponentemente marcial, é uma criação da historiografia. Na realidade, eram os bandeirantes gente duríssima, que fazia do banditismo um meio de obter sucesso".
Chiavenato, apesar de não ser historiador, pertence a um grupo de escritores de clara visão marxista da história e, portanto, que distorcem os fatos para que estes se enquadrem dentro de sua ideologia rígida. Novos trabalhos, mais recentes, estão a desmentir essas afirmações injuriosas.
Autores de menor expressão nacional também difundem calúnias semelhantes. Um deles é o prof. Rubens Fiúza, de Dores do Indaiá, quando faz o relato de uma das famílias mais antigas da cidade, os Corrêa, descendentes de bandeirantes. Sua leitura causou-me espécie, não por que fala de nossa família, mas pelos tons assaz pesados e, de certa forma, até grosseiros, quando se refere aos desbravadores paulistas.
Transcrevemos
agora um trecho do livro de autoria do prof. Rubens Fiúza, Do São Francisco ao Indaiá – História e Estórias de Dores do Indaiá,
publicado em 2003, Belo Horizonte, Editora do Autor (pp. 302-303):
“De
João Ramalho descendem, em sua maioria, os “bandeirantes” paulistas, isto é, os
sertanistas que, partindo de S. Paulo, de Taubaté e outros núcleos, devassaram
os sertões do sul, de Minas Gerais, Centro-Oeste, Nordeste e Norte do Brasil,
escravizando ou massacrando os índios, descobrindo jazidas de ouro, de
diamantes, etc. Eram eles meio índios, andavam a pé e descalços ou de
alpercatas (e não de botas como quase todo mundo pensa), incendiavam e
destruíam os matos, fundavam arraiais, etc., mas, apesar de mestiços de
indígenas, eram os mais ferozes inimigos que jamais tiveram os habitantes de nossas
florestas. Não foram os verdadeiros “fundadores” do Brasil, como afirmam certos
manuais escolares, e não foram nenhuns “heróis nativos”. Percorreram grandes
distâncias (como os índios também as percorriam), mesmo porque as léguas e os
matos (florestas, campinas ou cerrado) constituíam o seu elemento natural, da
mesma forma que o eram para seus avós indígenas. O massacre sistemático ou
escravização a que submeteram os índios, inclusive os já cristianizados das
Missões Jesuíticas do sul, com as suas criminosas guerrilhas ou como os seus
inacreditáveis maus tratos, no trabalho escravo, podem ser hoje julgados como
um dos piores exemplos de delinquência coletiva manifestados em toda a história
da colonização. Esses monstros sem pátria (não tinham ainda noção de uma pátria
brasileira, podendo ser vistos como agentes conscientes do colonialismo
português) só por ignorância ou falta de compreensão histórica poderiam ser
apresentados como os “heróis-fundadores” da pátria brasileira."
"João
Ramalho e os seus companheiros e descendentes, se não foram criminosos em
Portugal, o foram posteriormente no Brasil Colônia. Facinorosos delinquentes da
pior espécie... De maneira que se equivoca lamentavelmente quem, como o
cronista da antiga Dores do Indaiá, dr. Carlos da Cunha Corrêa, quando se ufana
de descender de João Ramalho e dos mamelucos, seus filhos e netos, etc. Não
pode haver orgulho algum em ser descendente de tais malfeitores. Eu também
descendo, pelo lado materno, de bandeirantes, sem que isto constitua para mim
motivo de ufania. Bem ao contrário. É deprimente."
"Segundo
o dr. Carlos, dentre os mais próximos descendentes de João Ramalho, o ancestral
direto dos Corrêa de Dores foi o bandeirante Manoel Corrêa de Arzão, um dos
descobridores do ouro em Serro Frio em 1701."
"Por
um lado, os Corrêa provêm de João Ramalho e, por outro lado, descendem do
holandês Cornélio de Arzam, que emigrou para S. Paulo em 1609. Sucedem-se as
gerações, até que vamos encontrar já na MISF (Mesopotâmia Indaiá-S.Francisco) o
sesmeiro (fazendeiro) Manoel Corrêa de Souza, o Correinha, o homem que doou o “Patrimônio”
de Nossa Senhora, entre o córrego de Nossa Senhora e o Córrego das Condutas,
para a construção da primeira capela do Arraial da Boa Vista, futura cidade de
Dores do Indaiá. Por isso, o Correinha bem merece ser visto como um dos
cofundadores da nossa cidade. Dele descendendo o próprio dr. Carlos Cunha
Corrêa, o abastado fazendeiro Luís Corrêa (já falecido), seus filhos, seus
netos, seus irmãos e descendentes, etc.”
Este
texto não foi escrito por um historiador, vê-se. Caso o fosse não usaria esses
termos tão duros, radicais, rígidos e até sectários. Te-lo-ia feito de
forma elegante, escorreita e baseado em maiores evidências históricas. Não foi o que ocorreu. Mas, não responderemos pessoalmente ao prof.
Rubens Fiúza. Deixemos que um personagem insuspeito, como o historiador Jaime
Cortesão, o faça. Sua transcrição virá logo abaixo.
António Raposo Tavares. |
Bandeirante Antônio Raposo Tavares (ao centro), em obra de Teodoro Braga. |
Para aqueles que desejam saber mais sobre a
importância histórica de Raposo Tavares recomendamos ver o documentário abaixo,
onde a renomada especialista no tema da importância do povo judaico na formação
cultural do Brasil, profa. Anita Novinsky, da Universidade de São Paulo, nos dá
um grande depoimento, o que aliás é a característica de sua grande competência
como historiadora.
Transcrevemos
aqui uns dos trechos finais do livro Raposo
Tavares e a Formação Territorial do Brasil, Rio de Janeiro, MEC, 1958. Por que o fazemos?
Porque António Raposo Tavares é considerado o maior bandeirante de nossa
história. Sua última bandeira é considerada a mais importante, que traçou
princípios hoje considerados prototípicos de uma bandeira. Uma verdadeira epopeia,
no sentido clássico do que isso quer dizer. Ele é hoje considerado um dos mais
importantes desbravadores da história universal. Vamos ao que o grande
historiador português tem a nos dizer sobre Raposo Tavares e, por tabela, sobre
os bandeirantes em geral:
“LIBERTANDO RAPOSO TAVARES DE TRÊS SÉCULOS DE CONSPIRAÇÃO"
Jaime Cortesão
"A PERSONALIDADE de Raposo Tavares pertence à
história de dois países — Portugal e o Brasil — que durante o século XVII,
embora formando dois Estados, faziam parte da mesma comunidade nacional; à
história da formação territorial e política do Brasil e, em geral, dos Estados
sul-americanos; à história das grandes viagens descobridoras em todos os
continentes; e, enfim, à história
universal, já como um dos grandes realizadores do Estado moderno nas
suas tendências para afirmar e alargar, por forma ilimitada, a soberania sobre
os territórios dos Novos-Mundos, já como pioneiro na luta contra a subordinação
das culturas naturais de cada raça, povo ou grupo social, a uma planificação
estiolante, em nome de razões sobrenaturais.
Reduzido à sua expressão genérica, Raposo Tavares é
um dos mais altos e lídimos representantes do português do século XVII, —
bravo, cavaleiroso, plasmador e plástico, capaz de relances de grande visão
política, e católico dum catolicismo sui-generis, sempre identificado com a consciência da grei.
O drama de
Raposo Tavares e de muitos dos seus companheiros, radica na oposição veemente
entre o estreito meio político
em que se moviam as classes governantes da metrópole, educadas e dirigidas pela
Companhia de Jesus e, por consequência, subordinadas a uma hierarquia rígida e teocrática de valores,
e o meio social das chamadas capitanias do sul do Brasil e, mais que todas, a
de São Vicente-São Paulo, onde um gênero de vida próprio, — o bandeirismo — permitiu a formação e o desenvolvimento dum
novo conceito de vida, à livre lei da Natureza e dos interesses de grupo
e algumas vezes de nação e, como consequência, a afirmação dos carateres mais fortes.
Contra Raposo Tavares e seus companheiros levantou-se a acusação
de escravagistas, homens cruéis e hereges. Vamos por partes. Hoje todos
condenamos as práticas escravagistas, embora nem todos tenham o direito de
fazê-lo.
Quantos juízes
farisaicos condenam no passado os crimes que praticam e aceitam, sob
outras e mais evoluídas formas, no presente... Mas, de qualquer sorte, ao ditar
semelhante sentença, fazêmo-lo em nome duma consciência pessoal e contemporânea. Situados os fatos no terreno histórico, o caso muda de semblante. Há
que entendê-los e julgá-los apenas como fase duma evolução das sociedades e,
por consequência, da moral.
Lembremo-nos de que naquela época a Igreja e os Estados ainda não condenavam a escravidão dos
negros e nem a Companhia de Jesus deixou de a praticar, e muito
largamente, na África portuguesa e no Brasil. Proclamar que os jesuítas
defendiam a liberdade dos índios, em nome dum conceito integral dos direitos
humanos, é igualmente farisaísmo.
Entendemos, pois, que era necessário colocar os bandeirantes dentro da moral da
sua época e das determinantes do seu meio geográfico, econômico e
social; e medi-los, por comparação, com os seus maiores inimigos, os jesuítas espanhóis.
Entendemos que para estudar a figura de Raposo Tavares e, por forma geral, dos bandeirantes, integrando-os, como lhes cabe de pleno direito, na história da expansão geográfica e da política nacional, era necessário despi-los da grosseira e falsa vestimenta, que os havia degradado:
Entendemos que para estudar a figura de Raposo Tavares e, por forma geral, dos bandeirantes, integrando-os, como lhes cabe de pleno direito, na história da expansão geográfica e da política nacional, era necessário despi-los da grosseira e falsa vestimenta, que os havia degradado:
a) a meros agentes de Satanás;
b) a escravagistas, dominados pela mais baixa cupidez;
c) a bandoleiros, sem mistura doutros sentimentos, que não fossem a crueldade assassina, a impiedade e o cinismo.
Nem tudo foi lama nos bandeirantes de São Paulo; nem tudo ouro nos jesuítas espanhóis.
Ao contrário, uns e outros foram amassados num barro mais ou menos semelhante
e, por isso mesmo, mais ou menos suscetíveis de todas as paixões humanas, nem
sempre nobres. E, se nunca negamos heroísmo, capacidade de sacrifício e
sublimidade de esforço, levado algumas vezes até à santidade, a muitos
jesuítas, entendemos que era dever de verdade e de justiça apontar os bandeirantes como eles foram, tantas vezes tipos sobre-humanos, pela inaudita
capacidade de energia, perseverança, e eles também, de generosidade, isenção e sacrifício.
Foram cruéis ? Por certo. Como cruel foi o homem do
século XVII e o de todos os tempos. Mas, tantas das acusações de crimes
abomináveis, imputados aos bandeirantes, foram, como vimos, quando não
facilmente acreditadas pelos jesuítas, na fé do que diziam os índios, incapazes
de discernir entre o real e o imaginado, adrede forjadas pelo Pe. Montoya e outros dos seus confrades, com
declarado propósito de denegrir os inimigos. Estão neste caso as cenas
horripilantes, mas puramente invencionadas,
do massacre dos inocentes na redução de Jesus Maria.
Que eles obedecessem, por vezes, a instintos bárbaros e violentos, que em todos os tempos a guerra e a aventura perigosa desencadearam, acreditamos. Era inevitável.
Que eles obedecessem, por vezes, a instintos bárbaros e violentos, que em todos os tempos a guerra e a aventura perigosa desencadearam, acreditamos. Era inevitável.
Lembremo-nos,
não obstante, que por essa mesma época funcionava o chamado Santo Ofício da
Inquisição de Lima, que atingiu as mais espantosas proporções da fria e calculada exploração do medo pela
crueldade, com fins políticos ou de ciúme comercial, infamando e condenando à
fogueira os mesmos católicos, apenas porque eram portugueses e ricos.
Lembremo-nos ainda que os jesuítas espanhóis
colaboraram intimamente com este Santo Ofício; que pretenderam destruir o bandeirismo valendo-se da
Inquisição; e que, por 1639, no auge da expansão bandeirante, o
Comissário do Santo Ofício de Lima, Superior das reduções do Uruguai e do Tape,
as mais visadas por então, era o Pe. Diogo de Alfaro, que exercia o cargo em ódio contra os portugueses.
Foram hereges,
no sentido em que o entendiam os jesuítas daquele tempo? De modo algum. Eram católicos, a seu modo. Ou seja do
mesmo modo que os sacerdotes seculares, ou os frades do Carmo e de São Bento
que acompanhavam e partilhavam das bandeiras: ou os franciscanos que, em 1640,
e em São Paulo, se colocaram ao lado
dos paulistas quando estes expulsaram os jesuítas.
Que os bandeirantes eram capazes de atos de piedade e respeito com os próprios jesuítas espanhóis, e quando ainda se não apagara o calor da refrega, provamos nas páginas anteriores.
Que os bandeirantes eram capazes de atos de piedade e respeito com os próprios jesuítas espanhóis, e quando ainda se não apagara o calor da refrega, provamos nas páginas anteriores.
Hereges ?! Mas, descontando ainda as agravantes dos casos que
apontamos, haverá maior heresia que
condenar, em nome de Deus. à infâmia e a morte pelo fogo, os que acreditam em
Deus, sob outro nome? Haverá maior violência, mais inumana tirania, que atingir, para
além do corpo, os direitos mais sagrados da consciência, negando os próprios
fundamentos do cristianismo ?!
Como chefe de bandeira, descobridor dum continente, com fins de Estado e em nome duma nação que criou a palavra Descobrimento e lhe deu categoria nobre, Raposo Tavares não tem quem o supere.
Como chefe de bandeira, descobridor dum continente, com fins de Estado e em nome duma nação que criou a palavra Descobrimento e lhe deu categoria nobre, Raposo Tavares não tem quem o supere.
Dando ainda os primeiros ou decisivos golpes nos
vacilantes edifícios que os jesuítas do Paraguai haviam construído no Guairá,
no Itatim e no Tape. Negando-lhes o direito de ocupação e defesa armada de
territórios de soberania, àquela data duvidosa, Raposo Tavares dilatava o Brasil até aos confins que a geografia e
a cultura aborígines lhe apontavam, dava-lhe estrutura orgânica e, com mais de
um século de antecedência, preparava a obra de Alexandre de Gusmão e dos
grandes construtores do Estado brasileiro.
Negando aos jesuítas aquele mesmo direito de defesa armada, Raposo Tavares solidarizava-se profundamente com o espírito de protesto reinante entre os espanhóis de Assunção e de Buenos Aires; influía na laicização dos povos hispano-americanos; e abria juntamente o caminho a Pombal e Aranda.
Negando aos jesuítas aquele mesmo direito de defesa armada, Raposo Tavares solidarizava-se profundamente com o espírito de protesto reinante entre os espanhóis de Assunção e de Buenos Aires; influía na laicização dos povos hispano-americanos; e abria juntamente o caminho a Pombal e Aranda.
Em luta contra os jesuítas portugueses, ele (Raposo
Tavares) encarnou e defendeu o
princípio da supremacia da jurisdição civil sobre a eclesiástica; em
luta com os jesuítas espanhóis, o primado, não só daquela jurisdição, mas duma soberania nacional, superior a qualquer
hierarquia religiosa, desde que não colidisse com os princípios do
direito natural.
Sob esse aspecto, ele situa-se na linha revolucionária, dentro da qual evoluiu e se afirmou o Estado moderno.
Melhor do que D. João IV e seus conselheiros, ele defendeu juntamente o espírito da grei, fiel à tradição da aventura descobridora; e os interesses duma nação, para quem a expansão do Estado nos Mundos-Novos representava um impulso e uma necessidade vitais. Enfim, Raposo Tavares pertence à história universal como defensor, contra a teocracia jesuítica, exercida sobre os índios e não índios, duma ética de compreensão dos valores próprios de cada cultura e, por consequência, duma das formas da liberdade — a de ser homem, na afirmação dos valores próprios e herdados, fora duma planificação religiosa estranha e imposta.
Sobre a memória de Raposo Tavares pesou durante cerca - de três séculos a conspiração do silêncio, urdida pelos jesuítas e consentida pelos governantes de Lisboa, contra o homem que uns e outros consideravam o inimigo nº 1 do Estado, ou melhor, duma - das suas instituições fundamentais naquela época — a Companhia de Jesus.
Sob esse aspecto, ele situa-se na linha revolucionária, dentro da qual evoluiu e se afirmou o Estado moderno.
Melhor do que D. João IV e seus conselheiros, ele defendeu juntamente o espírito da grei, fiel à tradição da aventura descobridora; e os interesses duma nação, para quem a expansão do Estado nos Mundos-Novos representava um impulso e uma necessidade vitais. Enfim, Raposo Tavares pertence à história universal como defensor, contra a teocracia jesuítica, exercida sobre os índios e não índios, duma ética de compreensão dos valores próprios de cada cultura e, por consequência, duma das formas da liberdade — a de ser homem, na afirmação dos valores próprios e herdados, fora duma planificação religiosa estranha e imposta.
Sobre a memória de Raposo Tavares pesou durante cerca - de três séculos a conspiração do silêncio, urdida pelos jesuítas e consentida pelos governantes de Lisboa, contra o homem que uns e outros consideravam o inimigo nº 1 do Estado, ou melhor, duma - das suas instituições fundamentais naquela época — a Companhia de Jesus.
Poderosa mão a dos filhos de Santo Inácio! De tal
sorte que, ao terminar esta obra, temos a sensação de haver levantado, com
pesado esforço, a tampa de granito dum
sepulcro, onde um gigante dormisse.”
Este texto encontra-se disponível em: http://www.bandeirantes-sp.com.br/estudos6.html#
Este texto encontra-se disponível em: http://www.bandeirantes-sp.com.br/estudos6.html#
E, last but not least, além de Jaime Cortesão, diversos historiadores brasileiros defenderam o papel dos bandeirantes na formação da nacionalidade brasileira. Particularmente, rejeitando a odiosa pecha de terem sido verdadeiros bandidos e não grandes exploradores de nosso território. A mais veemente e brilhante defesa dos bandeirantes paulistas coube a Cassiano Ricardo (1895-1974), poeta, escritor, jornalista e ensaísta, além de estudioso da história pátria. Foi um dos organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, tornou-se um dos grandes nomes da poesia concretista brasileira e foi membro da Academia Brasileira de Letras.
Cassiano Ricardo (1895-1974). |
Tomamos a liberdade de transcrever aqui um dos capítulos finais de sua obra memorável Marcha para Oeste (A influência da “Bandeira”
na formação social e política do Brasil). Terceira Edição (Inteiramente revista
e acrescida de dois novos capítulos). Vol. I. Rio de Janeiro. Livraria José
Olympio Editora, 1959. Pg. 289-308. São páginas imortais que questionam as acusações injustas impostas aos bandeirantes. Essas páginas nos trazem um relato vívido de como foi dura a vida desses personagens fundamentais de nossa história, a quem muito devemos hoje. Vamos ao que nos diz Cassiano Ricardo:
VIII
A
“CRUELDADE” DO BANDEIRANTE E A VERDADEIRA TÉCNICA DA CONQUISTA
1
"Até
certo ponto, a pergunta – cruel porque escravizou o índio? – obtém resposta,
por exemplo, nos casos de índios trazidos em paz.
A
técnica da conquista nos apresenta, muitas vezes, o bandeirante transformado em
“apartador de briga” entre tribos rivais. Os casamentos de bandeirantes com as
filhas dos caciques dão, à penetração histórica, um raro colorido humano. As
instruções, que levavam nos regimentos, quanto ao modo pelo qual deviam ser
tratados os selvagens, ilustram muito essa técnica. Só era natural a “defensa”
quando os índios atacassem a bandeira.
É
comum a defesa do índio pelo próprio bandeirante. As atas da Câmara, em tal
sentido, são definitivas. A todo momento, em plena conquista, está o
bandeirante lançando mão da “técnica da bondade” – mesmo porque se recomenda
que “os capitães nada perdem por serem magnânimos e liberais”.
Até
a conquista se pratica, muita vez, pelo “caminho da paz”. É o caso de Fernão
Dias Pais, conquistador pacífico dos três reinos que eram os do Tombu, Sondá e
Gravitaí.
2
Sabe-se
como decorreu o curioso episódio:
Dos
três caciques, Tombu era o de mais absoluto prestígio. Usava de armas sobre o
pórtico do seu “palácio” e eram elas um ramo seco, com três araras vivas. Se
morria uma dessas aves, outra era posta em seu lugar imediatamente. Os vassalos
só lhe falavam “com os joelhos em terra”; e ele, com uma certa pachorra, que
tanto tinha de inocente como de caricatural, se fazia “carregar como em andor”
toda a vez que saia do seu trono.
Fernão
Dias Pais vai ter com os três caciques. Diz-lhes, com suavidade, o que
pretendia: nada de briga; apenas um entendimento cordial e cristão para que
todos o seguissem para um país melhor. Pois não é que os morubixabas se convenceram
e o seguiram?
Postos
em marcha, como se fossem reis magos, morre um deles, o Gravitaí; depois mais,
morre o Rei Sondá. Não obstante, prossegue a transmigração e chegam a S. Paulo
os cinco mil índios da tribo chefiados por Fernão Dias Pais e pelo Rei Tombu.
Este Rei Tombu, diz Pedro Taques, praticava sempre as “virtudes morais”, tendo
sido batizado à hora da morte.
Como
se vê, consegue o grande bandeirante destronar nada menos de três caciques,
trazendo-os amorosamente, com os seus cinco mil vassalos, ao Planalto; isto é,
consegue a transmigração pura e simples de uma tribo toda, “sem estrondo de
armas nem tiranias de morte”.
3
O
maior número de escravos nem sempre quer dizer maior escravização. O próprio
número parece dispersar os seus efeitos, tornando-a mais problemática.
Do
ponto de vista psicológico, há mais escravidão em sujeitar um índio (um só
índio) ao trabalho da lavoura do que vinte negros no mesmo mister.
Sabe-se
que a escravização do índio foi mais rápida; durou menos que a do negro. Já em
1570 havia uma lei proibindo essa escravização, exceto em justa guerra. Por uma
questão de duração, o negro terá sido muito mais escravizado que o índio.
Quem
fosse escravo sem o saber (e quantos índios estarão neste caso) seria tão pouco
escravo como quem o fosse com resignação e conformismo psicológico (e quantos
negros estarão neste caso).
Enfim,
o índio estaria menos escravizado na bandeira do que na criação de gado. Menos
escravizado na criação de gado do que no trabalho da lavoura ou da indústria
açucareira.
O
negro, porém, foi mais escravizado que o índio, sob certo aspecto; sendo já que
muito pior que a caça ao bugre foi a caça aos negros na África para serem
vendidos aqui, em mercado ignóbil. No entanto, os jesuítas nunca notaram isso.
Como se entre duas criaturas igualmente escravizadas a igreja pudesse dar
preferência à defesa de uma contra a outra. Mais de um clérigo “pregou a
escravidão africana [1]
com o Evangelho em punho”. Nóbrega pedia que, dos primeiros pretos que viessem,
se reservassem duas dúzias para os padres. [2]
No
rol dos que combatiam a escravidão vermelha, mas aconselhavam a negra, estava
Vieira com os seus sermões. Para ele “só havia um remédio permanente de vida,
quando entrassem, com força , escravos de Angola”.
Ainda
em 1808, certo bispo se saiu com este opúsculo, cujo título diz tudo:
“Concordância das leis de Portugal e das Bulas Pontificais, das quais umas
permitem a escravidão dos pretos d’África e outras proíbem a escravidão dos
índios do Brasil”.
Sem
querer, a gente se lembra logo daquelas palavras que Westermann, no seu livro “Noirs et Blancs em Afrique” reproduz a
La Fayette: “le dernier des nègres peut
toujour dire au premier des blancs – ne suis-je pas um homme, ton frère?”.
Para
o índio, a libertação é o nomadismo; para o negro a liberdade já significa um
bem moral e a sua perda é mais sensível, provavelmente. Houve muito maior
número de insurreições negras do que vermelhas, na sociedade colonial. Haverá
maior onde haja, portanto, maior sacrifício sensível de liberdade.
Uma
liberdade que nos interessa, pode deixar de interessar a outra raça, ou a outro
indivíduo, atendendo-se a fatores culturais e psicológicos diversos.
4
A
questão comporta outras reflexões, talvez, não menos interessantes. A bandeira
foi quem demonstrou ao mundo a "realidade humana do índio”, até então
deformada pelos escritores e pela fábula que o faziam um “monstro” ou um
“anjo”.
Tais
escritores, pois, colocaram o índio “além” ou “aquém” da realidade humana. Na
prática, quando se inaugura a nova sociedade, o que se vê é a deformação
selvagem pelo padre na catequese e pelo senhor de engenho, no sedentarismo
agrícola.
Em
resumo: os escritores do velho mundo, os padres da catequese e os colonizadores
do Brasil deformam, invariavelmente, o nosso selvagem: só o bandeirante é que o
realiza, aproveitando-o no seu nomadismo, isto é, na sua “especialização
psicológica para o movimento” e deslocando-o para uma nova ordem social e
humana onde ele entraria em função de suas qualidades específicas.
O
padre segrega o índio e o aplica nas suas lavouras, obrigando-o a um
sedentarismo mortal. Ao passo que o bandeirante continua o índio e chega a ser
chefe de tribo, como Borba Gato no Rio Doce e Pay Pirá entre os bororos.
A
sua técnica consiste: em regressar ao primitivo o mais que pode; em assimilar
os padrões culturais indígenas; em se mestiçar com o aborígene; em continuar o
índio (pois o costume de bandeirar já era indígena); em pacificar o gentio,
agindo “amorosamente”, fazendo os da sua tropa casarem com as filhas dos caciques,
mandando emissários – que eram os “línguas” – propor a paz, o entendimento
cristão e cordial, mesmo a índios sabidamente rebeldes e intratáveis, como
aconteceu com os de Cuiabá; reconhecendo o governo das tribos mansas;
oferecendo mimos e presentes de toda ordem aos maiorais da selva.
Verdade
que o bandeirante caça bugre, muita vez, com o próprio bugre; na bandeira de
preia ao silvícola figuram milhares de índios, empregados em caçar os seus
irmãos da selva. A ocorrência, entretanto, parece menos dolorosa quando se sabe
que bugre contra bugre era coisa natural e imemorial.
Já
viviam eles em luta encarniçada uns com os outros. Nesta conjuntura, o que se
pode dizer é que o caçador de bugre aproveitou a rivalidade existente entre
tribos inimigas para a sua penetração, aliando-se aos tupis contra os tapuias.
O
argumento de que era ele um “despovoador” incorrigível pode sofrer a contradita
fácil, já aqui feita, de que ir buscar índio aos espanhóis, se despovoava as
aldeias e reduções do lado de lá, povoava as do lado de cá.
Não
se pode confundir despovoamento com a violenta deslocação de grupos desta ou
daquela área social ou cultural para outra em que a bandeira realiza a sua
imprevista recomposição de valores humanos.
Aliás,
falar-se apenas em bandeira despovoadora já é outro erro grave, sabido que
muitas foram, ao contrário, e em sua maior parte, povoadoras por excelência.
5
Alega-se
que o “ciclo da caça ao índio” registra, quase sempre, páginas de rubra
devastação.
Longe
de nós a idéia de transformar os heróis do preamento em santos. Lembre-se,
porém, que é esse um meio sagaz de ladear a questão, uma vez que o bandeirismo
não é a rigor sinônimo de “caça ao bugre”. Antes, o bandeirante só caça o bugre
por mandato do agricultor e nas horas vagas – isto é, quando interrompe o seu
objetivo constante e principal, que é o da correria atrás do ouro e das pedras
verdes.
Sobre
essa “constante” do bandeirismo muito se terá que dizer em capítulos
subsequentes, de modo mais detido. Surge ela nesta passagem, apenas para se
afirmar que a caça ao bugre como objetivo único ou sistemático do bandeirante é
um argumento falso de que os jesuítas espanhóis e certos historiadores
unilaterais lançam mão por mera improbidade toda vez que atacam o bandeirismo
como cruel.
Dado,
contudo, que a caça ao bugre fosse o único objetivo da bandeira, deveríamos
perguntar: o bandeirante “caçou” menos ou mais cruelmente do que os outros
conquistadores? Este confronto elementar é necessário, uma vez que o verbo
“caçar” foi conjugado por todos os povos, tanto na África como na América.
Terá
conquistado a palma da glória quem tiver “caçado menos” ou sido “menos cruel”.
6
Contra
Raposo Tavares se dizem coisas tenebrosas. A queixa dos jesuítas comove as
pedras.
“O
que parece mais acertado, dizia um deles, é tomarmos nós o exemplo que nos
deram os cristãos de Jesus Maria, os quais, vendo o perigo em que estavam
quando começou a queimar-se a igreja, resolveram rezar o padre-nosso, pedindo
socorro ao céu, pois na terra não há o que esperar.” Assim falava o Padre
Diego, a respeito da invasão do Guairá pelos bandeirantes, numa carta de 1637,
existente na coleção De Angelis.
No
entanto, ouvimos de Rodolfo Garcia que a entrada de Raposo não está bem
estudada num dos seus pontos mais sérios. [3]
A sua intenção não era cativar os índios mansos das reduções; tendo chegado a
uma de tais reduções, limitou-se a pedir agasalho pra sua tropa faminta, depois
de uma jornada que lhe havia custado sacrifícios de toda ordem. Queria a
hospitalidade dos jesuítas, e estaria satisfeito. Recebido, porém, com
aspereza, revidou ele ao modo pelo qual estava sendo tratado. Foi quando,
perdendo a paciência, resolveu mesmo atacar as reduções jesuíticas sem mais
contemplação.
“Este
homem – dizia o bispo de Pernambuco a respeito de Domingos Jorge Velho – é dos
maiores selvagens com quem tenho topado. Quando se avistou comigo trouxe
consigo língua, porque nem falar sabe, nem se diferença do mais bárbaro tapuia
mais que em dizer que é cristão”. (Carta do bispo, em maio de 1697).
No
entanto, na 5ª. condição imposta a el-rei para a guerra conta os pretos, o
expugnador dos Palmares demonstra que não era o selvagem igual ao tapuia, de
que falava o bispo. Não queria ele que as mulheres fossem remetidas mar em
fora; além da injustiça, isso seria causa de grande prejuízo. “Se são filhas do
Palmar quem as compra dá por elas a quarta parte do seu valor, e se são cativas
da costa, e têm crias, é grande crueldade arrancar-lhes dos peitos as crianças;
e vendendo as crianças sem as mães, quem é que as há de comprar, e dado que as
comprem, que hão de dar por uma criança que fica sem mãe para a acabar de
criar? E se os sam-Paulistas, por não acharem quem dê por tais crianças o justo
valor, as guardarem para si, para que as querem sem suas mães para as criarem?”
É
algo de tocante – como se vê – na sua rudeza.
7
A
outra lenda, a dos pajens, que os irmãos Leme faziam subir a uma árvore,
matando-os em seguida, só pelo gosto de os ver caírem que nem macacos, seria um
divertimento trágico se não fosse um “divertimento admirável” com que Manuel
Cardoso de Abreu aumentava um ponto aos contos que, em regra, povoam a vida dos
homens lendários e façanhudos.
Que
eram eles intrépidos fura-matos não há dúvida. Quando os descobridores das
minas de Cuiabá elegem Fernão Dias Falcão para cabo maior, prometendo-lhe
obediência e fidelidade, e conservam Pascoal Moreira pra guarda-mor, lá está a
prova: os autores dessa iniciativa são os irmãos Leme, que assinam a ata em
primeiro lugar. Tal o papel que lhes coube na organização do primeiro governo
de Cuiabá, só comparável ao que praticam, depois, devolvendo a D. Rodrigo César
as prebendas com que o ditador os queria subornar.
Porém,
quando se fala em “crueldade” de bandeirante, já se sabe: saltam da história os
irmãos terríveis, que Rocha Pita carregou com a tinta grossa dos seus tropos
literários.
Tinham
eles, ninguém o nega, praticado os seus crimes; entretanto, pra perdoar os
irmãos Leme não é preciso estuda-los em face da psicanálise, como tentou
alguém. Muito menos confrontar-lhes os crimes com os daquele tempo, nem com os
demais que o sertão explica de sobejo.
Judicis oficium est, ut res, ita tempora rerum
Quoerere quoesito tempore tutus eris.
Basta
o confronto com os praticados pelos seus quatro espoliadores. Quem são estes? Sebastião
Fernandes do Rêgo (aquele gatuno mágico, escamoteador, contrabandista, que
fazia ouro virar chumbo), um delator como Cavichi (o pajem que os atraiçoou
horrivelmente), um régulo sanguinário como Rodrigo César (que lhes acenara
antes com promessas, afagos e honrarias) e um juiz como Godinho Manso (a quem
Taunay mimoseia com o amável epíteto de abutre forense).
Desfilem
os dois irmãos espoliados e os quatro espoliadores, perante qualquer tribunal.
Saiba-se que se tratava de quatro criminosos da cidade, contra dois do sertão,
“sem adorno algum de polícia e de tratamento civil”. Tenha-se em vista que
havia um prêmio pra quem matasse os irmãos Leme; se o matador fosse negro,
alforria; se fosse branco, perdão pra quaisquer outros crimes que já houvesse praticado.
Pondere-se que, nessa época se tornou praxe régia perdoar crimes a quem
descobrisse ouro e o ter cometido muitos crimes era um título de recomendação
(tanto que o prêmio ao matador consistia no perdão imediato a quaisquer crimes
que já houvesse cometido anteriormente). Não será difícil senão ato de rudimentar
justiça perdoar os heróicos filhos de El
Tuerto ao invés de glorificar e premiar os crimes, talvez piores, do
primeiro sicário que os matasse. Difícil, senão impossível, ao historiador de
hoje seria condenar os dois audazes sertanistas se tivesse que deixar impunes
os autores de tamanha pilhagem, entre os quais estava um juiz de braço dado com
um gatuno e contrabandista.
Diante
de tais criminosos oficiais, os dois filhos de El Tuerto, tão brutalmente justiçados, deixam de ser cruéis pra
serem heróis como os que, na linguagem do sertão, mais o foram.
Mais
odioso se torna ainda o procedimento de D. Rodrigo por se saber que ele faz
“vista grossa”, por ex., a respeito de Domingos Rodrigues do Prado, depois de o
haver apontado como régulo e matador. O herói de Pitangui devia ser enforcado
“em efígie”, mas depois figura, como um inocente, na bandeira do 2º. Anhangüera
que tanto alvoroço causa ao governador da capitania.
Outros
casos cabeludos, como de Borba Gato que matou o representante régio e é
promovido a tenente-general do mato; o de Gaspar de Godói Colaço, que matou um
dos Camargos e que foi nomeado tenente-general da jornada da Vacaria; o de Luís
Pedroso de Barros, que agrediu o ouvidor do rio das Mortes, mas que depois
abriu o caminho de S. Paulo ao Rio Paraná; são esquecidos de pronto, numa época
em que tais crimes eram inevitáveis.
Só
os dos irmãos Leme deviam ser cobrados pela lei de Talião.
8
Há,
ninguém o ignora, uma espécie de vizinhança congênita entre o herói e o
bandido. Pra ser herói – isto é que é o diabo – o herói é obrigado a ser
bandido; precisa contar com a indulgência dos santos.
O
santo perdoa, então, o bandido que há no herói.
Considere-se
ainda que todo “fronteiro”, todo conquistador, é sempre herói por um lado e
bandido pelo outro. Herói pelo lado de cá (no caso de bandeirismo) bandido pelo
de lá. Parece que o bandeirante não iria fugir a esta incoercível dialética; a
mesma a que está sujeito, afinal, no plano político, quem faz uma revolução: se
triunfa é um herói, se perde, é bandido.
Assim
o critério pra julgamento deixa de ser o comum, o particular, o faccioso, o da
moral cotidiana, uma vez transposto para o plano político; e tal é o caso do
bandeirante em face de qualquer julgamento honesto.
Toda
vez que era preciso combater o selvagem, “comedor de carne humana” ou
conquistar “melhoramentos para a Coroa”, não se perdoavam os criminosos
foragidos e degradados?
Praxe
mantida por longo tempo, ainda para a conquista do sertão do Tibagi perdoam-se
todos os crimes cometidos por aqueles “que se quiserem [4]
empregar nesse utilíssimo serviço”.
Vários
criminosos são mandados pra povoar Iguatemi. [5] Estes tinham, em tais ocasiões, a sua utilidade e a sua reabilitação. E quanto,
ao lado dos bandidos do bandeirismo, se tornaram heróis! Quase inexistente, a
linha que separa o herói do bandido. Um mora no outro, por força de uma
violenta transmutação de valores determinada por fatores sociais. Repita-se: Se
o bandido triunfa, é herói e é perdoado pelos santos; se perde, fica apenas
bandido. A origem de todas as pátrias está escrita com o sangue dos heróis, dos
santos e dos bandidos. Nada mais natural.[6] Os cossacos, que conquistaram a Sibéria, sempre foram chamados de bandidos e
ladrões, nos documentos governamentais.
“Dire où cessait le cossaque et où commençait le brigand était chose malaisé”,
proclama Youri Semianov, na sua “A Conquista da Sibéria”.
Quando
Garibaldi é qualificado, na Câmara inglesa, de pirata e flibusteiro, John
Russell responde, a quem o compara ao herói italiano, que o foi também na
Guerra dos Farrapos: “a história é que há de decidir se ele foi pirata e
flibusteiro, ou pirata e herói. Em 1688 desembarcava nas costas da Inglaterra
um pirata e flibusteiro e a revolução que fez é uma das maiores glórias da
nação”. Em toda parte, como se vê, a cantiga é a mesma.
Hoje,
quando a matança e o saque são apanágio de certas doutrinas, como acusar
aqueles homens ríspidos e atormentados cujo destino seria “vencer ou morrer”?
9
Agora,
a pergunta: entre os que caçaram e escravizaram o bugre, quem caçou menos e
escravizou menos?
Ora,
todos sabemos que os aventureiros espanhóis do século XVI conquistaram o
México, a América Central e o Peru (são palavras de Paulo Prado) numa sombria
tragédia de sangue e de crueldade. Chegaram a sustentar seus cães com a carne
dos pobres índios, segundo o testemunho do bispo de Chiapa. [7]
Schmidel
gabava-se de ter tomado parte, sob a chefia de Irala, em verdadeiras “caçadas
de homens”. Numa delas foram degolados mil indígenas de uma só vez. Alcide
d’Orbigny assim se manifesta, sobre uma das expedições paraguaias: “si l’on croît Schmidel, cette expedition de
Irala aurait été l’une des plus cruelles des espagnoles, sous le rapport du
traitement barbare qu’ils y firent éprouver aux indigènes”. [8]
Casos
de maior crueldade, ocorridos na conquista da América pelos espanhóis, são
inúmeros. O processo sistemático, científico, da apropriação da terra
conquistada pelo extermínio dos autóctones, (cita-se, aqui, uma observação de
Taunay), tão largamente usado nas Canárias e na Flórida, nas Antilhas e no
Chile, teve enorme emprego, em pleno século XX, em relação aos Peles-vermelhas
dos Estados Unidos e da Nova Zelândia. [9]
Na América do Norte (faz ver Afrânio Peixoto) depois de liberto o escravo
negro, passa-se a considerar, reservar terras e bens ao pobre índio
norte-americano. Diante (porém) do Museu de Boston está uma estátua de Dallin,
que a penitência levantou, de um Pele-vermelha, a erguer os braços a Deus.
“Espírito Supremo dos Brancos, tende piedade de nós.”
Releiam-se
ainda, sobre este assunto, uns comentários de Sorokin (“Contemporary Sociologial Theories”, 326), referindo-se aos estudos
de A. N. Engelgard (“Process as the
Evolution of Cruelty”) e aos de Benjamin Kidd (“The Science of Power”). Para o primeiro, a civilização é um produto
da crueldade. Todas as histórias de guerra são o apanágio desse princípio,
notadamente as de colonização. Para o segundo, a crueldade não decresceu com a
civilização de agora. Muito ao contrário, no confronto da segunda metade do
século XIX com o começo deste o que se verifica é que o homem se tornou
“incomparavelmente mais brutal do que fora antes”. Houve mesmo uma
recrudescência da “doutrina pagã que se inspira na onipotência da força”. A discussão,
porém, entre os que acreditam na humanização progressiva da guerra e os que
provam o contrário é de todo escusada. O mundo aí está, até ameaçado de
desaparecer.
Mas
um crime não justificaria outro e melhor são argumentos e fatos locais. O
próprio Brasil esclarece o seu caso, sem precisão de recorrer a confrontos
históricos. O pioneer da bandeira só
praticou a crueldade contra a crueldade; pagou com a vida a sua audácia,
perecendo expedições inteiras destroçadas pelos paiaguás do Oeste e pelos castelhanos
de Mbororé do Sul; pagou com a fome a dureza da conquista e com que fim? Pra
que o Brasil existisse, como o vemos no mapa.
Não
viesse o índio cair em mãos do bandeirante, teria caído nas do espanhol,
incomparavelmente mais cruel em seus métodos de colonização.
E
o que é mais grave: Mesmo depois de descido pra nosso lado, os espanhóis
queriam arrebata-lo. O caso, já referido no § 2 do “O Índio, na Sociedade Bandeirante”, de Jaguarajuba [10]
contando que eles haviam levado os índios de sua aldeia não pode ser
deslembrado – sem se falar no caso dos castelhanos no Avanhandava. O que quer
dizer, em bom português: teríamos perdido uma ótima ocasião de evitar um mal
maior...
Respondida,
porém, a pergunta – qual dos povos conquistadores o que menos caçou e escravizou
o índio – e o simples confronto com o espanhóis, com os alemães na Venezuela e
com os anglo-saxões na América do Norte nos deixa a perder de vista – será o
caso de indagar agora qual dos nossos grupos sociais da colônia foi o que menos
maltratou o aborígene.
Foi,
sem dúvida, aquele que “continuou” o índio e não quem o obrigou ao sedentarismo
mortal. Dada a natureza andeja do selvagem, a sua escravização, na bandeira,
seria muito menor do que na lavoura ou no serviço do jesuíta... Não só por
isso, senão também pela psicologia do grupo em movimento (sentimentos
contrários, mas coincidentes) a bandeira é o menos escravocrata, o menos
escravizador dos grupos coloniais.
O
costume de bandeirar já era indígena (homo
primitivus migratorius) e o bandeirismo passa a ser o próprio nomadismo
dirigido.
10
As
coisas são muito diversas, como se vê.
O
bandeirante representa, na terra nova, uma verdade humana cheia de brutalidade
e surpresa. Não era apenas o homem realizando uma façanha que o mundo ainda não
conhecia. O “super-homem do deserto”, na frase de Euclides, ou o diabo velho
botando fogo na água dos rios, na linguagem da legenda, surgia em condições de
criar uma nova concepção de vida.
Exigindo
o reajustamento de certos conceitos, terá que ser examinado à luz de aspectos
inteiramente novos.
Erros
de observação surgiram, como era natural. Ainda hoje se pensa, por exemplo, que
bandeirante é separatista quando a verdade é que, se há alguém impossibilitado
de o ser, é o bandeirante expansionista. Houve quem o julgasse anti-cristão,
quando cada bandeirante é um tipo de humildade e de crença em Deus. Também o
julgaram apenas um tipo histórico, quando se trata de um “tipo social” em nossa
formação. Nababo, quando viveu ele reduzido jà extrema pobreza, sem falar
naqueles que foram encontrados mortos, junto à riqueza sonhada. Inimigo dos
jesuítas, quando foi ele quem defendeu o jesuíta e o trouxe novamente para o
Planalto depois da expulsão; quando padre é uma figura obrigatória em todos os
róis de bandeira. Mandão, quando ele é um protetor da ordem nas zonas de
turbulência. Déspota, quando ele é o fundador de uma democracia obscura, mas
verdadeira.
Nada
mais injusto, pois, do que a incompreensão de certos jesuítas que o consideram,
sistematicamente, caçador de índio, quando o índio é, muita vez, o seu
principal comparsa, na obra da conquista.
11
Ora,
os padres não podiam impedir a guerra ao índio, pois toma parte na luta,
empregando a violência contra a violência.
“Mais
por temor do que por amor se hão de convencer”, diziam Anchieta e Nóbrega, em
momentos de pouca angelitude.
Nem
poderiam dizer que se horrorizavam com a crueldade do bandeirante, tomando um
pormenor como linha geral dos acontecimentos e esquecendo-se de adotar esse
mesmo método aos próprios sacerdotes. Isto é, quando julgavam os maus
sacerdotes (e estes existiram em grande número), desde aqueles que se pareciam
mais com demônios, na frase incisiva de Nóbrega, até alguns outros que viviam
no maior escândalo [11],
não aplicaram nunca o pormenor ao geral para concluir, apressadamente, que a
Igreja foi anticristã e imoral.
Então,
porque o Padre Matias Pinto envenenou o bandeirante João Leite da Silva Ortiz,
iremos concluir logo que todos os padres seriam do mesmo naipe? Conta-se o caso
dos irmãos Leme, mas não se conta o caso dos irmãos Gago...
Estes
irmãos Gago eram padres e viviam nas minas goianas “com a maior dissolução,
mandando açoitar e matar quem lhes parecesse”. [12]
O Padre José Rodrigues Prêto e o beneditino Frei Roberto são, muito antes
disso, responsabilizados pelo delito de cunhos falsos.[13]
Certo clérigo que Domingos Jorge Velho escolheu, e que desejava “ficar insento
da jurisdição dos vigários, sobre ser de vida desmanchada” na opinião do bispo
de Pernambuco (1697) “não sabia dizer a diferença entre atração e contrição”.
Muitos clérigos, traindo os mandamentos sagrados, bancavam catequistas dos
aborígenes com o intuito de lhes usurpar as terras. A provisão régia de 1716
alude ao fato, profligando a tal indústria de que alguns religiosos haviam
lançado mão, “de pedirem terras com o título de servir para os índios” quando o
seu verdadeiro intuito era “depois ficarem senhores destes chãos”. Há um
momento em que el-rei dá o estrilo e não quer saber mais de religiosos nas
minas, pois eles “só servem para perturbar e inquietar os seculares”. [14]
Se
fossemos, agora, transformar estes casos em regra geral, não cometeríamos a
mais dura injustiça contra missionários que exerceram uma atividade benéfica
nesse mundo cujo equilíbrio dependia tanto de coisas bem contraditórias?
O
mesmo se dá com os bandeirantes. Se os Leme foram terríveis, tal não acontece,
entretanto, com Pascoal Moreira, “homem extremamente caritativo que auxiliava e
servia a todos com o que tinha” revelando uma bondade de pomba num peito de
jaguar. O que parece justo, portanto, em face de tão expressiva paisagem humana
é que a contemplemos no inédito da sua totalidade e não apenas no exame
mesquinho de dois ou três pormenores que se perderam dentro dela como aparas ou
detritos de uma construção que nascia de um terremoto.
Se
este ou aquele recorreu à violência, a quase totalidade realiza a conquista
afeiçoando ao seu objetivo o material indômito que o mundo selvagem lhe
oferecia, numa sábia contemporização humana com as forças contrárias que sempre
procurava atrair, sem as destruir.
Não
se quer dizer que seria bom que assim fosse, ou como a gente queria que fosse;
muito menos que isto agrade a outros que desejariam assim não fosse.
O
que espanta é não terem os bandeirantes sido mais violentos do que foram.
12
Assim
sendo, de tudo quanto se disser, sem zanga, se poderá concluir que existem
erros graves de apreciação e de julgamento relativos à obra do bandeirante e à
sua “crueldade”.
Não
é justo que alimentemos tais equívocos. Já o costume de julgar uns pelos outros
não recomenda a nenhum espírito de justiça. No julgamento do Cristianismo não
se irá, por exemplo, reler apenas o drama da Inquisição e as “Terribilidades”
de Pombal.
Nem
a história da Igreja está encerrada na história da Companhia de Jesus; nem a
história da bandeira se resume no capítulo dos irmãos Leme ou da caça ao
silvícola.
O
julgamento, sem atenção ao meio selvático e à época em que se realizou o
fenômeno, é outro disparate. Dizer-se que o bandeirante foi cruel, sem
conhecimento da técnica por ele empregada na conquista, chega a ser um absurdo.
Acusá-lo de auri sacra fames quando
muitos morreram de fome, já não merece contradita porque chega a ser falta de
seriedade.
Dado,
entretanto, que ele tivesse sido cruel, essa “crueldade” teria sido mínima em confronto com outros capítulos
da crueldade humana, escritos pelos conquistadores da América espanhola, pelos
agentes da Santa Inquisição e por aquela “geração de índios bestial e feroz” de
que fala o jesuíta Aspilcueta Navarro e que quase trucidou a sociedade colonial.
E note-se: enquanto, na América espanhola, a conquista é puxada a canhão e
cavalaria, o bandeirante faz toda a conquista a pé e só se transforma em
cavaleiro no século XVIII, como só no século XVIII é que vai adotar, a rigor,
os batelões para transporte de suas bandeiras fluviais. A essa altura, porém,
já ele vai enfrentar o índio canoeiro e o índio cavaleiro; e o faz, como se
viu, em grande inferioridade de condições.
Enquanto
um Pizarro empregava a sua cavalaria contra os indígenas, os indígenas é que
empregavam a sua cavalaria contra os bandeirantes, na conquista do Oeste.
13
Para vencer o sertão “mais cruel e mais
ínvio do mundo”, o bandeirante foi o menos cruel dos conquistadores.
Mas, que tivesse sido
cruel – vá lá. Admitia-se, verbi gratia,
o argumento de Afrânio Peixoto.
Ao lado da “crueldade” que
ele pratica por mandato, não há como esquecer a que o sertão lhe impõe como já
se viu no capítulo “O Sertão na Economia da Bandeira”. [15]
O sertão é que é o grande
culpado.
O antagonismo, que se quer estabelecer
entre o bandeirante e o jesuíta, peca, como se vê, pela base. Não corresponde à
realidade histórica e social do Brasil. Não só o jesuíta foi bandeirante, como
também o bandeirante, muita vez, defendeu o jesuíta ardorosamente. Se é verdade
que Antônio Raposo Tavares se fez inimigo dos jesuítas, não é menos verdade que
Fernão Dias Pais foi o maior amigo deles. Além disso, se o bandeirante é
julgado bandido pelo jesuíta, por ter escravizado índio, ainda estará
defeituoso esse julgamento porque o jesuíta também escravizou índio nos seus
moinhos e nas suas lavouras, para depois preferir a escravização do negro.
Não é possível – aqui está outro ponto que
parece digno de meditação – adotar como único meio de exaltação do jesuíta a
condenação sistemática do bandeirante, como se aquele só pudesse ser exaltado à
custa deste, ao invés de o ser pela grandeza da obra que realizou e que ninguém
nega.
Nem
parecerá lógico censurar o bandeirante por faltas que o jesuíta também cometeu,
confessadamente.
Seja como for, a suposta crueldade e a luta
contra o jesuíta são também “causas” ou pelo menos condições da áspera avançada
conquistadora. Não foram mencionadas no § 19 de cap. I, por mais caberem aqui.
Realmente, o fato de serem cristãos não impediu os calções de couro de entrar
em luta com os jesuítas, por motivos já sabidos. E talvez tenha sido essa rixa,
desde logo iniciada, que os levou depois a não respeitar os jesuítas espanhóis
e sua reduções.
Se isso acontecia com os jesuítas
portugueses, por que deixariam em paz os espanhóis? Separando o espiritual do
temporal, isto é, a catequese do apresamento do índio, os fura-matos iam buscar
índios onde quer que os encontrassem, mesmo os mansos, no Guairá e no Tape.
Os viveiros de índios mansos que o
jesuíta cevou nas reduções passam a ser o alvo de muito assalto dos preadores;
a ser “focos de atração”.
A princípio o bandeirismo havia dado
“causa” à famosa rixa; mas depois a rixa, já insanável, já tornada hábito,
tornou-se “causa”, ou então “concausa”, da nenhuma cerimônia com que os “bandoleros de San Pablo” arrasam os
redutos jesuíticos espanhóis. Causa ou concausa, portanto, do bandeirismo.
O Bispo de Cardenas é contra os
jesuítas? Os preadores de bugre, que também são contra, aproveitam o ensejo
(1648) e vão fazer sua féria no Maracaju-Itati...
14
Quando tudo isso não fosse exato,
ainda assim parece que não há exemplo de nenhuma pátria que tivesse sido
fundada sem tais vicissitudes.
Nenhum bandeirante poderia dizer
conscientemente: olhe, vou ali fundar uma pátria, e já volto.
Fundar uma pátria, em meio do sertão,
não é coisa que se resolva previamente, mediante condições a observar, ou tudo
de acordo com os planos preestabelecidos. Não. Há um terremoto humano e surge
uma pátria.
Desde o primeiro momento estavam eles
lutando contra o pirata e contra o espanhol. O cacique Taiobá, aliado dos
espanhóis, ataca os paulistas logo em 1628. Durante certo período, os
bandeirantes não se convencem de que espanhóis e portugueses se acham sob o
mesmo governo, de mãos dadas; e protestam contra os tais de “villa riqua” [16] que vinham fazer negócio em terras que não eram suas.
A luta contra o espanhol e contra o
pirata teria que lhes incutir a idéia de pátria, por força.
Não se falando no caso de Amador
Bueno, quando os paulistas já queriam proclamar sua independência,
precipitadamente. E quando Amador Bueno da Veiga (já ao tempo das minas)
organiza a sua bandeira contra o emboaba, ele não o faz senão como “cabo maior
e defensor da pátria”.
(Embora “pátria” não tivesse, aí, a
significação mais ampla e complexa que tem hoje, terá a de torrão natal, terra
em que se mora; e não é de outro material que a pátria se forma).
Em qualquer hipótese, o bandeirante já
leva consigo mesmo uma rudimentar, mas viva, concepção de fronteira. É o caso
de “El Tuerto”, o célebre ituano,
invocando contra os espanhóis o direito de posse das terras [17] há muito trilhadas pela gente de Piratininga. É o de Pascoal Moreira, o
“bandeirante fronteiro” de M’Boitetu.
No mínimo, “trabalhando como os
artífices dos panos de rás, que não vêm o desenho e tecem pelo avesso (a
comparação é de Capistrano) os bandeirantes, mesmo sem o saber, estavam fazendo
o Brasil. 18]
15
Mas quem suplica aos paulistas que vão
“degolar” os bárbaros é Matias da Cunha, Governador-geral do Brasil; e quando, depois
do terrível revés sofrido pelos pernambucanos (eram 600, ficaram só 200)
comandados por Abreu Soares, Domingos Jorge Velho entra em ação, com
espetacular vitória, Matias o aplaude calorosamente “por haver degolado toda a
nação que ali estava”. Naquele tempo, degolar podia ser até um título oficial
de glória. Mas também, segundo um documento de 1677, os índios do Vale do S.
Francisco “haviam já desbaratado e degolado várias bandeiras paulistas”.
Não é de esquecer ainda que o Capão da
Traição e o esquartejamento de Felipe dos Santos, o tribuno do povo, fazem
empalidecer, em muito, o suposto banditismo do bandeirante.
O que assusta é, ao contrário, o
bandeirante não ter sido o bandido por necessidade que as contingências lhe
impunham. É o ele se ter havido – como conclui Jaime Cortesão – “com os padres
das missões, por via de regra, com um respeito, uma piedade, uma benevolência
de pasmar”.
É possível que o bandeirante seja
“bandido”, na dialética da fronteira. Também o será nesta ou naquela passagem
em que agiu por conta do agricultor, caçando bugre; ou por conta do próprio
sertão.
Banditismo maior, porém (porque
intelectual) será o de quem o chama de bandido, sistematicamente; ou por
sectarismo jesuítico póstumo, ou perversão daquilo que se chama “humildade
diante dos fatos”. Como se por efeito retroativo quisesse estabelecer um ajuste
de contas pessoal, numa questão histórica já encerrada.
E se quisermos trazer o caso para os
dias de hoje, que se dirá, então, dos indivíduos ou companhias de colonização que
ainda agora não hesitam em querer espoliar os nossos indígenas das terras que
lhes restam?
Sob vários aspectos, o banditismo
moderno será muito mais condenável.
16
Teve o homem de Piratininga, muita
vez, terra adentro, na sua “dinâmica da mudança”, e em termos de invasão e
competição, que descer a uma espécie de “ordem simbiótica” (infra-social) no
mais duro apego ao chão selvagem, ao “agro do sertão”, transformando-se em
“bicho do mato”, como o chamou certo capitão-general.
Quem tinha (é uma informação do inglês
Knivet) um sapo ou uma cobra pra comer considerava-se feliz...
Entrou o fura-mato pelas “gargantas”
pra vencer a geografia, e pelos vales úmidos, por causa dos plantios, na luta
ecológica da penetração e submissão do naturalismo geográfico ao seu desígnio.
Nessa invasão, além do que há de antropológico na mobilidade indígena – pois o
sertão lhe oferece o índio e, com o índio, o movimento, as técnicas, os
cargueiros vivos, a ciência dos caminhos – vai todo um processo social e
cultural.
Aprende ele a chupar raiz de
umbuzeiro, a roer sabugo de milho, a matar a sede num olho-d’água, a manejar a
flecha já que a arma de fogo nem sempre dá certo; se é escopeta, precisa de
mecha pra funcionar, se é mosquete só funciona daquele jeito – um segurando o
cano pra outro dar o tiro.
Mas a técnica, num sentido amplo, como
a de que se fala neste capítulo, é outra coisa; não consiste só em aceitar e
aproveitar os padrões de comportamento indígena e as suas técnicas para o
exercício cotidiano desses padrões; é antes o emprego de expedientes
persuasivos (fazer casar um dos da tropa com a filha do cacique, fingir que
sabe incendiar os rios, oferecer mimos à bugrada, etc.).
A técnica que ele leva e da qual aqui
se fala, consiste, antes, num conjunto de procedimentos táticos, numa
estratégia – a estratégia da penetração.
Parte a bandeira.
Ela é o Brasil por antecipação.
Leva o ímpeto que lhe fixará as
fronteiras, o sangue com que lhe fará o povoamento, a mobilidade com que o
tornará presente a si mesmo, a idéia de pátria com que o defende dos espanhóis,
a confraternização étnica que é a imagem de sua futura democracia social, os
lineamentos com que lhe há de marcar a estruturação política, o germe do self-government que há de florir na Independência.
17
Será o caso de perguntar de novo:
cruel, o bandeirante?
Cruel foi o fisco espoliador. Cruel o
emboaba – um Bento Amaral Coutinho; cruel Assumar, mandando esquartejar Felipe
dos Santos; cruel Rodrigo César, na trucidação dos irmãos Leme.
Cruel o sertão."
[1]Evaristo de Morais.
[2]
Serafim Leite, obra cit. II, 248.
[3]AURÉLIO PORTO (“História das Missões Orientais do Uruguai”, 1943) confirma o
que ao autor deste ensaio havia dito RODOLFO GARCIA: “Queria (Raposo) ser
recebido em paz e vinha procurar comida para seu exército”. Recebido à bala,
reagiu. Também JAIME CORTESÃO, que ainda não havia publicado a “A Lenda Negra e
a Lenda Branca” (“Introdução à História das Bandeiras”) vem depois concluir, no
tocante aos atos da suposta crueldade dos bandeirantes, o seu estudo do
seguinte modo: “1) Esses atos foram muito mais de ordem singular, praticados
por um ou outro bandeirante de ânimo feroz ou truculento do que generalizados à
maioria deles. 2) Com os padres das missões os bandeirantes se houveram, por
via de regra, com um respeito, uma piedade, uma benevolência de pasmar. 3) A
generalização de um ou outro ato condenável, o agravamento tendencioso dos
excessos, e a pura invenção de crimes, nos relatos dos jesuítas, veio a formar
a lenda negra sobre os bandeirantes. Quando e como?”
É a mesma conclusão a que o A. de “Marcha para Oeste”
havia chegado (vol. I, cap. VII, p. 233, 2ª. edição).
[4]Docs. Interessantess, vol. XXXIII, 50.
[5]Idem, vol. 133.
[6]Para R. COURTEVILLE, bandeirante e
bandido são a mesma coisa... (Le Mato Grosso”, p. 152).
[7]VASSCONCELOS, apud COUTO DE MAGALHÃES “O Selvagem”, p. 309.
[8]ALCIDE D’ORBIGNY, “Voyage au Centre de l’Amerique, 224.
[9]TAUNAY,
“Hist. Geral das Band. Paulistas”, I, p. 60.
[10]Atas,
tomo jII, p. 239.
[11]Docs. Ints. XXXII, 37.
[12]Idem, vol XXXIV, 160.
[13]BASÍLIO DE MAGALHÃES, obra cit., 318.
[14]Docs. Ints., vol. 51, p. 197.
[15]Observa PIERRE DEFFONTAINES, no seu “L’Homme
et la Forêt”, que o termo selvageria, salvaticus,
provém de sylvaticus. A floresta tem
ocasionado não só a miséria material como também a miséria moral. A
antropofagia, notadamente, não decorre, em geral, de uma extrema ferocidade,
mas é a resultante da penúria alimentar do meio selvático. É a floresta a
grande culpada. VIDAL DE LA BLACHE alude justamente à “opressão da floresta”. O
homem sucumbe sob a violência das energias vegetais. A mata faz o espírito
sombrio como ela. O homem da floresta (ARTUR ORLANDO, “Os Bandeirantes”, in Rev. Do Inst. Hist. De S. Paulo, vol
XIX, p. 136) não pode ter a mesma imaginação risonha que o da campina coberta
de relva ou do litoral movimentado pelo mar.
[16]Vila Rica, capital da região do Guairá, uma das maiores reduções de índios
Guarani (ou Carijó), atual território do Paraná, fundada por jesuítas espanhóis.
Nota do Autor.
[17]Nasceram eles, os bandeirantes, já com o sentimento de “fronteira”. E o que se
vê, por ex., quando precisam de índio (1572) para “correr as fronteiras”,
segundo a linguagem da época. No século XVI, essas fronteiras estão próximas da
vila, sem dúvida; mas atingem o máximo, indo até aos Andes, no século XVIII.
18]CAPISTRANO DE ABREU, apud Batista
Pereira, “A Cidade de Anchieta”, p. 83.
Depois do que acabamos de ler, nada mais precisa ser escrito.