Uma
das personalidades mais marcantes na história de minha família é a de Etelvina
Maria dos Santos, mais conhecida como Vó Etelvina. Ela pertenceu à categoria
das mulheres fortes, tão comuns nos confins das Minas Gerais do século XIX, em
particular na região do Campo Grande, o território à esquerda do alto rio São
Francisco, desbravado na segunda metade do século anterior. Sua figura não chegou
a se ombrear a uma Dona Joaquina do Pompéu, muito menos a uma Dona Beja e, mais
distante ainda, a uma Chica da Silva, mas, em se tratando da microrregião do
Alto São Francisco, um território bem mais modesto se comparado ao daqueles
onde viveram estas outras grandes mulheres, nas suas devidas proporções, foi
ela uma dessas figuras femininas corajosas, esteios de famílias, de pulsos
firmes, que sabiam comandar seus negócios, da mesma forma que sabiam distribuir
atenção e carinho a todos, sejam familiares, amigos ou conhecidos.
Cresci
ouvindo meu pai falar em Vó Etelvina e este nome não mais saiu de minhas
fantasias infantis. Ela era uma dessas espécies de matriarcas, que a todos
ajudava e a todos queria ao seu redor. Criou tanto seus filhos, como vários de
seus netos e até alguns bisnetos, ora em sua Fazenda dos Cocais, ora em sua
casa em Dores do Indaiá. Esta era situada à Praça São Sebastião, esquina de Rua
Rio de Janeiro, defronte à antiga Igreja de São Sebastião, núcleo onde nasceu e
cresceu Dores do Indaiá. Lembro-me, por volta de meus cinco para seis anos,
passar em frente à casa, então ainda existente, e ouvir meus tios e minha avó
falar sobre a vivenda de tão gratas memórias a todos. Etelvina nos deixou em 1942 e, nesta ocasião, 1949/50, a
casa já não pertencia mais à família.
Etelvina
tornou-se uma mulher lendária para nossos familiares, principalmente para
alguns, que, como eu, não a conheceram. Apesar de pertencer à grande família
Fiúza de Dores do Indaiá e da região do Alto São Francisco, seu verdadeiro nome
gera controvérsias. Encontramos o nome Etelvina Maria dos Santos em algumas certidões
cartoriais. O nome Etelvina Angélica dos Santos é encontrado na árvore
genealógica elaborada pelo Sr. Jean-Pierre Longueteau. O Santos veio de sua avó
paterna, Maria Delfina dos Santos, esta nascida em Dores, em 1810. Encontramos
também referências ao nome Etelvina Fiúza em livros sobre a História de Dores
do Indaiá, do prof. Waldemar de Almeida Barbosa.
A
origem da família Fiúza tem descrições genealógicas conflitantes. Pesquisando
duas versões diferentes dessa genealogia, uma realizada por Jean-Pierre Longueteau,
francês, casado com uma dorense, Maria Elizabeth de Castro Longueteau, descendente
do Capitão Amaro da Costa Guimarães, um dos fundadores do Arraial de Nossa
Senhora das Dores (o primitivo nome do lugar), em 1798, e comparando-a com a
genealogia publicada pelo prof. Rubens Fiúza em seu livro Do São Francisco ao Indaiá – História e Estórias de Dores do Indaiá (2003),
vêem-se claramente profundas divergências. Longueteau, um estudioso de
genealogia, fez pesquisas em cartórios de Dores do Indaiá e de Pitangui, portanto,
suas informações têm mais peso e valor histórico. O prof. Rubens Fiúza se
baseou em relatos orais e, depois, escritos, mas sem comprovação cartorial,
feitos por um único descendente da família Fiúza, natural de Recife,
Pernambuco, e, posteriormente, residente no Rio de Janeiro.
Vamos,
inicialmente, fazer uma breve exposição dos dados encontrados por Longueteau,
que teve o cuidado de construir uma árvore genealógica dos Fiúza por ele
pesquisados e repassada para meu primo Paulo Ribeiro de Andrade, neto de Etelvina,
filho de João Ribeiro Coelho, já falecido e filho caçula da matriarca. Paulo é
residente em Dores do Indaiá, onde é empresário no ramo de posto de gasolina e,
como eu, um amante da história. Teve a amável gentileza de, a meu pedido,
enviar-me esta árvore. Vamos ao que ela nos diz.
Etelvina
Maria dos Santos nasceu em Dores do Indaiá, em 1858, em data incerta (foi
batizada em 25 de dezembro desse mesmo ano). Seus pais eram Herculano Pinto
Fiúza (1831-1887), o velho, mais conhecido como Dolor, e Maria Vieira Fiúza
(1835-?), ambos nascidos em Dores. O casamento de seus pais se deu em 1855, em
Dores do Indaiá. Portanto, Etelvina nasceu três anos após a união de seus pais.
Era filha única do casal. Seus avós paternos eram Ricardo Pinto Fiúza, o velho
(1808-1861), e Maria Delfina dos Santos (1810-?), ambos também nascidos em Dores
do Indaiá. Consta que Maria Delfina teria sido fiadeira e não temos notícias de seus
ancestrais.
Ricardo
Pinto Fiúza era filho de Domingos Pinto Coelho Sobrinho, lavrador, nascido em
1775, em Pitangui, e falecido em Dores do Indaiá em nove de outubro de 1835. Em
1803, Domingos casou-se com Ana Angélica (Epifânia) Fiúza, em Pitangui. Ela faleceu em
Dores do Indaiá em dois de junho de 1845, constando também ter sido fiadeira.
Os pais de Ana Angélica foram: José Borges de Almeida, nascido em data
desconhecida, natural de São Salvador de Roge, região do Porto, Portugal, que
emigrou para o Brasil, tendo se estabelecido em São José del Rei, atual
Tiradentes, Minas Gerais, e Maria José Fiúza. Em 1778, José casou-se em São José del Rei com Maria José Fiúza,
nascida em 1762, em Conceição do Mato Dentro, Minas Gerais. Os pais de José
Borges de Almeida também eram de São Salvador de Roge. Seu pai foi Francisco
Jorge, nascido em 1725, e sua mãe foi Mariana Borges de Almeida. Ambos se
casaram nesta cidade, em 1750. Os pais de Maria José também eram portugueses. O
pai, Geraldo de Azevedo Fiúza, era natural de Paços de Brandão, Portugal, e
emigrou para o Brasil, onde se casou com Rosa Gomes de Brito, em Itambé do Mato
Dentro, em data desconhecida. Os pais de Geraldo de Azevedo Fiúza foram Geraldo
Fiúza Vaz e Bernarda de Azevedo, ambos naturais de Paços de Brandão, Portugal.
Igreja de Passos do Brandão - Santa Maria da Feira -
Aveiro - Região do Porto - Portugal
|
Voltando
a Domingos Pinto Coelho Sobrinho, bisavô de Etelvina, seus pais eram Antônio
Pinto Coelho, nascido em 21 de agosto de 1735, em Vila Maior – Santa Maria de
Feira, Portugal, falecido no Arraial da Saúde (capitania de Minas Gerais), em
30 de março de 1807, e Maria Joaquina Pinto Coelho, nascida em local
indeterminado, em 1740, na capitania de Minas Gerais. Casaram-se em Pitangui,
em 1765. Dela não temos notícia dos ancestrais. O pai de Antônio Pinto Coelho,
portanto, tetravô de Etelvina, foi Manuel Coelho, nascido em 1680, em Vila
Maior – Santa Maria de Feira, Portugal, onde se casou, em 19 de fevereiro de
1719, na mesma localidade, com Joana Coelho, nascida em 14 de abril de 1692, na
Freguesia da Vila Maior, bispado do Porto, Portugal. O pai de Manuel Coelho,
pentavô de Etelvina, também tinha o mesmo nome, Manuel Coelho, e nasceu em
1630, em Vila Maior – Santa Maria de Feira, Portugal e faleceu em Fiães, Santa
Maria de Feira. Sua mãe foi Maria da Morza, nascida em 1635, em Fiães, Santa
Maria de Feira, Portugal, e falecida em data incerta. O casamento de Manuel
Coelho e Maria da Morza se deu em 1660, em Fiães, Santa Maria de Feira,
Portugal.
Castelo de Santa Maria de Feira, Aveiro. Região do Porto. Portugal. |
Com
este acurado estudo, Longueteau conseguiu chegar a seis gerações de antepassados
de Etelvina Maria dos Santos. Vê-se que seus ancestrais são originários do
norte de Portugal, mais exatamente da região do Porto. Sabe-se que mais de 80%
da emigração portuguesa para o Brasil era constituída de pessoas do norte do
País, que vinham em busca de melhores oportunidades de trabalho e melhores
condições de vida. Não há relato de uma possível ascendência judaica nessa
genealogia de Longueteau, mas é sabido que os judeus eram bastante encontrados
na região norte de Portugal. Era uma região mais progressista, de comércio possante, com a indústria dando seus primeiros passos rumo ao
desenvolvimentismo, daí a preferência dos hebreus pela região. Hoje, com os
estudos de DNA em populações, tem sido descoberta uma ampla porcentagem de
ascendência hebraica entre o povo lusitano. Nas regiões do norte, encontramos
algo em torno de 20% da população que revela ascendência hebraica. Ao sul, em
função de uma concentração maior de judeus em fuga da Inquisição, por demais
severa no norte, alguns estudos têm encontrado cifras que chegam aos 35% de
sangue hebraico entre o povo do Algarve.
Como
veremos a seguir, passado o período dos Descobrimentos, Portugal entrou em
franco declínio econômico e financeiro, em função de políticas econômicas
desastrosas e uma metodologia de colonização da América lusitana totalmente
inadequada para os tempos em que a Europa vivia. Enquanto a América do Norte
era colonizada por ingleses e franceses num sistema de distribuição de pequenas
glebas de terras para cada família, que assim tinha melhores condições de
explorar as riquezas de seu solo, a América lusitana continuou adotando o velho
método de distribuição de capitanias hereditárias e sesmarias, que fora bem
sucedido na colonização das ilhas do Atlântico e alguns territórios no Oriente.
Entretanto, no Brasil, essas terras eram, na maioria das vezes, improdutivas,
tanto pela sua imensidão, o que tornava o trabalho quase sobre-humano para que tais
terras pudessem ser devidamente exploradas quanto, muitas vezes, pela ausência
física de seus donatários e sesmeiros, que não se dignavam a enfrentar uma
terra desconhecida e selvagem. Isso para não falar na ainda mais desastrosa
política de expulsão do povo judeu do território português, quando se sabe que ele
era a fonte do dinheiro para o financiamento dos empreendimentos que levariam
ao progresso e ao desenvolvimento da nação.
A
outra genealogia foi descrita pelo prof. Rubens Fiúza, primo em terceiro grau
de Etelvina. Conhecido escritor e cronista dorense, autor de alguns livros
sobre a formação histórica de Dores do Indaiá e região do Alto São Francisco, o
relato feito por ele das origens da família Fiúza chega à Antiguidade. De
acordo com seu relato no já citado livro Do
São Francisco ao Indaiá – História e Estórias de Dores do Indaiá (2003), em
suas andanças pelo País, fazendo palestras, conheceu em Recife, Pernambuco, um
médico e industrial pernambucano, aficionado por genealogia, que lhe passou
todas as informações que ele havia descoberto sobre a família Fiúza. Seu nome
era Antônio Fiúza de Castro e, tendo atingido a maturidade, dispondo de um bom
cabedal, deixou a medicina e a atividade de industrial no ramo de pré-moldados
de cimento, para se dedicar exclusivamente a viajar pelo mundo e a descobrir as
origens de seus ancestrais. Posteriormente, veio a residir no Rio de Janeiro,
onde ambos mantiveram mais contatos sobre este tema.
Segundo
o Dr. Antônio Fiúza de Castro, os Fiúza têm origem em uma aldeia da Galiléia, em território hoje situado no sul da Síria, no primeiro século a.C., onde
havia um velho clã de negociantes de camelos, cujo sobrenome era Lahabim ou Lahabin. Um membro deste clã teria se mudado para Jerusalém e convertera-se
ao judaísmo, formando uma numerosa família de comerciantes. Poderia se dizer que
já eram ricos nesse período. Como é sobejamente conhecido pela História, esta
foi uma época excepcionalmente perturbada na vida do povo judeu. Diversas
rebeliões surgiam periodicamente contra os invasores romanos, então os senhores
do mundo antigo. Cansados do desgaste contínuo no combate aos rebeldes judeus,
o que acarretava grandes prejuízos para o Império, o imperador Vespasiano, no
ano 69 de nossa era, invadiu Jerusalém promovendo grandes destruições e massacres. No ano seguinte, seu filho Tito, então imperador em decorrência da
morte do pai, viu-se às voltas com novas rebeliões sangrentas. Decidido a dar
cabo de vez com aquela interminável insubordinação, Tito novamente invadiu
Jerusalém e destruiu o que restava intacto. Queimou a cidade, em particular o
Templo de Salomão, quando os soldados romanos chegaram a atirar grandes blocos
de pedras do alto do muro do templo, até vários metros abaixo, para que “não
sobrasse pedra sobre pedra”. Os judeus que não conseguiram fugir da cidade
foram passados ao fio da espada. Assim, no ano 70 da era cristã, os judeus
remanescentes se espalharam pelos quatro cantos do mundo, dando origem à Diáspora, fenômeno que traz importantes
consequências para a Humanidade até os dias atuais.
Monte Tabor, ao lado esquerdo (sentido oeste-leste) do Vale de Jezreel. Local da transubstanciação de Jesus de Nazaré. Foto: Enciclopédia Mirador Internacional, 1985. |
Entre
os emigrados estariam membros da família Lahabim que se teriam se estabelecido na ilha
grega de Naxos. Ali se tornariam grandes armadores, especializados na construção
de pequenos navios e na comercialização e exportação de vinhos. Algum tempo
depois (não foi precisada a data), alguns dos filhos do velho Lahabim teriam emigrado para a Itália, quando o Império Romano já estava no fim. Ali, teriam passado a
representar os negócios do pai no comércio de vinho e no serviço de navegação.
Teriam ficado tão ricos, que, mais tarde, ampliaram seus negócios para o empréstimo
de dinheiro, isto é, teriam se tornado grandes usurários, numa época em que não
existiam os bancos. Esta atividade sempre foi uma das especialidades do povo
hebreu pelo mundo afora. Também trabalhavam com o sistema de casas de penhor.
Teriam ficado muito conhecidos em todo o território italiano, de norte a sul.
Supostamente, emprestavam dinheiro, ou faziam penhores, na base da confiança
recíproca entre o cliente e o comerciante. A palavra latina para confiança é fidúcia. Com o correr dos séculos houve
a corruptela do nome latino de fidúcia para fiuzza,
significando a mesma coisa, isto é, confiança. Surgiram as Case di Fiúzza, o mesmo que Casas
de Confiança. Nova corruptela do nome e ficou Case di Fiúza. Assim, os Lahabim, ao se tornarem extremamente
populares, numa época, como afirmamos, em que não existiam os bancos, tal como
hoje os conhecemos, passariam a ser conhecidos como os Fiúza, por sua própria
iniciativa, e numa forma de se proteger da perseguição antissemita, utilizando
nomes próprios do país de adoção.
Ilha de Naxos, Grécia. |
Estas
Case di Fiúza, já no Renascimento e em território dos Países Baixos, deram
origem aos modernos bancos e casas de penhores e de câmbio. Os agora Fiúza
teriam mantido a velha tradição hebraica de maestria nos negócios, no comércio, no
mercado financeiro e monetário. Na Baixa Idade Média, as cidades-estado italianas
se envolveram em disputas ferrenhas em torno de mercados e comércio, disputas essas
que, com frequência, se tornavam guerras. Teriam decidido, assim, emigrar mais uma
vez, agora para a Península Ibérica. Os reinos da Espanha e Portugal os teriam recebido muito bem, pois, tanto a monarquia como o povo, precisava de
empréstimos e o dinheiro judeu era bem-vindo, pois trazia progresso e
desenvolvimento.
Ruina de templo em Naxos. |
Os países ibéricos estavam envolvidos totalmente na guerra
contra os mouros, invasores de seu território desde 711. A ajuda financeira
dos judeus foi essencial no sucesso desta grande empreitada. Os judeus viveram
seu período de ouro, desde os tempos bíblicos, na Baixa Idade Média e início do
Renascimento, na Península Ibérica, por eles denominada de Sefarad, que em hebraico significa terra prometida. Entretanto, com uma devastadora frequência, eram vítimas
de perseguições, calúnias, difamações e injúrias por parte do populacho
ignorante, insuflado por alas invejosas e radicais da Igreja, que não
suportavam seu sucesso financeiro e comercial. Apesar do apoio das respectivas
Coroas e de grande parte da nobreza da Espanha e Portugal, a Inquisição, que
tivera seu início em 1211, aumentava cada vez mais os ataques violentos contra
o povo judeu.
Presença de judeus, árabes e moçárabes, com suas respectivas
línguas, na Península Ibérica.
|
Foram sucessivos pogroms
(ataques e destruição em massa contra os bens e a vida de um povo, seja judeu,
protestante, eslavo ou outra minoria étnica). Foram descritos também diversos
holocaustos na Inglaterra, Alemanha, França e, mais tarde, na Península Ibérica.
Tudo culminou com a dramática expulsão dos judeus da Espanha em 1492, pelos Reis
Católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela. Cinco anos depois, foi a vez de Portugal promover
sua deportação em massa, promovida pelo rei D. Manuel I (O Venturoso), já que
para se casar com sua noiva Isabel, filha dos Reis Católicos, lhe foi imposta
esta execrável condição, ou seja, ele só poderia se casar com sua noiva caso
expulsasse os judeus do território lusitano. Os Reis Católicos sabiam que D. Manuel pensava diferente, era amigo dos judeus e tinha consciência da importância do povo hebreu para a economia portuguesa. Mas a pressão espanhola foi demais para o fraco monarca. A contragosto, o rei português expulsou os judeus de seu país, em 1497. Mas, antes havia tentado uma conversão em massa deste povo em todo o país, criando a figura do cristão-novo,
isto é, o converso do judaísmo (ou islamismo) para o cristianismo. Havia sido um jeitinho que encontrara para tapear seus futuros sogros e manter os judeus em Portugal. Milhares de judeus tiveram como única solução a conversão, para não serem expulsos, ou serem pegos
pelas teias da Inquisição, cujo final era a fogueira. Outros milhares foram obrigados a fugir, usando dos recursos que podiam angariar, notadamente disfarçados e embarcados em navios comerciais ou naves clandestinas.
Expulsão dos judeus da Espanha, em 1492.
Michaly Von Zichy, 1880.
|
Expulsão dos judeus de Portugal em 1497. |
Grande parte dos
cristãos-novos que ficou em Portugal manteve a fé judaica em segredo, no recesso de seus lares. Daí a
desconfiança generalizada dos portugueses em relação a eles. Os judeus eram
também conhecidos como povo da Nação
e marranos, esta última, uma palavra
que pode ter um duplo sentido: a- desde a Idade Média a palavra significa suíno (segundo o historiador Cecil
Roth), uma referência injuriosa, ofensiva, que revela o profundo ódio e desprezo
dos ibéricos para com os judeus; b- a
palavra poderia vir da expressão judaica mar anuss,
isto é, convertido à força. Esta
segunda hipótese não é levada a sério, pois era desconhecida dos próprios
judeus.
Moshe Maimon (1893). Marranos. Retrata o Sêder de Pessach
realizado secretamente na Espanha, à época da Inquisição
|
Os Fiúza, como os demais judeus, teriam fugido da Espanha e se dirigido para a África do Norte, a França, a Holanda, a Inglaterra, a Alemanha e para Portugal. De se notar que a grande maioria dos Fiúza teria migrado para Portugal, mas
tivera que migrar novamente com a onda de perseguições que se seguiu a 1497. A
Holanda foi seu destino de preferência. Ali havia liberdade de credo religioso,
respeito, tolerância e liberdade para o exercício de suas profissões, ligadas
não somente ao comércio e às finanças, mas principalmente ao mundo intelectual.
Os Fiúza, como todo o povo judeu, tinham uma educação esmerada. A
intelectualidade européia na época, à exceção da hierarquia da Igreja
Católica, era composta por judeus: geógrafos, cosmógrafos, matemáticos,
astrônomos, arquitetos, engenheiros, médicos, juristas, químicos, professores, etc. Muitos
dos Fiúza teriam continuado a ser armadores e banqueiros, mas muitos outros
tornar-se-iam geógrafos e navegadores. Com isso, teriam participado da nova Era dos
Descobrimentos.
União de Utrecht, dos Países Baixos. 1579.
|
A Holanda, nos séculos XVI e XVII, desenvolveu a tal
ponto o nascente capitalismo burguês, que, além do progresso e desenvolvimento
extraordinários para seu país, criou as raízes bancárias do sistema capitalista
moderno. Os Fiúza teriam participado na fundação da Companhia dos Diamantes, futuro núcleo do truste internacional de pedras
preciosas, notadamente ouro e diamantes, que até hoje é dominado pelo cartel
judaico anglo-holandês. Teriam mantido grandes negócios com a Itália e com o
Brasil, a grande terra incognita do
Novo Mundo. Sua sede hoje está na África do Sul, mas o Brasil continua um
importante elo desta corrente que tem o seu forte no eixo Nova
Iorque-Londres-Amsterdã.
Guilherme, o Taciturno. |
A Espanha, há séculos, perseguia a hegemonia na Península
Ibérica. Em 1148, Portugal tornara-se independente de Castela e Leão e desde
então escaramuças maiores ou menores com frequência azedavam as relações entre
os dois países. O domínio espanhol sobre Portugal só ocorreu no final do século
XVI quando o rei português, D. Sebastião, morreu na desastrosa campanha contra
os mouros de África, na histórica batalha de Alcácer-Quibir. Era o ano de 1578
e o último rei da dinastia de Avis morria sem deixar herdeiros. Seu tio, e único
sobrevivente desta dinastia, o cardeal dom Henrique, assumiu a regência, mas
morreu apenas dois anos depois. O rei da Espanha, Felipe II, da mesma linhagem
familiar, achou-se no direito de ocupar o trono português e invadiu Portugal. O
domínio espanhol sobre a terra lusa durou 60 anos, de 1580 a 1640
Portugal tinha boas relações comerciais com a Holanda,
principalmente por que esta, através de grandes banqueiros e comerciantes
judeus, financiava a produção de açúcar brasileiro. O Brasil era, então, o
maior produtor mundial. Porém, a Espanha tinha por objetivo dominar o
território dos Países Baixos, o norte, onde havia forte influência protestante,
e o sul, onde predominavam os católicos, já que o comércio de mercadorias
naquela região poderia fornecer aos cofres da Coroa espanhola o dinheiro que o
Império necessitava. A Espanha invadiu toda a região, dominando principalmente
os territórios ao sul e parte dos do norte. Mas a guerra coincidiu com a
revolta protestante contra a Igreja Católica Romana e seu corolário, de então,
a Inquisição. O calvinismo foi conquistando cada vez mais corações e mentes em
todos os territórios dos Países Baixos. A revolta contra os espanhóis foi
aumentando e recrudesceu após a invasão castelhana coordenada pelo Duque de
Alba (Fernando Alvarez de Toledo). Sua excessiva repressão contra os revoltosos
gerou uma reação ainda mais violenta, comandada por Guilherme I, o Silencioso, ou Taciturno, príncipe de Orange, um dos
mais importantes nobres da região. As diversas regiões foram caindo, uma a uma,
em mãos dos revoltosos, com a expulsão dos espanhóis. Em 1579 formou-se a União
de Utrecht, uma aliança anti-espanhola, da qual participavam todas as regiões do
norte e parte dos do sul dos Países Baixos. Em 1581, foi criada a República das
Províncias Unidas, englobando sete províncias dos Países Baixos (Frísia, Groningen, Güeldres, Holanda, Overijssel, Utrecht e Zelândia). Esta aliança dividiu os Países Baixos entre os
territórios protestantes do Norte o os territórios de maioria católica do Sul,
dando origem, respectivamente, algum tempo depois, à Holanda (mas que manteve
uma forte presença católica) e à Bélgica. A guerra perdurou ainda por mais
alguns anos, com a Espanha recuperando parte do território perdido. Entretanto,
em 1588, a Espanha entrou em uma aventura desastrosa, quando a sua Armada Invencível enfrentou a marinha
britânica no Canal da Mancha, sendo inapelavelmente derrotada pela tempestade e
pelo melhor preparo da marinha inglesa. A partir daí começou a derrocada do
Império espanhol em todo o mundo.
A reação holandesa não tardou e concentrou seus esforços
em dominar o comércio no Ocidente e Oriente. Foram então fundadas as Companhias
das Índias Orientais (em 1602) e, em decorrência de seu grande sucesso, a
Companhia das Índias Ocidentais (em 1621). O Brasil estava na mira desta última
e os judeus foram os principais financiadores das expedições holandesas, não
somente para a obtenção do lucro, mas, e principalmente, como vingança pelas
atrocidades sofridas quando viviam na Península Ibérica. Os holandeses terminaram
por conquistar grande fatia do litoral do Nordeste do Brasil. Uma primeira
tentativa de conquistar Salvador, em 1624, fracassou. Mas a segunda, em 1630,
foi um sucesso, mais ao norte, e conquistaram Recife e Olinda, em Pernambuco.
O Brasil holandês (1530-1654). |
Foi nomeado governador dessa região brasileira o conde
João Maurício de Nassau. Quando aportou em Recife, em 1637, trouxe uma grande
quantidade de judeus que, futuramente, prestariam serviços relevantes ao
desenvolvimento da região. Os hebreus financiaram a administração eficiente da
produção açucareira mantendo um bom relacionamento com os senhores de engenho
da região. Muitos desses hebreus financiaram a compra de escravos negros de
Angola e vários eram proprietários de navios para esse transporte. Naquela
época não havia os conceitos de direitos civis e liberdade que começaram em
fins do século XVIII e se consolidaram somente no século XIX. Assim, o tráfico
negreiro era, não somente, aceitável como moralmente incentivado por todas as
religiões e por todos os governos. Caso não houvesse a presença do escravo
negro nas colônias, a sua exploração comercial tornar-se-ia completamente
inviável. Os judeus tiveram uma participação ativa nesse tráfico e, apesar de
hoje ser uma atividade totalmente condenável, é preciso que se veja a questão
dentro do contexto histórico do período. Aliás, a escravidão era uma tradição
em todos os países desde a Antiguidade, mesmos naqueles de fé cristã. Até o papado
não condenava a escravidão até fins de século XVII. Considero a escravidão um
dos episódios mais dolorosos e cruéis na história da Humanidade. Entretanto, entendo
que os tempos eram outros, a filosofia de vida era completamente diferente da
dos dias atuais. Os costumes, a moral e os princípios religiosos aceitavam a
servidão ou a escravatura como uma necessidade criada por Deus. Eram poucos os
que tinham convicção de que os negros, os índios, ou qualquer outro povo
bárbaro, pudesse ter uma alma como a dos europeus civilizados. Felizmente
esses conceitos pertencem ao passado.
Conde Maurício-Nassau, de Orange.
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Com Maurício de Nassau, teriam vindo os três irmãos Fiúza, funcionários
da Companhia das Índias Ocidentais: Ricardo Fiúza da Costa, Felipe Fiúza da
Costa e Jacinto Fiúza da Costa. Os três teriam dado origem a todos os Fiúza
brasileiros, de Norte a Sul do País. Um quarto irmão Fiúza teria optado pelas
Antilhas, onde adquiriu terras em Barbados e se tornou um dos maiores
exportadores mundiais de açúcar. Todos
teriam sido filhos do judeu português Ebenezer Fiúza da Costa, que havia migrado para
a Holanda alguns anos antes, fugindo da Inquisição. Maurício de Nassau era
calvinista, mas, sendo um homem erudito, interessava-se pelas ciências e pelas
artes. Daí ter-se cercado de um seleto grupo de cientistas, arquitetos,
engenheiros, pintores, médicos e outros profissionais importantes na reconstrução
de uma colônia. Permitiu a liberdade de culto entre holandeses, franceses,
italianos, belgas, alemães, flamengos e judeus. Estes, oriundos da Península
Ibérica e do norte europeu, foram atraídos para a Nova Holanda, dado o clima de
tolerância religiosa, que não havia na Europa, exceto nos Países Baixos. Em
Recife, foi fundada a primeira sinagoga de todas as Américas. Muitos desses judeus de Recife, após a derrota holandesa para os portugueses, migraram para a Nova Amsterdã, na ilha de Manhattan, atual Nova Yorque. Até hoje participam do domínio mundial do mercado de pedras preciosas e ouro, além de sua enorme influência no mercado financeiro internacional.
A Restauração. Proclamação de D. João IV, como o primeiro
rei da Dinastia de Bragança. Pintado por Veloso Salgado.
Museu Militar de Lisboa.
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Na Península Ibérica, em 1640, após batalhas em que os
portugueses venceram os espanhóis, houve a restauração da Coroa portuguesa,
tendo assumido o trono o duque de Bragança, sob o nome de D. João IV. Assim
teve início a dinastia de Bragança. Foram expendidos, então, grandes esforços
na luta contra os holandeses no Nordeste brasileiro. Os portugueses estavam com
sua economia sufocada em função do domínio holandês no Nordeste. Todo o
comércio de açúcar do Nordeste para a Europa estava nas mãos dos batavos. O
Nordeste era de longe o principal produtor de açúcar no Brasil, já que as
terras ao sul do Rio de Janeiro não eram boas para a plantação da cana. Além do
mais, os holandeses haviam tomado Angola, em particular, Luanda, o principal porto
fornecedor da mão de obra escrava negra para todo o Novo Mundo e para a Europa.
A situação financeira da Coroa portuguesa era desesperadora. Daí terem
redobrado os esforços de guerra contra os holandeses. Para isso, tiveram a
colaboração da Inglaterra, rival dos holandeses no comércio naval, e que há
séculos era uma tradicional aliada dos portugueses. Lisboa era um verdadeiro
entreposto inglês na ponta mais ocidental da Europa, uma região estratégica. Na
luta contra os holandeses, além da participação de tropas indígenas tupis,
comandadas por Felipe Camarão, houve a importante participação de um verdadeiro
exército negro comandado por Henrique Dias. Mas, não se pode desprezar a
decisiva contribuição das tropas vindas do sul, a pedido do Rei, compostas por
experientes bandeirantes e sertanistas paulistas. Muitas dessas tropas subiram
por dentro do território brasileiro, já conhecido por esses audazes
desbravadores, passando pelo território que, mais tarde, viria a ser Minas
Gerais. Seguiram a rota do rio São Francisco, já conhecida desde o século XVI.
Em 1654, os holandeses já enfraquecidos por lutas em diversas
frentes, foram expulsos do Brasil. Os irmãos Fiúza teriam decidido permanecer por
aqui. Para todos os efeitos, eram cristãos-novos e essa condição no Brasil era
muito melhor tolerada do que em Portugal. A bem da verdade, para o povo pouco
importava o antepassado religioso de alguém. Desde que fosse trabalhador e útil
nas atividades da colônia, seria tratado como se fosse um cristão-velho. Menos
os jesuítas e a hierarquia da Igreja no Brasil. Ricardo Fiúza da Costa
teria permanecido no Recife, onde montou uma indústria textil em escala artesanal, com
o auxílio da mão-de-obra escrava. Seus descendentes até hoje moram na região e
em outras partes do País, e continuam a trabalhar no mesmo ramo. Felipe Fiúza
da Costa teria ido para o Ceará, onde fundou fazenda de gado e gerou grande
descendência. Jacinto Fiúza da Costa teria emigrado para o sul. Estabeleceu-se em
Santos, onde adquiriu um engenho de açúcar. Teria tido também grande descendência ao
se amancebar com diversas índias de origem tupi, tamaraica e outras etnias.
Entradas e bandeiras em Minas Gerais. Fonte: João Camillo de Oliveira Torres.
História da Capitania de Minas Gerais. Vol. I, 1978.
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Segundo Rubens Fiúza, em relato não corroborado por
outros historiadores mineiros, Jacinto Fiúza da Costa foi picado pela mosca
azul do sertanismo e bandeirismo, só que seu interesse não era o aprisionamento
de índios, e sim a busca pelo ouro e diamantes. Três de seus filhos com uma
índia tamaraica, os “irmãos Jorge” (João Jorge Fiúza da Costa, Salvador Jorge
Fiúza da Costa e Miguel Jorge Fiúza da Costa), mamelucos, teriam se embrenhado pelos
sertões das futuras Minas Gerais, e foram dos primeiros desbravadores da região
do Campo Grande, na margem esquerda do Alto São Francisco. Em episódio
historicamente não comprovado, todos eles teriam sido trucidados pelos índios
caiapós da região, em represália pelo furto de algumas belas índias dessa
etnia, o que era considerado uma grande afronta para qualquer tribo indígena,
quando a bandeira de Bartolomeu Bueno da Silva, o velho, conhecido como o Anhanguera, passou pela região, em 1682,
demandando o território de Goiás, onde se esperava encontrar muito ouro.
Relata ainda Rubens Fiúza, que um filho de Jacinto Fiúza
da Costa, homônimo do pai, havia se mudado para Vila Rica em meados do século
XVII. Quando se consulta os principais historiadores da capitania de Minas
Gerais, verifica-se que é unânime a descrição de que os primeiros achados de
ouro nessa região datam da oitava ou nona décadas do século XVII (mais
precisamente, entre 1693 e 1698). Logo, os primeiros povoados começaram a
surgir em volta das lavras auríferas nas margens de riachos ou nas encostas
próximas. A fundação de Vila Rica e Mariana data de 1711, o que entra em choque
com as afirmações de Rubens Fiúza, pois este diz que Jacinto ali residia há
mais de cinquenta anos. Relata ainda o autor dorense, que um filho deste
Jacinto Fiúza da Costa, o moço, chamado Jacinto Fiúza de Almeida, já se
encontrava morando nas proximidades de Pitangui (duas léguas), num sítio
denominado de São João, desde 1670. Outro fato não corroborado por
pesquisadores e historiadores antigos e contemporâneos. Ora, Pitangui foi um
dos últimos grandes sítios auríferos a serem descobertos na capitania de Minas
Gerais. Isso ocorreria na primeira década do século XVIII. A Vila de Pitangui
seria fundada em 1715, poucos anos após a descoberta do ouro em sua região. É
muito improvável que esse personagem ali vivesse há, pelo menos, trinta anos antes
das primeiras descobertas de ouro em Pitangui e sessenta anos antes das
descobertas de diamante em território mais ao norte. Seria este Jacinto Fiúza
de Almeida um contrabandista de diamantes e fornecedor de pedras para o cartel
judaico de Amsterdã. Não sabemos quanto de fantasia e realidade existe nessas
afirmações. De qualquer forma, este Jacinto Fiúza de Almeida seria o ancestral
de todos os Fiúza originários de Dores do Indaiá e de outras cidades próximas.
Sua área de atuação era a da mineração da região dos rios Indaiá e Abaeté.
Sabemos que a descoberta de diamantes nos leitos e nas margens desses rios se
deu por volta da terceira década do século XVIII. Tudo foi mantido em segredo
pela Coroa portuguesa, que logo se encarregou de baixar leis tornando a
prospecção e comercialização dos diamantes como monopólio real. Mas a notícia
verdadeiramente se espalhou como um rastilho de pólvora pela capitania, em
seguida pelo Brasil, pela Europa e pelo mundo, somente nas duas últimas décadas
do século XVIII. Portanto, todas essas informações precisam ser devidamente
checadas antes que se possa dá-las como um fato histórico.
O Rio Indaiá, rico em diamantes, descobertos em 1726.
Esta foto é do período da construção da ferrovia da Rede
Mineira de Viação, em 1922. Fonte: Carlos Cunha Corrêa,
Serra da Saudade, 1948.
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A partir deste momento, o relato de Rubens Fiúza começa a
se aproximar da genealogia de Longueteau, quando diz que Jacinto Fiúza de
Almeida teve uma filha (não aponta quem é a mãe), chamada Ana Epifânia Pinto
Fiúza, que foi casada com João Pinto Coelho, importante comerciante em
Pitangui. Este casal teve um filho, Domingos Pinto Coelho, que se casou com Ana
Angélica Fiúza. Deste matrimônio nasceu Ricardo Pinto Fiúza, o velho, que se
casou com Maria Delfina dos Santos. Ricardo e Maria Delfina foram pais de
Herculano Pinto Fiúza (Dolor), que foi casado com Maria Vieira Fiúza. Ambos
tiveram deste matrimônio uma filha única: Etelvina Maria dos Santos, a nossa
personagem principal neste texto. Assim, Etelvina seria legítima descendente de judeus sefarditas, ou cristãos-novos, ou ainda marranos. Corria em suas veias uma boa parcela de sangue
hebreu, pelo menos na versão de Rubens Fiúza.
Etelvina e seu tempo
Em 1858, ano do nascimento de Etelvina Maria dos
Santos, Dores do Indaiá era uma pachorrenta e pacata vila no “fim do mundo”.
Havia recuperado sua condição de vila há cinco anos, título que lhe havia sido
cassado em 1851 em função do desinteresse da população pela construção de
edifícios públicos. Em 1853 o governo provincial restaurou essa condição, após
manifestações populares no sentido de mudanças de atitudes. Era uma vila que não
teve projeto urbanístico e arquitetônico, à exceção do núcleo inicial, isto é
a praça da Matriz de São Sebastião. Suas poucas ruas e ruelas não tinham
alinhamento, umas com as outras, e apresentavam desenho irregular. Era
frequente a presença de mato e buracos pelas vias públicas, onde uma fauna de
cavalos, mulas, bois, porcos e galinhas, andava em busca de seu precioso
alimento. Não havia rede de esgotos, benefício somente adquirido na segunda
metade do século seguinte, e havia águas de esgotos e pluviais escorrendo por
canaletas naturais nos cantos das ruelas. As melhores casas, feitas com
tijolos, ou mesmo de taipa, mas com telhados, eram encontradas na praça da
Matriz, onde moravam os fazendeiros. As demais eram casas de barro batido e
cobertas de sapé. Aliás, durante a semana, a vila permanecia um ermo, pois a
maioria de seus habitantes mais abastados morava mesmo era nas suas fazendas,
indo à vila nos fins de semana para fazer as compras necessárias, assistir aos
cultos religiosos, manter contato e confraternizar com os demais moradores.
Matriz de São Sebastião, cujo término de construção ocorreu em 1832.
Demolida, num ato de pleno vandalismo administrativo, em 1937.
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Desde 1830 o arraial tinha um professor para alunos de
primeiro grau. Era Flávio Máximo Pereira Duarte, conhecido como Mestre Flávio e
era vereador à Câmara de Pitangui. A partir de 1848, ele representava o arraial
de Dores do Indaiá, onde ia periodicamente para ministrar suas aulas
para crianças e adultos.
A vida social nos primeiros tempos do arraial era muito
restrita, já que quase todos os moradores viviam em suas fazendas. Em 1832
surge a Irmandade Nossa Senhora do Rosário, quando começam a ser comemorados a
Festa do Rosário, a Folia de Reis e o Congado. Tradição iniciada pelos negros
descendentes de quilombolas (Quilombo do Ambrósio) e aqueles antigos habitantes
do arraial dos Porcos que, mesmo antes da fundação do Arraial da Boa Vista, em
1798, já haviam se mudado para as suas imediações, fugindo às enchentes e
inundações anuais do ribeirão dos Porcos. O local escolhido por eles para fazer
seu novo arraial ficava situado onde depois passou a ser conhecido como Cerrado
(atual Bairro Juiz de Fora). Essa tradição religiosa é mantida até hoje e é
considerada uma das melhores do Estado de Minas Gerais.
Em 1854 a pequena vila, de pouco mais de mil habitantes,
recebeu novos moradores, vindos de Pitangui, Vila Rica, Sabará, Tamanduá
(Itapecerica), Curvelo e outras localidades. Pertencia à Comarca do Rio das
Velhas, com sede em Sabará, mas, em 1855, foi criada a Comarca do Indaiá,
com sede em Pitangui. Desde 1828, o arraial já possuía um juiz de Paz e, nesse
mesmo ano, o Capitão Elias Pinto Coelho, um dos fundadores do arraial, é
nomeado como a primeira autoridade judiciária do local.
A agência dos Correios foi criada em 1857. Entre 1857 e
1860, a Câmara Municipal, composta por poucos vereadores, foi presidida por
Narciso Pereira da Costa, cargo equivalente ao de agente executivo municipal,
que hoje corresponde ao de prefeito municipal. Seu mandato foi interrompido em
alguns pequenos períodos, quando assumiram, em 1857, parte de 1858 e 1860, o
vice-presidente Antônio José Ribeiro Caldas, e Francisco Fernandes de Souza. De
1861 a 1864 foi presidente da câmara e agente executivo municipal o
tenente-coronel Antônio Zacarias Álvares da Silva, o famoso Barão do Indaiá,
cuja residência ficava em Marmelada, atual Abaeté. Em 1862 a vila recebe seu
primeiro juiz de órfãos, Militão José Ribeiro e Souza. Entre 1865 e 1868 o
presidente da câmara e agente executivo municipal eleito foi Francisco de Sousa
Ferreira Coelho, filho de Francisco de Sousa Coelho, ex-padre e influente líder
político e intelectual em Dores do Indaiá. Este, por sua vez, era filho de José
de Sousa Coelho (Juca de Sousa), antigo camarista (vereador) em Pitangui, e um
dos fazendeiros fundadores do Arraial da Boa Vista, futuro Arraial de Nossa
Senhora das Dores. Alguns anos depois, Francisco, neto de Juca de Sousa,
muda-se para o Triângulo Mineiro, onde vem a falecer quando de uma pescaria.
Juca de Sousa, o velho, era filho de judeus portugueses. Sua mãe emigrou para o
Brasil e veio morar em Pitangui, após seu pai ter sido queimado na fogueira da
Inquisição, no último quartel do século XVIII. Tornou-se um dos maiores
contrabandistas de diamantes para o cartel judaico anglo-holandês, além de
fazendeiro.
Apesar de ser uma vila pacata, Dores não era muito conservadora,
pelo contrário. Em 1842, o então arraial participou ativamente da Revolução
Liberal, com fortes repercussões regionais. Seus lideres foram exatamente o
ex-padre Francisco de Sousa Coelho, o tenente-coronel Elias Pinto da Fonseca,
filho de outro dos fundadores do arraial, e Manuel Jacinto Rodrigues Véu.
Pertenciam ao partido dos liberais, conhecidos como chimangos, que se opunham
aos conservadores, os caramurus, ou legalistas. Os primeiros sonhavam com
alguma coisa semelhante a uma república liberal, enquanto os segundos eram
fortemente monarquistas conservadores. Com a vitória destes últimos, os
liberais foram perseguidos e seus líderes presos. Mas foram logo libertados,
dentro da política do imperador Pedro II de apaziguar os ânimos e estabelecer
a concórdia em seu império. Em todo o século XIX, a vila de Dores, e a partir
de 1885, quando a vila foi promovida a cidade, predominava uma política liberal
entre os mais cultos e letrados. O contrário do que viria a ocorrer a partir da
segunda década do século XX, quando passou a predominar uma política bastante
conservadora.
A vila de Nossa Senhora das Dores passou a ser
progressivamente chamada de Dores do Indaiá a partir de 1832, quando os
primeiros documentos que registravam este nome passaram a ser conhecidos. Este
foi o ano em que a Matriz de São Sebastião foi concluída, construção que levou
quase três décadas. Em 1834 foi sepultado, em seu interior, um dos principais
fundadores do Arraial da Boa Vista, Manoel Corrêa de Souza, o Correinha, fazendeiro
que doou o terreno onde foi construída a Matriz. Nesta praça da Matriz foram construídas, a partir da década de 1810, as
primeiras casas dos fazendeiros e agregados. Sempre foi uma localidade de
grande fervor religioso e as manifestações e comemorações religiosas eram
periódicas.
Praça do Sagrado Coração de Maria (Praça dos Coqueiros), construída em 1873.
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Em 1873, Frei Paulino, um missionário italiano, estava em
Dores. Não se limitava a pregar a palavra do Evangelho, em todos os locais por
onde passava procurava levar melhoramentos através de obras e construções e
incentivava a população a participar das mesmas. Ao passar por onde é hoje a
Praça dos Coqueiros, viu a extraordinária vista dali descortinada. Ao mesmo
tempo, ficou impressionado com o abandono do local, cheio de buracos. Apelou
para toda a população, homens, mulheres, idosos e crianças para ajudar a
construir ali uma praça dedicada ao Sagrado Coração de Maria. Assim foi feito. Após uma pregação no púlpito da Matriz, quando conclamou toda a população a fazer um mutirão para a construção da nova praça, houve uma mobilização geral para a sua concretização. O povo carregou em seus próprios carrinhos pedregulhos e cascalho de uma
propriedade nas proximidades, e o local foi devidamente aterrado e aplanado.
Foram feitas covas, preenchidas com terra de boa qualidade, e nelas plantados
coqueiros. Conseguiu que as crianças, filhas das melhores famílias locais
cuidassem, cada uma, de seu coqueiro. Todos os dias, após o culto na Matriz,
Frei Paulino falava ao povo e os incentivava a manter o ritmo das obras. Dentre
as meninas-moças que cuidaram dos coqueiros, o prof. Waldemar de Almeida
Barbosa, em seu livro Dores do Indaiá do
Passado (1964) aponta as seguintes (p. 51): Siá Bilia (d. Maria de Souza
Melgaço), Siá Colô (Claudina de Sousa Coelho, filha mais velha do ex-padre
Francisco de Sousa Coelho), Siá Zinga, Siá Didinga (Leopoldina de Sousa
Melgaço), Etelvina Maria dos Santos (por ele designada como Etelvina Fiúza),
Policena Andrade, Eurélia (mãe do Sr. Iano), Mariquinha (Maria Luíza de
Macedo, avó do ex-prefeito de Dores, Mário Carneiro) e muitas outras. Conclui-se, portanto, que
aos 15 anos de idade, Etelvina Maria dos Santos já tinha uma presença ativa
na vida da comunidade e era uma personalidade importante do local. Após o
plantio dos coqueiros, colocou-se, no centro da praça, o cruzeiro, com peças
belissimamente trabalhadas, representando o calvário de Cristo. À tarde, com o
sol poente, a visão da praça era simplesmente deslumbrante, com a vista da
Serra da Saudade ao fundo. Apesar de seu atual semi-abandono (vez ou outra passa
por uma reforma), até hoje a Praça dos Coqueiros, como ficou popularmente
conhecida, é um espetáculo emocionante para quem tenha vivido a infância ou
juventude na cidade e ali retorna.
Cerimônia religiosa defronte a casa de Alda Lacerda Bernardes,
filha de Clara Angélica Fiúza e neta de Etelvina. S/d, autor desconhecido.
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Como teria sido a infância, adolescência e juventude de
Etelvina? Uma questão difícil de ser compreendida hoje em dia, em tempos de
globalização, quando cada casa da cidade ou do campo tem a sua televisão, seu
rádio e, cada vez mais disseminadamente, seu computador, com o inevitável
acesso à internet. Atualmente, quando se vai a Dores do Indaiá, não se vê muita
diferença no comportamento das crianças, adolescentes e jovens em relação aos
da Capital, até mesmo os do Rio de Janeiro e de São Paulo, em função dessa
globalização. A sexualidade hoje é liberada, nada mais é tabu, tudo visto com muita
naturalidade, tudo natural até demais. É o que observamos no presente, quando,
no passado, essa era uma muito delicada questão. Vemos hoje abusos de todo
tipo: além do sexo, álcool, drogas, direção de veículos em velocidade
incompatível com o local, muitas vezes com o motorista embriagado, desrespeito
ao pedestre, desrespeito à figura dos mais velhos e até da autoridade, tudo
hoje é banal, tudo é “normal”. Esse é um dos problemas que o País tem enfrentado,
como um todo. A ética há muito deixou de existir. Se no mundo político,
começando pela cúpula do governo que hoje nos “assiste”, vemos total confusão
entre o público e o privado, imaginemos o que isso serve de exemplo para a
população, principalmente para os mais jovens, sem noção de limites e do que é
legal ou ético. Aliás, o conceito de ética e de moralidade hoje se desfaz a
olhos vistos.
A praça da Matriz de São Sebastião, em dia festivo de fim de semana.
Foto provavelmente da segunda década do século XX. Vê-se um moinho
de vento que acionava bomba para retirar água do subsolo.
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Nada era assim nos tempos da mocidade de Etelvina. O
mundo era outro. Como não vivi nem remotamente no espírito daquele tempo, vou
me socorrer nas palavras de meu tio-avô, o acadêmico Carlos Cunha Corrêa, que, em seu livro
pioneiro sobre a história da região, Serra
da Saudade, retratou de forma impecável e magistral, com a verve e o fino
humor que lhe eram tão peculiares, como se desenvolviam os costumes dos fazendeiros da
região de Dores do Indaiá, e mesmo dos moradores da cidade, no século XIX e
início do século XX. Transcrevo o que o grande advogado e escritor dorense nos
diz, às páginas 197-199:
"Ninguém ignora que três são os fatores que concorrem na
educação da infância: o lar, a escola e a sociedade, ou por outra – os pais, os
professores e o ambiente social.
Ora, como se falar em ambiente social onde tudo eram
fazendas distanciadas, isoladas, de poucos habitantes, rústicos? Professores,
ou não os havia ou os raros mestres da roça encontrados pouco menos eram de
analfabetos. Sua minguada bagagem literária restringia-se a péssima caligrafia,
leitura viciadíssima com tropeços nas silabadas, via de regra não entendendo ou
não sabendo interpretar o mais corriqueiro texto. Nenhuma noção da mais
rudimentar pedagogia, mormente sobre instrução moral e cívica. Os livros
escolares, quando os havia, ensebados e rotos, eram indigestos, dogmáticos,
pelo método de perguntas e respostas que sobrecarregavam inutilmente a memória
do educando, num improfícuo esforço de decorar, à feição de catecismo
religioso. Nenhum aluno sabia, nem o professor, o que vinha a ser o
bicho-de-sete-cabeças das malfadadas calmarias, que deram com os costados de
Cabral nas costas brasileiras. Digo-o de ciência própria pois que já no meu
tempo, de escola oficial com professor formado em farmácia, só depois de
avançado no curso secundário, e por esforço pessoal, vim a saber a significação
de calmaria, quando pela primeira vez
me caiu em mãos um dicionário. E será que atualmente a coisa esteja melhorada?
De modo e maneira que restava o lar tão só para a
delicada tarefa de educar a prole. Os chefes, porém, labutavam de sol nascente
à noite alta e não lhes sobejavam tempo e habilitações. Donde toda a
responsabilidade dessa missão recair sobre as mães, analfabetas, via de regra.
Pois foram estas, descendentes próximas ou remotas de ameríndias, que obraram o
milagre admirável de não deixar a prole se corromper pela depravação no
deserto, pela dissolução de costumes e bruteza de hábitos: foram as
sacerdotisas do lar, que o souberam plasmar austero e honrado.
Descendentes quase todas de mamelucos paulistas educados
pelos Jesuítas, e vindas, como disse, de Lavras, Pitangui, Vila Rica e Queluz,
foram os gênios tutelares do gineceu dorense, modeladoras de lares honestos,
sabendo conservar e transmitir a moral cristã: se não tinham instrução
literária, eram ricas de bons sentimentos. O lar sertanejo era o santuário de
que ao estranho só era dado conhecer o limiar. Tão rigoroso era o recato da
família que o namoro das meninas se havia com tal habilidade que conseguia
passar pelo buraco da fechadura. Numa justa compreensão das leis biológicas e
da precocidade dos instintos da maternidade, promoviam o casamento das filhas
tão logo atingiam a idade de treze anos (em vários assentamentos eclesiásticos
é essa a idade encontrada, predominante, para as nubentes). Corre até que havia
o excelente costume, que era dar o pai ao filho mancebo, já emancipado, ampla
liberdade para se casar, quando e como quisesse, contanto que fosse com a
Joanita, filha do compadre Janjão, seu vizinho ou parente. Quando, além da
Joanita, tinha o compadre mais uma ou duas filhas casadouras, a traça usada era
levar o improvisado aspirante a uma visita. Ali vinham à sala servir o café as
duas ou três meninas – uma trazendo a bandeja sortida, outra, o leite, e a
terceira, o prato com os bolinhos, etc. (este etc. nem sempre se comia).
De regresso, em caminho, o velho, sem encarar o filho,
queria saber qual delas fora a eleita. Não era rara a resposta de que qualquer
servia. Nesta hipótese, o velho do candidato voltaria a saber do velho das
meninas qual delas mais agradara do seu menino. Esta usança, todavia, era mais
liberal do que o sistema usado pelos nossos dois Pedros, I e II, cujas três
esposas já o eram, quando os viram pela primeira vez."
Nada há a acrescentar a tão perfeita e fiel descrição
dos costumes de então. Daí se pode inferir como foi o namoro e casamento de
Etelvina Maria dos Santos, minha bisavó.
Seu consorte foi Francisco Ribeiro Coelho (1847-1907), filho de uma
tradicional família de Dores do Indaiá e Pitangui. Casaram-se em 1878, quando
ela tinha vinte anos. Francisco era o terceiro de sete filhos de João Ribeiro
Coelho (1818-1878) e Angélica Cândida de Jesus (1816-1879). O casamento de seus pais
se deu no dia dez de julho de 1840, em Dores do Indaiá. Os demais irmãos de
Francisco eram: João Ribeiro Coelho (1842-1878), Collecta Ribeiro Coelho (1845-?),
Manuel Ribeiro Coelho (1849-?), Maria Rosa de Viterbo (1853-?), Luiza (1857-?)
e Alexandrina Maria da Conceição (?-1898). Francisco foi Juiz de Paz em Dores do Indaiá e participou de sua primeira Câmara Municipal (Camarista).
Por sua vez, João Ribeiro Coelho era filho de Jerônimo
Ribeiro Coelho (1775-1819) e Luiza Antônia da Silva (1785-?). Eles se casaram
em Pitangui, em 1800, e ambos faleceram em Dores do Indaiá, ele, em 15 de
setembro de 1819, e ela em data desconhecida.
Angélica Cândida de Jesus (aparentemente, ela deu origem
à tradição do nome “Angélica”) era filha de Gabriel José Fernandes (1809-?) e
Francisca Ribeiro de Sousa (1800-?). Esta é a genealogia de meu bisavô
Francisco Ribeiro Coelho, o máximo conseguido pelo ingente trabalho de Jean
Pierre Longueteau, como já citado.
Entre os anos de 1880 e 1903, Etelvina deu à luz nove
filhos, em grande parte nascidos em sua Fazenda dos Cocais. Ela recebera esta
fazenda como um presente de sua tia (e maior amiga) Carlota de Sousa Coelho (Cota), filha do ex-padre Francisco de Sousa Coelho e neta de José de
Sousa Coelho (Juca de Sousa), vereador em Pitangui e um dos pioneiros de Dores
do Indaiá, como vimos, e de ascendência judaica.
Fazenda dos Cocais. Óleo sobre tela. Gentilmente enviada
pelo primo Paulo Ribeiro de Andrade.
Cota era esposa de Felício
Pinto Fiúza (1840-1912), o sétimo irmão de Herculano, pai de Etelvina. Cota era uma mulher de posses, já
que vinha de família de fazendeiros, mas cuja principal renda era proveniente
da mineração de diamantes e do contrabando dos mesmos para o cartel hebraico,
sediado em Londres e Amsterdã. Era a irmã caçula de pessoas influentes em Dores
do Indaiá, os Sousa Coelho, como Claudina (Colô), Francisca, Luíza, Ovídio, José e
Francisco. O tenente-coronel José de Sousa Coelho (o neto) fora presidente da
câmara e agente executivo municipal (prefeito) de Dores do Indaiá, no período
de 1882 a 1890, com mandatos em tempos intercalados.
Esta foto encontra-se exposta na Prefeitura Municipal de Dores do Indaiá. S/d. Autor desconhecido. |
Carlos Cunha Corrêa
reproduz uma foto sua em seu livro Serra
da Saudade e faz elogiosas referências à sua personalidade e ao seu
trabalho sério, honesto e respeitado frente à municipalidade dorense de final
do século XIX. Foi ele uma das personagens mais importantes de Dores do Indaiá
neste período, ao lado do dr. Antônio Zacarias Álvares da Silva, que o sucedeu
como presidente da câmara e agente executivo municipal. Foi o dr. Zacarias quem
contratou os serviços de um engenheiro urbanista que desenhou o atual traçado
das ruas e praças de Dores do Indaiá. Faleceu o dr. Zacarias em 1905, quando
regava uma das mudas de fícus, na praça da Matriz de São Sebastião,
causando comoção popular em Dores e no Rio de Janeiro, visto que era deputado à Câmara Federal,
na capital do País e pessoa muito benquista por todos.
Tenente-coronel José de Sousa Coelho, em foto reproduzida
do livro de Carlos Cunha Corrêa, Serra da Saudade, p. 204-B.
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Vista aérea de Dores, em 1936, mostrando o traçado
das ruas da cidade. Foto: Waldemar de Oliveira.
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O tenente-coronel José de Sousa Coelho, irmão de Cota,
durante o período em que administrou a cidade, soube impor o respeito e a ordem
públicos, mantendo a cidade afastada da criminalidade e do banditismo, que
imperara na região diamantífera dos rios Indaiá e Abaeté quase um século antes.
Atendia aos reclamos dos cidadãos com urbanidade e civilidade. Foi um exemplo
de cidadão e político. Era largamente admirado por todos.
Carlota de Sousa Coelho (Cota) e
Felício Pinto Fiúza não tiveram filhos e Etelvina era filha única de Herculano,
daí ter surgido uma amizade profunda entre ambas, para sempre. Provavelmente
este foi o grande motivo desta dádiva que foi a Fazenda dos Cocais, presente de
Cota para Etelvina, uma das mais importantes e ricas fazendas de toda a região
e próxima à cidade.
Cota e Etelvina eram tão amigas que o celebrado poeta
dorense Tonico Caetano (Antônio Caetano da Silva Guimarães Junior), em seu
livro Paisagens de Nossa Terra,
publicado em 1970, onde ele coletou poemas escritos desde as primeiras décadas
do século XX sobre personagens dorenses e sobre a cidade, dedicou a elas uma
estrofe (p. 136):
Muito alegres, bem juntinhas,
A Sá Cota e a Sá Etelvina,
Queridas filhas de Dores,
Gente fina, gente fina.
Felício Pinto Fiúza era um homem de posses. Elegante,
charmoso, bem ao estilo europeu. Felício era homem de finanças e fazendeiro em Dores do Indaiá. Numa época em que não havia bancos, ele vendia apólices de seguros, bem como vendia e descontava letras de câmbio. Tinha elevado conceito em toda a comunidade dorense. Haja vista os versos de Tonico
Caetano sobre Felício e Cota (p. 49):
Felício Pinto Fiúza,
Em residência aprazível,
Contava juros de apólices,
Todo semestre. Infalível!
Tia Cota, do tio Felício,
Tia Chica do velho Bento,
Ambas no “largo” moravam,
Casas iguais a “convento”.
Felício fez importantes doações em dinheiro para a construção da Matriz de Nossa Senhora das Dores, construção iniciada em 1914 e terminada em 1921. Cota doou o sino da Matriz, que até hoje está no local, importado da Suíça, com uma placa de bronze alusiva a essa importante doação e gesto benemérito para com a cidade. Em homenagem ao casal, a comunidade apelidou o sino de "Felício".
Felício e Cota não tiveram filhos. Numa de suas viagens, não se sabe se a negócios ou por outro motivo, ele envolveu-se com uma índia guarani em Bonfim de Goiás, posteriormente batizada como Maria de Abreu. Provavelmente Cota ficara em Dores do Indaiá. Da união nasceu um filho, que Cota fez questão de adotar e o criou como se filho seu fosse. Foi batizado com o nome de Ricardo Pinto Fiúza, conhecido como o moço, e também como Major ou Vovô Ricardinho. Casou-se ele com Maria de Sousa Melgaço, conhecida como Sá Bilia, filha de Luíza de Sousa Coelho, esta, por sua vez, filha de Francisco de Sousa Coelho (o ex-padre). Como se vê, em Dores do Indaiá todas as famílias se uniam em casamentos com elevado grau de consanguinidade. Uma das heranças do povo judeu para a região do Alto São Francisco. Também todos moravam na mesma praça, a da Matriz de São Sebastião. Infere-se que todos se viam com frequência, pela proximidade de suas habitações.
Matriz de Nossa Senhora das Dores, na década de 30 ou 40
do século XX. Foto de autor desconhecido.
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Engrenagens do relógio da matriz instaladas em 1915. Fabricação suíça. Doação de Carlota (Cota) de Sousa Coelho. Foto de Paulo Cesar Pinto Ribeiro, 2012. |
Placa alusiva à doação do relógio da matriz em 1915. Foto de Paulo Cesar Pinto Ribeiro, 2012. |
Felício e Cota não tiveram filhos. Numa de suas viagens, não se sabe se a negócios ou por outro motivo, ele envolveu-se com uma índia guarani em Bonfim de Goiás, posteriormente batizada como Maria de Abreu. Provavelmente Cota ficara em Dores do Indaiá. Da união nasceu um filho, que Cota fez questão de adotar e o criou como se filho seu fosse. Foi batizado com o nome de Ricardo Pinto Fiúza, conhecido como o moço, e também como Major ou Vovô Ricardinho. Casou-se ele com Maria de Sousa Melgaço, conhecida como Sá Bilia, filha de Luíza de Sousa Coelho, esta, por sua vez, filha de Francisco de Sousa Coelho (o ex-padre). Como se vê, em Dores do Indaiá todas as famílias se uniam em casamentos com elevado grau de consanguinidade. Uma das heranças do povo judeu para a região do Alto São Francisco. Também todos moravam na mesma praça, a da Matriz de São Sebastião. Infere-se que todos se viam com frequência, pela proximidade de suas habitações.
Ricardo Pinto Fiúza e Maria de Sousa Melgaço tiveram
vários filhos: Maria, José, Sigefredo, Altina, Felício,
Luíza, Jacinto, Genoveva, Ricardo, Edgard e Conceição, todos destacados membros
das famílias Fiúza, Sousa Coelho e Melgaço, de Dores do Indaiá. Ricardo foi o
patriarca que legou uma grande descendência de honrados cidadãos dorenses.
De Herculano Pinto Fiúza, o Dolor (ou Dolô), pai de
Etelvina, mestre Tonico Caetano nos deixou os seguintes versos (p. 46):
Bem conhecido o Dolô,
Dos velhos antepassados,
Residiu sempre entre nós,
Com seus amigos prezados.
Necessário se faz relatar um episódio que provavelmente
marcou muito a vida de Etelvina. Seu pai Herculano (Dolor) era um homem muito
querido na cidade, cheio de amigos, como se pode observar nessa estrofe de
Tonico Caetano. Não sabemos qual foi sua profissão. Com a esposa, Maria Vieira
Fiúza, tivera apenas uma filha, Etelvina, como já vimos. Mas Dolor devia ser um
homem bonito, atraente e sedutor. Homem ter aventuras extraconjugais no Brasil
dos tempos coloniais e imperiais, e até mesmo durante um bom período da República Velha, não era o problema que hoje em dia se coloca do ponto de vista
moral e familiar. Hoje seria impensável algo assim, mas naqueles tempos,
da segunda metade do século XIX, era um fato corriqueiro. Quase todos os homens
bem situados na vida que pudessem arcar com as necessárias despesas tinham
uma segunda família ou até uma terceira. Herança dos tempos do Descobrimento,
quando os portugueses que aqui chegavam se amancebavam com uma ou mais índias e
isso era um comportamento normal, dentro da moral dos povos tupis. Quase toda a
população brasileira, dos quinhentos e seiscentos, era mameluca, fruto da união
do branco com a índia. A Igreja combatia essa prática, mas era completamente
impotente para coibi-la. Até muitos sacerdotes constituíam famílias, às vezes
com numerosos descendentes, para desespero de seus superiores e vergonha da Igreja. Isso ocorreu também em Dores do Indaiá, com histórias
famosas que não vem ao caso aqui relatar.
Dolor, isto é, Herculano Pinto Fiúza, o velho, conheceu
uma linda mameluca originária do Arraial dos Porcos, em data incerta. Seu nome
era Maria Cândida Ribeiro de São José (?-1917), mas entrou para a história dorense como
Candinha dos Porcos. Esta estória está descrita no livro Do São Francisco ao Indaiá, do prof. Rubens Fiúza (2003) (pp.
298-299), mas esse relato apresenta diversas inconsistências que precisam de
uma melhor elucidação, por se tratar de assunto tão delicado para diversas
famílias dorenses.
A mãe de Maria Cândida Ribeiro de São José (Candinha dos
Porcos) era uma índia caiapó destribalizada, batizada com o nome de Maria
Cândida de São José, e seu pai foi o primeiro juiz de órfãos da vila, em 1862, Militão
José Ribeiro e Souza. Este, por sua vez, também era um homem casado, cuja
esposa era Carlota Maria de São José, uma neta do Capitão Amaro da Costa
Guimarães, isto é, pertencente a uma das mais tradicionais famílias de pioneiros
de Dores do Indaiá.
Militão e Carlota tiveram apenas um filho, Frederico
Ribeiro de Sousa (Fredericão), homem de grande cabedal e de grande descendência
em Dores do Indaiá. De se notar a coincidência de sobrenomes (esposa legítima –
Carlota Maria de São José e a índia concubina – Maria Cândida de São José). Seria
mesmo uma coincidência ou adoção do mesmo sobrenome pela concubina índia?
Não se sabe quando Candinha dos Porcos se mudou para
Dores do Indaiá, nem se ela e Dolor já se conheciam antes. Consta que ela era
casada com Antônio Pedro Fiúza, seu primo e descendente de Manuel Lino Fiúza de
Almeida, outro dos fazendeiros fundadores de Dores do Indaiá. Não consta que o
casal Antônio e Candinha tenha tido filhos, mas pode-se inferir, pelos acontecimentos subsequentes, que tiveram uma filha.
Por outro lado, Dolor e Candinha tiveram vários filhos. Todos se tornaram personalidades
importantes na cidade, cidadãos de bem, trabalhadores, honestos e granjearam grande respeito da comunidade.
A história era por todos conhecida em Dores do Indaiá e
pode-se imaginar o constrangimento provocado em ambas as famílias,
notadamente na de Etelvina, criada com princípios rígidos. Mas, o amor
é cego e a tudo enfrentou...
Entretanto, a história não parou por aí. Talvez, mais marcante
ainda, foi outro relacionamento íntimo que Dolor teve com uma filha de Candinha (seria filha de seu esposo Antônio Pedro Fiúza?),
de cuja união também resultou em um filho. Mãe e filha apaixonadas pelo mesmo homem e do qual ambas tiveram descendência. Uma inusitada história de amor, vivida no assim não tão ermo sertão do Campo Grande.
Recentemente, quando uma foto de Maria Cândida Ribeiro de São José, a Candinha dos Porcos, foi divulgada pela internet, mais exatamente no grupo da História de Dores do Indaiá, é que o assunto voltou a ser comentado, desta vez com mais naturalidade e até com muito respeito pela grande história de amor que na realidade foi. Quero ressaltar aqui, que o tema foi abordado inicialmente pelo criador desse importante grupo de troca de informações e preservação da memória de Dores do Indaiá, e que é um dos descendentes diretos de Candinha dos Porcos. Uma atitude admirável, louvável, e que merece todo o nosso respeito, já que a história não tem como ser modificada.
Com isso, podemos imaginar pelo que passou Etelvina
Maria dos Santos, em sua época. Recordando, ela se casou em 1878. Em 1880,
nasceu Amador Pinto Ribeiro, seu primeiro filho. Foi agricultor e fazendeiro em
Dores por toda sua vida. Sua esposa foi Floripes Ribeiro. Ainda não temos informações sobre seus descendentes.
Em 1882, nasceu Maria Angélica Ribeiro Coelho, mais
conhecida como Sá Maria do Cruz, sua segunda filha, casada com o conhecido e respeitado tabelião
Francisco da Cruz Machado, natural de Abaeté. Foi ela uma figura muito querida e
estimada em toda a cidade, vindo a falecer em Belo Horizonte, em 1968.
Etelvina e suas filhas, em 1935. Da esquerda para a direita:
Virgínia, Etelvina, Chiquinha e Maria do Cruz.
Foto de autor desconhecido.
Acervo de Ângela, Mônica e Heloísa Corrêa.
|
O primeiro genro: Francisco da Cruz Machado,
com o filho mais velho Zezé Machado. Década de 1930.
Foto do acervo de Letícia Machado.
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Em 1883, nasceu
Virgínia Angélica Fiúza (também anotada como Virgínia Pinto Fiúza), minha avó paterna,
casada com Sebastião Corrêa de Souza, um dos descendentes de Manoel Corrêa de
Souza, o Correinha, um dos fundadores de Dores do Indaiá e quem doou o terreno
para a construção do núcleo inicial do arraial.
O segundo genro: Sebastião Corrêa de Souza,
com Virgínia Angélica Fiúza e netas, filhas de Nevita.
|
Virgínia Angélica Fiúza. |
Virgínia e seu irmão caçula João Ribeiro Corrêa. Ca. 1957. Foto de autor desconhecido. Acervo de Antônio Fernando de Melo Fiúza. |
Em 1885, nasceu Francisca
Angélica Fiúza (Chiquinha), casada com Joviano de Oliveira, filho de Chico
Italiano, natural de San Giovanni, localidade próxima a Nápoles, sul da Itália.
Francisca Angélica Fiúza. Foto do acervo de Ângela, Mônica e Heloísa Corrêa, netas de Francisca. |
Francisca Angélica Fiúza e Joviano de Oliveira, em suas
bodas de diamantes, em 1965, com diversos descendentes.
Foto de autor desconhecido.
Acervo de Ângela, Mônica e Heloísa Corrêa.
|
O terceiro genro: Joviano de Oliveira e Francisca Angélica Fiúza.
Acervo de Ângela, Mônica e Heloísa Corrêa.
|
Em 1887, nasceu José Pinto Ribeiro (Juca), casado com Maria Rosa Soares Ribeiro, comerciante em Dores do Indaiá. Residia o casal à Rua São Paulo, próximo à casa de sua irmã, Virgínia, esta à Rua São Paulo, 300. Juca deixou grande descendência, com diversos e ilustres personagens.
José Pinto Ribeiro e Rosa Soares, esta descendente de D. Joaquina do Pompéu. Foto do acervo de Rosinha Soares Ribeiro. |
José Pinto Ribeiro (Juca) (1887-1961). Foto do acervo de Joanita Soares. |
Em 1896,
nasceu Herculano Pinto Fiúza, casado com Carmelita Fiúza Costa, que se
tornou um dos mais respeitados comerciantes da cidade, no ramo de armazém.
Faleceu muito jovem, em 13 de setembro de 1945, em Belo Horizonte. Sua morte, precoce e repentina (sofreu um infarto do miocárdio, estando sozinho em um quarto de hotel de Belo Horizonte) surpreendeu e consternou toda a sociedade dorense, pois era um homem muito estimado por seu espírito empreendedor, sociável, amigo de todos e pessoa dada à caridade. Morreu apenas três anos após o passamento de sua amada mãe, Etelvina.
Herculano Pinto Fiúza, o moço, filho de Etelvina,
e sua esposa Carmelita Fiúza Costa. Foto do acervo
da família de Herculano e Carmelita
|
Descendência de Herculano Pinto Fiúza, o moço, após seu falecimento. Ca. 1949. Foto de autor desconhecido pertencente ao acervo da família de Herculano e Carmelita. |
Reproduzo agora, com a devida autorização de seu neto, Antônio Fernando de Melo Fiúza, que o divulgou pela internet, o bilhete escrito por Herculano Pinto Fiúza momentos antes de falecer em decorrência de ataque cardíaco em um quarto de hotel, em Belo Horizonte, como escrevemos acima. Nota-se a letra tremida, própria de alguém que está sofrendo muito (no caso uma dor aguda no tórax), totalmente diferente de outro bilhete escrito em 1922, este com uma letra impecável e bem desenhada. São momentos cruciais na vida de um grande cidadão que merecem ficar registrados na história de nossa família.
Em 1898, nasceu Clara Angélica Fiúza, casada com Alexandre Lacerda, muito estimado comerciante dorense, fundador da Casa Lacerda. Clara também faleceu muito jovem, em decorrência de complicações cardiovasculares.
Bilhete escrito por Herculano, em 1922, revelando uma escrita refinada e o domínio do vernáculo. Foto do acervo de Antônio Fernando de Melo Fiúza. |
Verso do mesmo bilhete. Escrito na localidade de Chácara, próxima a Dores do Indaiá. Acervo de Antônio Fernando de Melo Fiúza. |
Em 1898, nasceu Clara Angélica Fiúza, casada com Alexandre Lacerda, muito estimado comerciante dorense, fundador da Casa Lacerda. Clara também faleceu muito jovem, em decorrência de complicações cardiovasculares.
Filhos de Clara Angélica Fiúza e Alexandre Lacerda,
após o falecimento de Clara. S/d. Foto de autor desconhecido.
|
A tradicional Casa Lacerda, na praça São Sebastião.
Fundada pelo genro de Etelvina, Alexandre Lacerda,
sobreviveu por quase cem anos. S/d. Foto de
autor desconhecido.
|
Em 1899, nasceu Angélica Fiúza, casada com o estimado e prestigiado
tabelião e radio-amadorista de Luz, Ramiro Botinha. Ele foi um homem que prestou grandes serviços à comunidade de toda a região, ao País e ao mundo, na medida em que, naquela época, as comunicações entre pessoas distantes eram feitas somente pelo radio-amador. Com isso, ajudou a socorrer feridos em acidentes rodoviários, fluviais e até marítimos, além de um sem-número de colaborações valiosas quando da transmissão de mensagens para os seus mais variados colegas do País, recebendo, em troca, a gratidão de seu povo. Foi um grande cidadão do qual todos nós, de sua família, nos orgulhamos muito.
Em 1903, nasceu João Ribeiro Coelho (João da Vó, ou João
Grande), também muito estimado e querido comerciante e funcionário público em
Dores do Indaiá. Nasceu ele na Fazenda Cocais, no ano seguinte, mas no mesmo local
que seus sobrinhos, o grande fazendeiro Luiz Ribeiro Corrêa (filho de Virgínia
Angélica Fiúza) e o afamado escritor dorense José Machado (Zezé Machado).
Como me relatou Paulo Ribeiro de Andrade, filho de João da Vó: “Meu Pai, nasceu
nesse lugar. Filho mais novo de Vó Etelvina, teve o privilégio de ter como
sobrinhos mais velhos que ele, José Ribeiro Machado e Luiz Corrêa. Os três
foram contemporâneos e companheiros de infância nesse lugar maravilhoso de onde
contavam lindas histórias...”
João Ribeiro Coelho, filho caçula de Etelvina, sua esposa
Maria Teixeira de Andrade, seus filhos e neta.
S/d. Foto de autor desconhecido. Acervo de Paulo Ribeiro de Andrade.
|
João Ribeiro Coelho e sua esposa Maria Teixeira de Andrade, nora de Etelvina. S/d. Foto de autor desconhecido. Acervo de Ângela, Mônica e Heloísa Corrêa. |
Casas da praça S. Sebastião, vizinhas à de Etelvina. Uma delas acaba de ser demolida (2014), em mais um atentado contra o patrimônio histórico da cidade. S/d. Foto de autor desconhecido. |
Etelvina criou seus filhos nos modelos descritos acima
por Carlos Cunha Corrêa. Todos eles se tornaram chefes de grandes famílias e
com enorme descendência, incluindo pessoas de relevo na vida profissional e
social do País.
Etelvina era muito ligada a todos os seus filhos, netos e
bisnetos. Foi muito estimada pelos seus amigos, vizinhos, funcionários e todos
com quem convivesse. Sabia cativar a todos com sua firmeza, honestidade,
correção de conduta e amabilidade. Dona de uma fibra invulgar, ficou viúva em
plena maturidade, em 1907, e sempre se manteve à frente
de seus negócios na fazenda, com cuja renda pode criar toda sua numerosa
família. Tornou-se uma referência na história de Dores do Indaiá e todos os
historiadores e cronistas da cidade, como Carlos Cunha Corrêa, prof. Waldemar
de Almeida Barbosa e prof. Rubens Fiúza, se referem a ela como uma
personalidade marcante na história da cidade.
Etelvina enviuvou-se em 1907 e viveu sempre para sua família. Dedicou o
que tinha de melhor de si para sua prole. Faleceu em 16 de setembro de 1942, em sua casa. Consta, segundo alguns relatos, que, pouco antes da saída do ataúde
onde repousava seu corpo, para sua última morada no cemitério
de Dores, uma pessoa teria colocado um ramo de cravo vermelho por entre seus dedos. Um pequeno gesto, mas de uma grandeza e de
uma beleza tais, que não pode ser descrito em palavras. Um antigo apaixonado que veio lhe prestar sua última homenagem. Entretanto, meu ilustre primo Paulo Ribeiro de Andrade recentemente informou-me que tal relato não é verídico. O suposto personagem já havia falecido há nove anos (1933). Verdade ou não, nada surge por acaso, como que por encanto das mentes criativas das pessoas. Algum significado nos traz para que tal estória tenha sido criada. O romantismo cria asas na imaginação das pessoas. Certamente, é uma pista para que os mais jovens pesquisem e desfaçam os nós trançados deste novelo de uma longa, bela e frutífera existência.
Etelvina, em foto de 1935. |
Uma de nossas fontes de informação sobre Vó Etelvina, tem
sido Paulo Ribeiro de Andrade, filho do tio João Ribeiro Coelho (João Grande). Homem culto, que sabe preservar os valores históricos, arquitetônicos e morais
da cidade onde sempre viveu e vive, respeitado pelos seus concidadãos de todas
as idades, uma referência para os mais jovens que hoje acompanham o passado da
cidade na já referida página do Facebook intitulada História de Dores do Indaiá. Paulo era ainda criança quando faleceu Etelvina Maria dos Santos, aos 83 anos. Foi uma perda muito
sentida por todos que a conheceram.
Igreja Matriz de N.S. das Dores, vista da parte de trás, com suas duas torres. S/d. Foto de autor desconhecido. Foto do acervo de Maria das Dores Caetano Guimarães (D. Branca). |
Assim descreveu Paulo Ribeiro de Andrade os últimos momentos
da matriarca:
Contam que Vó Etelvina estava moribunda quando
chegou o tio Herculano e pegou na sua mão perguntando: "Mãe a Senhora está
me conhecendo?". Ao que ela respondeu: "Quem não conhece o que é seu?!...".
Naquele tempo, quando morria uma pessoa na família, era uso todos os parentes
mais próximos se vestirem de preto em sinal de luto e ela pediu que o único
sinal de luto que ela queria era que colocassem uma faixa preta sobre o portal
de entrada da casa. Isto foi feito e muito tempo depois, quando passávamos por
lá, via-se ali aquela tarja preta já desbotada pelo tempo.
Coisas assim não se vê faz tempo. Parece uma
estória de outro mundo, mas ocorreu há somente 70 anos. Velhos tempos... bons
tempos... que não voltam mais!
Como última recordação de Vó Etelvina, transcrevemos, aqui, aquela
que foi a maior homenagem a ela prestada. Esta crônica de Zezé Machado, o
grande escritor, contista e poeta dorense, neto da matriarca.
CRÔNICA DE JOSÉ RIBEIRO
MACHADO
Notas Sociais
Quarenta anos depois...
Quando o automóvel dobrou o morro, cerrei os olhos para não ver. Mas vi. Lá estava o sítio da fazenda, da outra banda do córrego. À distância, era a mesma casa, assobradada, olhando os mesmos horizontes. Então, um trailer cinematográfico, localizado na irrealidade, rápido, desconcertante, impossível, desenrolou-se-me nas retinas: o renque de jabuticabeiras, que avançava da porta da cozinha ao rêgo d’água... subíamos ao primeiro pé, e marinhando pelas galhadas, que se entrecruzavam, saíamos lá de baixo, defronte ao rêgo... E aquela chuva de pedras? As mulheres, ajoelhadas, cantavam o Bendito, velas bentas acesas, palmas bentas queimando... Depois, um mundo de aves mortas pela saraivada, as paredes da casa estigmatizadas pela varíola dos granizos... E este, quem é este? – Ah, é o Alonso – medonho num garfo, aquele, o Chico Pedra, camarada de confiança, dentes de ácume. A Rosa, que me servia de pagem, entre cavaleiros, rumo à igreja, para se casar com o Marcos, e eu chorando saudades antecipadas...
A Vó Telvina, mulher resolvida, matando a tiro de espingarda, nas grimpas do arvoredo, a cobra magnetizando passarinhos... Meu avô, Chico Ribeiro, muito apagado na lembrança... O desconhecido, que passou pela Fazenda, vendendo filhotes de papagaios... O Martinho Goiano, de voz rouca, cantando modas à viola... e mais, mais... Que dolorosa história em quadrinhos! Tudo, tudo longe, irremediavelmente longe. Obscurecido pelo tempo. Desvirtuado pela distância. Morto, morto!
***
O automóvel vingou o morro. Desceu. – É aqui! O córrego canta. Canta ou chora? Desenrolamos os anzóis. Pescar? Para que pescar? Como pescar? Mas fui companheiro. Joguei o anzol n’água. Meu espírito, entretanto, afastava-se de mim. Da distância, uma voz cariciosa vinha vindo: - Pisa de leve que este chão é sagrado... O Corguinho é este mesmo. Até o nome: Cocais. Mas as águas já não são as mesmas... Correram, correram tanto...
Tudo mudado. Árvores que deixei meninas, não mais. Coqueiros que embalavam ninhos, não mais. Seriemas gargalhando manhãs de orvalho, não mais. Apenas meus mortos estão comigo. Evoco-os, um por um, e todos respondem: Presente!
***
Foi indo, não resisti mais. Abandonei o anzol. Desvencilhei-me da capanga. Sujiguei o coração, que me pedia para não ir e teimei: Vou e vou! Quero ver a Fazenda. Apalpá-la. Senti-la. Pisar àquele assoalho. Abrigar-me àquelas telhas. Fui. Cheguei ressabiado. Um cão ladrou. Nem fiz caso. Entro no curral. Curral de réguas. – Para onde foste, cerca de aroeira do meu avô? Atravesso o curral! Eis a casa. Esquadrias azuis, descoradas, resguardando janelas que foram verdes. Verdes? O coração treme. As pernas tremem. Eis a casa. Para frente! Coragem, coração! Que é isto? Medo? Arrependimento? Uns passos a mais, pronto. Cheguei. Olho em torno, ninguém. Grito, numa voz que não é minha: - Ô de casa? Ninguém. O fazendeiro, com certeza, foi à cidade, aproveitar o domingo. Foi mesmo, porque a um novo apelo, quem me aparece é um preto, meia idade, beiço rachado, dentes à mostra. Recebe-me desconfiado. Vexamento? Nem me convida para entrar, mas entro assim mesmo, e conto-lhe uma história triste, comovente, e...
Era esta a sala... Resisti quem há-de?
Uma ilusão gemia em cada canto,
Chorava em cada canto uma saudade!
***
Agora é o quintal. Piso terras em que brinquei menino. E de tudo que lá deixei, de tudo, tudo, tudo, - quarenta anos depois – só encontro, só reconheço três pés de jabuticabeiras, caducos, velhinhos, desengonçados, infelizes... Lembranças que o tempo esqueceu de apagar. Testemunhas desmemoriadas, mudas, dolorosamente mudas, do paraíso de uma infância morta. Tudo, tudo mais em redor, salvo a casa envelhecida, quase irreconhecível, acabou-se. O rego d’água agoniza. O monjolo silenciou-se. Não há mais ninhos de guaxos nos coqueiros. Cadê o pintassilgo do pé de espirradeira, que floria defronte à janela? Invés dos meus um negro do beiço rachado me escuta, humilde, sem compreender o mundo de sentimento que se extravasa de cada reminiscência, a lágrima que não choro de vergonha, o beijo que não deixo nos troncos das jabuticabeiras e no chão em que piso, de vergonha. Tudo morreu. Só a saudade persiste, irreverente, indelinivel, aniquilante, avassaladora...
***
- Uai. Mané Surdo, que lamúria é esta? – perguntará o leitor, que me aguentou até aqui. Respondo: - Bem sei que este canto de jornal não é muro de lamentações... Mas você, amigo, há-de perdoar-me esta derrapagem sentimental, porque estou falando da Fazenda Cocais, onde nasci e vivi menino, e, um domingo destes, depois de 40 anos de ausência, cometi a imprudência lá voltar, e veja o aconteceu.
Mané Surdo.
Jornal “O Liberal”
Dores do Indaiá – 28 – agosto – 1955
José Ribeiro Machado
19-04-1901
Notas Sociais
Quarenta anos depois...
Quando o automóvel dobrou o morro, cerrei os olhos para não ver. Mas vi. Lá estava o sítio da fazenda, da outra banda do córrego. À distância, era a mesma casa, assobradada, olhando os mesmos horizontes. Então, um trailer cinematográfico, localizado na irrealidade, rápido, desconcertante, impossível, desenrolou-se-me nas retinas: o renque de jabuticabeiras, que avançava da porta da cozinha ao rêgo d’água... subíamos ao primeiro pé, e marinhando pelas galhadas, que se entrecruzavam, saíamos lá de baixo, defronte ao rêgo... E aquela chuva de pedras? As mulheres, ajoelhadas, cantavam o Bendito, velas bentas acesas, palmas bentas queimando... Depois, um mundo de aves mortas pela saraivada, as paredes da casa estigmatizadas pela varíola dos granizos... E este, quem é este? – Ah, é o Alonso – medonho num garfo, aquele, o Chico Pedra, camarada de confiança, dentes de ácume. A Rosa, que me servia de pagem, entre cavaleiros, rumo à igreja, para se casar com o Marcos, e eu chorando saudades antecipadas...
A Vó Telvina, mulher resolvida, matando a tiro de espingarda, nas grimpas do arvoredo, a cobra magnetizando passarinhos... Meu avô, Chico Ribeiro, muito apagado na lembrança... O desconhecido, que passou pela Fazenda, vendendo filhotes de papagaios... O Martinho Goiano, de voz rouca, cantando modas à viola... e mais, mais... Que dolorosa história em quadrinhos! Tudo, tudo longe, irremediavelmente longe. Obscurecido pelo tempo. Desvirtuado pela distância. Morto, morto!
***
O automóvel vingou o morro. Desceu. – É aqui! O córrego canta. Canta ou chora? Desenrolamos os anzóis. Pescar? Para que pescar? Como pescar? Mas fui companheiro. Joguei o anzol n’água. Meu espírito, entretanto, afastava-se de mim. Da distância, uma voz cariciosa vinha vindo: - Pisa de leve que este chão é sagrado... O Corguinho é este mesmo. Até o nome: Cocais. Mas as águas já não são as mesmas... Correram, correram tanto...
Tudo mudado. Árvores que deixei meninas, não mais. Coqueiros que embalavam ninhos, não mais. Seriemas gargalhando manhãs de orvalho, não mais. Apenas meus mortos estão comigo. Evoco-os, um por um, e todos respondem: Presente!
***
Foi indo, não resisti mais. Abandonei o anzol. Desvencilhei-me da capanga. Sujiguei o coração, que me pedia para não ir e teimei: Vou e vou! Quero ver a Fazenda. Apalpá-la. Senti-la. Pisar àquele assoalho. Abrigar-me àquelas telhas. Fui. Cheguei ressabiado. Um cão ladrou. Nem fiz caso. Entro no curral. Curral de réguas. – Para onde foste, cerca de aroeira do meu avô? Atravesso o curral! Eis a casa. Esquadrias azuis, descoradas, resguardando janelas que foram verdes. Verdes? O coração treme. As pernas tremem. Eis a casa. Para frente! Coragem, coração! Que é isto? Medo? Arrependimento? Uns passos a mais, pronto. Cheguei. Olho em torno, ninguém. Grito, numa voz que não é minha: - Ô de casa? Ninguém. O fazendeiro, com certeza, foi à cidade, aproveitar o domingo. Foi mesmo, porque a um novo apelo, quem me aparece é um preto, meia idade, beiço rachado, dentes à mostra. Recebe-me desconfiado. Vexamento? Nem me convida para entrar, mas entro assim mesmo, e conto-lhe uma história triste, comovente, e...
Era esta a sala... Resisti quem há-de?
Uma ilusão gemia em cada canto,
Chorava em cada canto uma saudade!
***
Agora é o quintal. Piso terras em que brinquei menino. E de tudo que lá deixei, de tudo, tudo, tudo, - quarenta anos depois – só encontro, só reconheço três pés de jabuticabeiras, caducos, velhinhos, desengonçados, infelizes... Lembranças que o tempo esqueceu de apagar. Testemunhas desmemoriadas, mudas, dolorosamente mudas, do paraíso de uma infância morta. Tudo, tudo mais em redor, salvo a casa envelhecida, quase irreconhecível, acabou-se. O rego d’água agoniza. O monjolo silenciou-se. Não há mais ninhos de guaxos nos coqueiros. Cadê o pintassilgo do pé de espirradeira, que floria defronte à janela? Invés dos meus um negro do beiço rachado me escuta, humilde, sem compreender o mundo de sentimento que se extravasa de cada reminiscência, a lágrima que não choro de vergonha, o beijo que não deixo nos troncos das jabuticabeiras e no chão em que piso, de vergonha. Tudo morreu. Só a saudade persiste, irreverente, indelinivel, aniquilante, avassaladora...
***
- Uai. Mané Surdo, que lamúria é esta? – perguntará o leitor, que me aguentou até aqui. Respondo: - Bem sei que este canto de jornal não é muro de lamentações... Mas você, amigo, há-de perdoar-me esta derrapagem sentimental, porque estou falando da Fazenda Cocais, onde nasci e vivi menino, e, um domingo destes, depois de 40 anos de ausência, cometi a imprudência lá voltar, e veja o aconteceu.
Mané Surdo.
Jornal “O Liberal”
Dores do Indaiá – 28 – agosto – 1955
José Ribeiro Machado
19-04-1901
Nota: a bibliografia consultada para elaborar este texto encontra-se no blog http://familiasefaradidi.blogspot.com.br
No link abaixo, pode ser encontrado para download o livro Serra da Saudade, de Carlos Cunha Corrêa, que traz importantes informações sobre a história de Dores do Indaiá e do Alto São Francisco.
http://www.youtube.com/watch?v=OH7owOaDDCA
Outro link com depoimentos de grandes especialistas:
http://www.youtube.com/watch?v=OwY_vRdobwc
A genética do povo português revelando parte de ascendência judaica:
http://www.youtube.com/watch?v=skYbYpgEV9g